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quarta-feira, 28 de junho de 2023

O CONTO (OU CRÔNICA) ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM LÊ

Mulher com chapéu (1905), de Henri Matisse

Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.

Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.

Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?

Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?

Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.

Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.

Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.

Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.

Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.

Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.

Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.

A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.

Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.

Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?

Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.

Publicado originalmente em LiteraturaBr.

terça-feira, 30 de maio de 2023

OS FILHOS DA PÁTRIA ARRASADA

Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a pátria que os pariu.

“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.”
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)

A disputa entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho


Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?

Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.

Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.

Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.

No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.

1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.

2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.

3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.

4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.


O livro:
Br2466 ou a pátria que os pariu
Autor: Nélio Silzantov
Editora: Penalux
Ano: 2022
Clique para saber mais

sexta-feira, 31 de março de 2023

MINHA ESTREIA NO PORTAL LITERATURABR

 

Clique aqui para acessar

Escrevi durante 14 anos para o caderno de cultura do Correio Popular. O que de início foi a concretização de um sonho aos poucos se revelou uma oportunidade incrível de construir carreira e exercitar o pensamento. No jornal, tive a oportunidade de experimentar os mais diversos tipos de textos, dialogar com leitores e desenvolver meios de divulgar o meu trabalho.

Esse ciclo se encerrou no ano passado. Achei que era hora de me dedicar a outras coisas, mas o “impulso ensaístico”, por assim dizer, continuou a me requerer.

Pois é com imensa alegria que inicio agora uma contribuição com o portal LiteraturaBr. Sou muito grato pela acolhida e pelo espaço que me concederam. Esse é um site repleto de conteúdo bem cuidado, dedicado a valorizar a cultura em geral, com destaque para a literária. Tem podcast, clube de leitura, artigos, resenhas, excerto de livros e muito mais, vale a pena conhecer.

Sinta-se mais do que convidado, convidada, convidade a acessar o LiteraturaBr. E aproveite para assinar a newsletter deles, que é gratuita e leva para o seu e-mail alguns destaques do conteúdo publicado ali.

Pretendo seguir escrevendo sobre literatura e artes visuais. E o primeiro texto, que acaba de sair, trata exatamente do embate entre essas duas áreas iniciado na Renascença e revisitado pelos impressionistas. Espero que goste. 😊

quinta-feira, 16 de março de 2023

GÊMEOS

Foto de Jacob Capener

Ninguém, em absoluto, tem conhecimento de que a Terra possui um planeta gêmeo, com as suas mesmas características, onde todavia a vida não se desenvolve. São idênticos os oceanos, as montanhas, as áreas desérticas, os polos Sul e Norte. Idênticas as luzes e sombras, ventos, correntes marítimas. E assim por diante. Com a diferença de que lá não se veem plantas, animais de qualquer espécie, sequer vírus e bactérias. Muito menos seres humanos. Nenhuma forma de vida habita tal lugar. Não por causa de ameaças fisioquímicas, por tragédias de tipo material ou transcendente, por guerras nucleares ou pandemias; a vida em nosso planeta-irmão não acontece por uma profunda impossibilidade. Como uma força indomável que nada permite, nem o premeditado e menos ainda o fortuito. Impossibilidade tamanha que tampouco nossos cientistas mais bem formados, equipados e assessorados, com toda razão, são capazes de tomar conhecimento desse corpo cósmico particular, ainda que suas dimensões não devessem passar despercebidas sequer a olho nu. Ninguém toma conhecimento dele, nem tomará, por mais semelhante que nos seja, pois mais próximo que se coloque em nosso sistema solar. Ao ponto em que sua gravidade tanto influencia a Terra que, de fato, ela se faz imprescindível para a nossa existência, tal como a conhecemos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

QUEM SE ASSUSTA COM UM SUCESSO DESTES?

Saiba mais sobre o livro no site da editora Alfaguara

 
Gótico nordestino, de Cristhiano Aguiar, reúne nove contos em que tradições brasileiras se encontram com outras da literatura fantástica, com destaque para o horror do século XIX.

São histórias com clima bem construído e engenhosa condução do leitor pelo enredo, que sempre parte do drama de um personagem (diante de seus parentes e amigos, da comunidade, do destino etc.). Essa premissa particular acaba por ecoar algo mais geral, como políticas, futuros possíveis, relações sociais, entre outras. O resultado: trata-se mais de um livro sobre família do que propriamente um “horror raiz” feito de sangue e sustos. 

Ali, Campina Grande, cidade de origem do autor, se mistura com ficção científica, música, histórias em quadrinhos, Henry James, Poe e Lovecraft, nostalgia dos anos 1990, Covid-19 e inúmeras outras referências, em especial da cultura pop, numa miscelânea corajosa, que atualiza certos clichês do gênero, como vampiros e mortos-vivos.

Assim, o autor cria cenários, situações e conflitos complexos, sem cometer deslizes como o de explicar o que não precisa ser explicado, ou justificar o imponderável.

Seu livro tem ainda o benefício de aproximar de outras possibilidades literárias aqueles leitores mais chegados ao realismo, apresentando, sobretudo, o potencial de discussão política que o horror também oferece. Nesse sentido, o prêmio da Biblioteca Nacional conquistado pelo Gótico nordestino em 2022 não surpreende, mesmo se tratando de uma obra de gênero pouco reconhecido pela crítica em geral.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

FASE DE CRESCIMENTO

 

Foto de Gabby Orcutt

Vizinho de nós, constroem um prédio
cinquenta, sessenta, oitenta andares
– a certa altura já
não faz diferença –
é o maior, não o único
há também o complexo hospitalar
o mercado de luxos
a imponente loja disso ou daquilo
– todos projetos de um moderno “eixo” imobiliário
dizem, rumo ao futuro

Enquanto, para mim, realmente grandioso
é ver seus pezinhos voltados para cima
no braço do sofá. Dez dedinhos redondos
no horizonte iluminado pelo abajur, dançando
ao som do desenho animado
que prenuncia o seu sono

Lá fora, um mundo vasto reivindica
o seu caminhar. Mas ainda é tempo
de viver as pequenas alegrias
dar risinhos com o personagem maluco
ter medo do gigante, do dragão e
construir seu lugar na escala
do ser humano, nem um centímetro mais.

*Minha pequena Lis faz 5 anos! 😍

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

ESPELHO D'ÁGUA

 

Foto de Francesco Ungaro

Não sei se li em algum lugar 
ou se imaginei por conta própria 
certa civilização que mantinha 
tradição infalível contra desavenças: 
consistia em juntar dois rivais 
numa tina de banho 
para ali se lavarem até que 
suas diferenças se diluíssem 

Daquela água suja saíam 
nem puros nem amigos 
saíam uma gota mais conscientes 
de seus limites e do pó 
do mundo que lhes é comum 

Pó dos ossos antepassados 
farinha dos pães frescos 
a serem partilhados.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

 


Em mais uma partida deste jogo da vida, encontrei mais sorte do que reveses. Fico feliz de chegar onde cheguei. E como cheguei. E com quem. 

Espero que 2023 traga oportunidades para todos. Vamos jogar juntos?

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

QUEM VEM LÁ?


Criei o blog Arte Faz Parte para compartilhar na internet os textos que saíam na minha coluna, no caderno de cultura do Correio Popular. Isso faz quase 15 anos! Naquela época, o jornal era impresso, e somente os leitores do interior de São Paulo tinham acesso. Fiz o blog para meus amigos poderem ler também. 

Gostei de experimentar este formato, acabei publicando uma porção de outras coisas aqui, e o blog teve fases diversas (algumas mais maduras, outras meio embaraçosas). Nunca me preocupei com estabelecer diretrizes, ser coerente, responder a alguma expectativa de público. Não me lembro de já ter excluído publicações que agora considero irrelevantes. Até hoje, não sei quem o acessa e quem lê. 

Mantenho este espaço para ter um histórico do meu trabalho, para jogar garrafas no oceano, para eventualmente alguém encontrar um meio de me contatar. E, com alguma frequência, essas garrafas retornam. Pode ser um comentário, uma marcação em redes sociais, um sinal de fumaça 

Hoje, para minha surpresa, recebo um e-mail informando que o blog foi acessado 800 vezes em apenas um mês, a partir de pesquisas feitas no Google.

Não sei se isso é muito ou se é pouco, de acordo com parâmetros assim ou assados. Fato é que fiquei feliz por saber que reuni, neste espaço virtual, com passos de tartaruga, um conteúdo que ainda gera interesse.

Com o nascimento do meu segundo filho, no final de 2021, o blog passou um ano estagnado, assim como minha produção artística em geral. Mas o menino já está quase andando, e pretendo dar mais atenção ao Arte Faz Parte em 2023. Afinal, em breve o blog fará 18 anos e começará a responder por seus próprios atos. Vou curti-lo enquanto posso.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

DESPERTAR PARA A POESIA

Clique aqui para ver o livro no site da editora Quelônio


Dispersar todo sonho, de Lolita Campani Beretta, seria um chamado à vigília? Seus poemas, sem dúvida, oferecem uma (re)descoberta da realidade, como quando esmiúçam as diferenças e semelhanças entre facas e plumas, quando se debruçam sobre o corpo humano, quando pairam sobre o mar, quando se voltam às lembranças de infância, entre outros dos seus diversos temas. Em contrapartida, o libertário pulso criativo do inconsciente é também convocado a produzir epifanias, muitas delas de caráter surreal, como a de engolir pássaros, matar plantas com água fervente, lançar móveis pela janela, visitar um cinema abandonado no deserto... A riqueza desse imaginário sensato ou onírico nos acompanha nas mais de 100 páginas do livro, com o texto diagramado como num jogo ou numa dança, oferecendo mais esse elemento para nossa apreciação estética.

Somos, por vezes, conduzidos através de longas explanações, que têm algo de narrativas, versando sobre determinado assunto. Em outros casos, o poema se resume a uma só frase. Seja como for, já sempre uma intimidade prestes a implodir, pois não pode permanecer confinada na simplicidade das palavras com que se apresenta. Essa espécie de cotidiano pessoal vai ganhando ares de universal na medida em que o olhar lírico atento se dedica àquilo que, a princípio, parece desimportante, mas que se revela fundamental.

A fotografia, a areia da praia, a pele, a ruína, a fenda, a máquina, entre outros substantivos configuram formas de existência elaboradas com delicadeza, sinceridade, lentidão. Surpreende que nada do livro esteja fora do lugar, nada seja acessório, marca de uma maturidade invejável para a estreia da autora. Assim, Dispersar todo sonho é, no mínimo, um despertar para o que a boa poesia pode nos oferecer.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

EM CAMPINAS OU EM CARTAGO, A UNIVERSALIDADE É UMA ABSTRAÇÃO

Na entrevista a seguir, o escritor Fábio Mariano fala sobre sua novela Habsburgo, que apresenta uma trama de relações entre o próximo e o distante.

Habsburgo (Editora Patuá, 2019), de Fábio Mariano, é uma história de relações entre humanos, como muitas. Porém, diferente da maioria, traz como panos de fundo a vida universitária e o mercado de arte. Vemos os personagens Carlos e Coca Munhoz se conhecerem quando ainda são estudantes e desenvolverem uma amizade permeada por conflitos, mal-entendidos e mútua admiração. Coca, agenciado pelo companheiro, acaba por se tornar um artista plástico de carreira internacional, e o círculo de pessoas ao seu redor deixa a trama cada vez mais complexa. 

Fábio Mariano usa recursos narrativos para acentuar isso. Desde o flashback – praticamente a história toda é contada por Carlos durante o encontro com uma amiga num café – ao anacronismo e à sobreposição de espaços – Brasil e República Tcheca se confundem, assim como épocas distintas, de modo que Chopin, Campinas, pizzas e pieroguis, entre outras referências culturais se misturam, criando a estranha sensação de que algo se deslocou no tempo e no espaço.

Presos nessa rede, os personagens buscam formas de escapar. Quando nos damos conta, fomos capturados também, e seguimos com o livro aberto até que as páginas se esgotem.

Clique aqui para acessar o livro no site da editora Patuá


1. Em Habsburgo, Campinas e Cartago são coincidentes. Ouve-se Chopin como uma espécie de hit do momento, há um sentimento de que tudo foi realocado no tempo e no espaço. Identificamos algo familiar naquilo que parece estranho, tais como hábitos estrangeiros, receitas culinárias, nomes de lugares etc. Esse recurso indica certa universalidade das relações humanas, assim como de afinidades culturais, trânsitos, atravessamentos e influências em um mundo “globalizado”? Você teve que pesquisar referências para enriquecer o livro?

Eduardo, antes de mais nada, queria agradecer pelo convite e pela leitura atenta e cuidadosa do livro, que se revela nas perguntas complexas e interessantes que você coloca. Vou começar respondendo à questão da sobreposição entre Cartago e Campinas, porque Cartago é o meu universo desde o primeiro livro, O gelo dos destroieres, e atravessa os contos esparsos que publiquei, e também o terceiro livro, Ruído branco. Meu projeto literário sempre teve a ver com a criação dessa cidade, desse universo ficcional que dialogasse com Campinas, com esse paradoxo que é uma cidade “grande do interior”, a capital frustrada, o lugar onde as coisas abrem e depois fecham, onde existem sempre a noção de um potencial não realizado, como se fosse uma maldição. Ao mesmo tempo, Campinas é uma cidade em que, se você procurar, encontra coisas muito únicas, muito particulares. Eu me lembro, quando estudava russo, de procurar gramáticas nos sebos e encontrar uma gramática do russo em espanhol. Aquilo tem uma história, sabe, alguém que era falante nativo de espanhol e estava aprendendo russo, ou que era professor de russo e tinha alunos que falavam espanhol, existe uma história única naquilo. É uma cidade com uma universidade enorme, cheia de pessoas de todos os lados que vieram parar aqui, que ficaram. Eu nasci em São Paulo e vim para cá, e cresci sempre cercado de pessoas que não eram daqui; nesse sentido é mesmo uma cidade, um entrecruzamento de rotas onde as pessoas vão ficando. Por isso, em parte, Cartago é atravessada por pessoas de diferentes lugares – porque essas pessoas fundam restaurantes, abrem lojas, se empregam no serviço público, a vida inteira eu estive rodeado dessas pessoas, que vinham de outro lugar. Quanto às referências, acho que é importante dizer que esse livro nasce de uma pesquisa muito específica sobre as relações entre professor e aluno e, ao mesmo tempo, sobre o gênero novela. Antes de escrevê-lo, eu cursei uma disciplina na universidade que era justamente sobre a relação professor-aluno na literatura, e aquilo me marcou. Coincidência ou não, vários dos autores eram nascidos no antigo império austro-húngaro, o império dos Habsburgo. Eu sou fascinado por esse império justamente por ele ter sido, numa época de nacionalismos extremados, um império multinacional. Essa diversidade faz com que os pontos de vista diferentes que existem ali sejam muito enriquecedores. Acho que é o Eric Hobsbawm que fala (mas posso estar enganado nessa referência) que Sarajevo abre e fecha o século XX, e o estouro da primeira guerra mundial, ali, é de fato o fim de muita coisa, e isso me fascinava e fascina ainda. Então, ao mesmo tempo em que existiu uma pesquisa muito grande sobre o império, e aí sobre as filiações, as diferentes nacionalidades que o compunham e os diferentes interesses que o envolviam, todos eles pincelados no livro, há um interesse meu de longa data pelas produções culturais dele que é anterior. Eu escrevi o livro quase todo à mão, no primeiro rascunho, ouvindo o quarteto de cordas do Janácek “Sonata a Kreutzer”, que eu tinha ouvido ao vivo num espaço cultural aqui de Campinas uns anos antes e que tinha me deixado obcecado. Então, nesse sentido específico das referências culturais, eu não pesquisei diretamente para o livro – elas foram se encaixando naturalmente, em função de uma pesquisa anterior e mais extensa sobre o império dos Habsburgo.

2. A história aborda certos aspectos da produção, da circulação e do comércio de arte, e assim ajuda a desmistificar um tema que ainda hoje carrega certa aura. Você tem familiaridade com o assunto? De onde vem esse interesse e o que o levou a incluí-lo em Habsburgo?

A origem desse livro é um conto fracassado. O Coca Munhoz aparece, pela primeira vez, em O gelo dos destroieres, numa cena que é contada de um ponto de vista que não é o dele (é como se o conto fosse o negativo fotográfico dessa novela). E desde então eu tentava escrever um conto sobre o Coca, que teve uns quatro rascunhos, mas que não dava certo. Foi na disciplina que mencionei, sobre a relação professor-aluno, que a coisa se encaixou na minha cabeça; foi ali que eu achei uma forma. Ainda assim, eu escrevi quatro começos diferentes, em terceira pessoa primeiro, depois em primeira com o Coca, até achar finalmente a voz do Carlos. Porque isso para mim era importante – não falar desse mundo da arte com a propriedade de quem o viveu. Escolher o Carlos como narrador coloca a distância do espectador; por mais que seja um crítico, ele nunca consegue de fato adentrar o processo de criação. Eu pessoalmente não conheço nada do comércio de arte, então também é algo que fui indagando e pesquisando, mas não pelos detalhes, e sim para poder ambientar essa história. Eu queria trabalhar com um artista plástico porque, na verdade, é a arte mais distante de mim, e é uma das minhas grandes frustrações. Eu já tentei, e eu não consigo desenhar, pintar, esculpir, nada; não consigo ter a mínima habilidade em nada disso. Então, o processo criativo, que para mim na literatura é muito claro, na música faz sentido, já que eu toco instrumentos e já compus, mas nas artes visuais é um mistério total. Se você não domina a técnica, como é que você faz para saber as suas potencialidades de criação, as suas possibilidades, o que você consegue dizer e fazer? Então, a escolha do Carlos como narrador e o fato de ela ter destravado essa história tem a ver com conseguir achar um ponto de vista para falar que não fosse de um profundo conhecedor. Agora, quanto à dinâmica do mercado, a questão do assédio, os segredos, as informações privilegiadas, para mim isso é a marca de qualquer mercado, e esse glamour que recobre é uma máscara que, de fato, mistifica. Isso acaba dando uma espécie de validação, de salvo-conduto, para que pessoas reconhecidas como “gênios” tenham licença para ter comportamentos abusivos, violentos, destrutivos, o que é um absurdo. Por isso, também, eu quis explorar um pouco as ramificações desses comportamentos, os impactos, as marcas que não passam.

3. O mesmo vale para o ambiente universitário, tanto em relação ao ensino quando às pesquisas científicas. Sei que você tem uma afinidade particular com isso. De que maneira sua experiência pessoal atravessou o enredo do livro?

Uma das maneiras de entender esse livro, para mim, é uma grande homenagem à universidade onde me formei, a Unicamp, uma universidade que representa tudo o que eu quero e valorizo no ensino superior – um ensino público, gratuito, de qualidade e que se torne cada vez mais democrático e acessível. Algo que está em risco no Brasil há um bom tempo, e que temos que lutar para manter. De certa maneira, a vida do Carlos é tão atrelada a dois polos, o Coca e a universidade, que ele só narra isso. É como se nada mais existisse na vida dele – família, antecedentes, nada. É como se tudo começasse e terminasse na universidade. A Unicamp mudou a minha vida, e eu sou completamente ligado a ela – hoje, inclusive, profissionalmente, já que sou professor num dos colégios técnicos dela e faço o doutorado lá. Mas acho que, mais que tudo, o que eu procurei recriar ali foi o sentimento de estar na universidade, de atravessá-la, porque esse sentimento é algo que não encontrei na literatura brasileira ainda. A descrição das paisagens do distrito universitário e da própria universidade não é gratuita – ela é, também, uma representação e um diálogo com o que aconteceu com a Unicamp e o distrito da cidade onde ela fica, Barão Geraldo, entre 2007 e 2017, que eram minhas datas de referência naquele momento, e das descrições e histórias de um pouco antes. Mas na ficção a gente cria, transforma, faz alquimia com as referências, e há ali também pitadas de outros campi que eu conheci: a Unesp de Franca, a USP Pinheiros, a Uni Duisburg-Essen, onde estudei na Alemanha, e a Universidade do Mississippi, nos EUA. É engraçado que a relação com o livro é invertida – hoje, meu doutorado é sobre o academic novel americano, os romances que se passam na universidade e têm como personagens principais os docentes. Quando escrevi Habsburgo, eu ainda não fazia esse doutorado; em certo sentido, foi o livro que me levou ao doutorado e à pesquisa que faço hoje. O livro atravessou a minha experiência depois de minha experiência ter atravessado o livro. 

4. A história de Habsburgo parte da amizade do protagonista Carlos e de seu amigo artista Coca Munhoz, que se conhecem durante a graduação, e segue até o momento em que ambos têm carreiras consolidadas. Ao longo desse tempo, novos personagens aparecem e deixam tudo mais complicado. São abordados temas como as relações entre professor e aluno, amizades que se desfazem, jogo de interesses, assédios de vários tipos, contatos internacionais, passado e presente, vivos e mortos, enfim, apresenta-se uma circularidade da qual não se escapa e que aponta para algo maior, como a própria história da humanidade, que de alguma maneira jamais deixa de se repetir. Você tinha essa pretensão ao escrever o livro?

Com certeza. Se por um lado é um livro que tenta recriar um ambiente específico e um sentimento específico dentro de determinadas estruturas, pensar a partir da universidade e da trajetória de uma carreira docente, ele é também um livro que aponta, sempre, para algo que extrapola aquele ambiente. A gente costuma se referir a essas questões como universais, mas elas só acontecem dentro de determinadas configurações, o universal é sempre uma abstração. As amizades só acontecem dentro de uma certa configuração – a universidade, o bairro, a rua, as cartas, as redes sociais, e isso muda, cria especificidades, possibilidades diferentes. Mas para mim essas estruturas serviam justamente para que eu pudesse explorar questões, para que eu pudesse olhar para a humanidade. O título e a sinopse do livro não combinam muito – mas os detalhes todos do livro apontam para o título, e para um momento específico, para o fim do império dos Habsburgo, o momento de crise, o momento no qual as contradições dentro daquela panela de pressão que o era território austro-húngaro explodiram. Ali, não foi só um império que se desfez, foi uma configuração do mundo. Então, o que eu queria era explorar essas complexidades, não numa chave alegórica, mas de diálogo mesmo com as referências, uma espécie de montagem entre o livro e suas referências para provocar o leitor a fazer uma aproximação que chega a parecer um convite indevido, mas que teima, insiste, reaparece. Esses temas, a fundo, são a espinha dorsal do livro, o que não é dizer que o enredo é menos importante, porque é o enredo que permite a relação entre todos os temas, mas é um pouco como o André Malraux fala sobre o Faulkner: parece que ele cria primeiro as situações para depois imaginar os personagens nelas. Eu tinha esses temas todos em mim, mas precisava de um enredo e de uma voz, até que encontrei o Carlos.

5. A novela Habsburgo é seu segundo livro (o primeiro foi O gelo dos destroieres, de contos, publicado em 2018). Depois você publicou Ruído branco, também de contos, em 2021. Todos os três pela editora Patuá. Está trabalhando em novos projetos atualmente? O que vem por aí?

A história do Ruído branco é curiosa. Ele foi publicado numa parceria entre a Patuá e a Ofícios Terrestres, editora independente aqui de Campinas, do Gabriel Morais Medeiros, que é um baita poeta e um amigo de muitos e muitos anos. O livro foi contemplado pelo ProAC de 2019, e era para ter saído em 2020; ele até saiu, mas o projeto envolvia uma turnê de lançamentos pelo interior de São Paulo, e mais várias ações que tiveram que ser remanejadas por conta da pandemia. Acho que eu não consegui escrever sobre como a pandemia afetou o cotidiano de um personagem em parte porque ela afetou o meu projeto literário daquele momento – e aí, é estranho, mas de uma certa forma acho que a minha energia para pensar a relação pandemia-literatura ficou confinada nessa reconfiguração do projeto. E quem me apontou uma saída para isso foi justamente o Gabriel, quando me ofereceu a possibilidade de traduzir um poeta alemão chamado Paul Boldt. Saiu uma plaquete no ano passado, com quatro poemas, que integrou a coleção de plaquetes da Ofícios Terrestres, e em breve (estamos calculando para setembro ou outubro) deve sair a versão que tem 21 dos 84 poemas deixados pelo Boldt (é a primeira tradução dele no Brasil, eu espero que outros tradutores e estudiosos se interessem e mergulhem, traduzam, retraduzam!). Além disso, tenho um projeto de contos para o ano que vem, um projeto que vai se materializar e que é uma parceria com outros dois escritores que admiro muito. E eu ainda tenho outros projetos que vão avançando, mas a passos mais lentos; a verdade é que eu comecei a escrever os contos de O gelo dos destroieres lá em 2012, como um estudo para o ambiente e possíveis personagens de um romance. E o caderno de anotações para esse romance se desdobrou, se transformou em outros projetos, mas o núcleo dele também continua ativo. O que posso dizer com certeza é que, seja em que formato for, Cartago vai continuar sendo o cenário da minha ficção. E que vêm mais histórias de Cartago por aí!

terça-feira, 26 de julho de 2022

BRASIL, TERRA SERTANEJA


ERVA BRAVA, de Paulliny Tort (Editora Fósforo), reúne doze contos que se passam na cidade fictícia de Buriti Pequeno, no interior de Goiás. Daquela terra sertaneja brotam personagens como o agricultor turrão, a primeira-dama romântica, a benzedeira dedicada, a parteira feminista, o drogadito, o sineiro, o ludibriado, entre outros. Com seus dramas particulares, eles de alguma maneira contam do lugar onde vivem, assim como a cidade diz muito a respeito dos habitantes. No fim, uma parte não existe sem a sua contraparte. E digo contraparte porque tais relações não são pacíficas — boa quantidade dos conflitos do livro provém daí. Trata-se, sem dúvida, de um projeto literário belamente estruturado, com perspectivas e enredos variados, todos eles também conectados a um destino nada promissor: a destruição do município por um dilúvio no conto final, intitulado “Rios voadores”. Com isso, lava-se a alma de um Brasil perdido entre as modernidades, tradições e contradições do agronegócio, do tráfico de drogas, da corrupção, da herança colonial, da intolerância, do machismo, enfim, das violências todas que vivemos em nossas cidades reais.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

MORRE UM JOVEM

Clique aqui para saber mais

Escrevi os versos abaixo quando soube do falecimento de Victor Heringer. Nos primeiros rascunhos havia uma menção a ele. Mas achei que, no livro que estou publicando agora, o poema poderia ser dedicado a todos que nos deixam ainda jovens. E à esperança que resiste. Por isso não há dedicatória alguma.

O livro em questão se chama Sutilezas, fins. É o quinto na minha trajetória de escritor, e o primeiro composto exclusivamente por poemas. Ele aposta na apreciação da sutileza, da delicadeza e da profundidade como saída para nossa condição contemporânea.

A pré-venda vai até 31 de maio no site da Loja Pedregulho. Como se trata de uma editora pequena e a tiragem é limitada, faz toda a diferença você encomendar seu exemplar. Clique aqui

Agora sim, o poema.

MORRE UM JOVEM

Morrem milhares
todos os dias dizem:
o país não se importa
exceto por este sujeito
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país

É preciso matar muitos países supostos
para viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos ajeitados
teimam em envelhecer
ao ponto em que a obsolescência
confunde-se com salvação.

quinta-feira, 24 de março de 2022

COMO SER MACUXI?


“A damurida, prato tradicional de meu povo
já fazia parte, de um jeito mágico, de meu paladar.
[…] As pimentas dançam no rio da minha memória,
invocando a antiga canção dos antepassados que me chama de volta
pra casa.”

Julie Dorrico, Editora Caos & Letras, p. 27

Acredito que a grande questão do livro Eu sou macuxi e outras histórias é aprender a ser/pertencer a essa etnia. Isso implica não apenas conhecer a língua ou praticar os costumes, mas reavivar uma memória que, no limite, é a própria essência cultural daqueles indígenas. 

Quem encara a jornada é a narradora dos textos que compõem o livro, que não são exatamente contos, são também poemas, relatos, fábulas, registros de acontecimentos. Narradora que ora é observadora, ora é personagem, ora cede a palavra e se torna ouvinte da avó, que por sua vez conta histórias por intermédio de uma tradutora – do macuxês para o inglês para o português para uma língua própria, inventada. Assim, coloca-se em pauta a tradição oral e as permanências e transformações que atravessam gerações. 

Mas talvez o que mais tenha me intrigado seja o abandono daquele “eu” convencional, numa atitude fundamental para a narradora se tornar macuxi. Ela faz isso contando não somente uma experiência sua de conhecimento e imersão, mas dando voz às mitologias fundadoras de um povo. Só assim, abandonando uma determinada “si mesma”, é capaz de aprender a ser ainda mais; aprender a ser uma indígena e uma nação macuxi ao mesmo tempo.

quinta-feira, 10 de março de 2022

COLONIALIS MUNDI

Foto de Jovis Aloor


Haveria então essa porta
de civilização antiga, descoberta
durante uma escavação
ao ser deitada no chão ela se abriu
para o mundo inferior

Algum debate e mulheres e homens avançados
se propuseram descer por ela para explorar 
e foram 
surpreendidos por homens e mulheres 
e silêncios emergentes
tais como eles, de idêntica aparência e conduta
haviam descoberto em seu canteiro de obras 
uma porta 
caída
que os levava ao mundo inferior.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

ESTATUTO SOCIAL DA PINTURA

Por que paisagens impressionistas como as de Camille Pissarro, Claude Monet ou Alfred Sisley, hoje apreciadas em termos estéticos e econômicos, causaram tanto escândalo ou foram vítimas de tamanho desprezo em sua época, na segunda metade do século XIX?

Prados de Sahurs no sol da manhã (1894), de Alfred Sisley

Essa é uma daquelas perguntas que podem ser respondidas de maneiras diversas, muitas delas tomando como base a questão técnica – as pinceladas de cores puras que, por sua proximidade, criam certo efeito ótico – ou o fato de os artistas deixarem o ateliê para buscarem registrar impressões visuais em suas telas diretamente da observação da natureza, num dado local e numa dada circunstância atmosférica, com uma rapidez de execução inaceitável pelos mestres das academias de belas artes. Rapidez que às vezes se tentava confundir com facilidade ou como falta de rigor por estes, que, ao contrário, passavam dias e dias retocando à perfeição um músculo de cavalo ou o reluzir de um metal precioso.

Mas outra maneira de explicar o tal escândalo remonta ao empreendimento renascentista de legitimação social e teórica da pintura, que pretendia conceder a ela o reconhecimento então dedicado apenas às artes da linguagem. Os artistas visuais queriam, eles próprios, gozar da dignidade dos liberais, uma vez que pintura e escultura eram consideradas ocupações mecânicas, tal como a construção civil ou a marcenaria. Em suma, o pintor não queria ser tomado por operário ou simples artesão, mas como profissional culto e letrado. Ao mesmo tempo, sua atividade deveria deixar o posto de ilustração e ser apreciada como um saber em si mesma.

Essa diferença tinha origem bem mais antiga. Horácio, no século I a.C., ao meditar sobre a ideia defendida por Simônides de Ceos de que “pintura é poesia muda e poesia é pintura que fala”, deu sua famosa declaração “ut pictura poesis”, ou seja, a pintura é como a poesia. Esse paralelo entre as artes da imagem e as da palavra ganhou fôlego no Renascimento e perdurou pelo menos até Lessing contestá-lo no século XVIII, preferindo pensar na especificidade de cada arte em vez de naquilo que porventura tivessem em comum.

Acontece que a máxima de Horácio deriva de um erro de interpretação. A frase completa – “ut pictura poesis erit” – coloca a imagem como termo referencial da comparação, não o contrário. Ou seja, o poeta romano na realidade privilegiava as artes da visão, dizendo que um poema existe tal como uma pintura. Isso porque, assim como se fazia em relação a esta última, ninguém teria dificuldade para reconhecer na poesia a realidade, ainda que imaginária, como o escudo do herói Aquiles ou o drama de Laocoonte.

O erro de interpretação pode não ter sido tão despropositado, uma vez que permitiu aos intelectuais da Renascença galgarem um novo estatuto para a pintura. O quadro, sendo como um poema, teria assim o mesmo nível valorativo. Mas como fazer versos com pincel e tinta?

Fato é que a linguagem gozava, desde a Antiguidade, do privilégio de pertencer à ordem da razão e do discurso. De modo que a pintura somente poderia obter a mesma legitimidade absorvendo a poética e a retórica para contar histórias, ou melhor, para “narrar com o pincel”, como se dizia no século XVII.

Em termos de hierarquia pictórica, o gênero que se utilizou daquelas categorias do discurso para contar grandes feitos, transpondo uma sequência narrativa – portanto temporal – para o espaço da visibilidade, foi a pintura de história, que ostentava entre os acadêmicos o estatuto da mais alta expressão da arte de pintar. Tomando seus temas da literatura e da tradição, esses pintores gozaram ao máximo da dignidade concedida aos artistas liberais.

Assim, retomando nosso ponto inicial, quando os impressionistas abriram mão dos ricos ateliês das academias para pintarem, no meio do mato, banalidades como montanhas e vegetação, puseram em xeque uma posição social confortável, conquistada pelos artistas visuais a duras penas. Questionaram também a concepção de que a pintura poderia, sim, provir da sensibilidade, em vez do intelecto; da matéria, em vez da ideia; e da prática, em vez da teoria.

Banida dos famosos salões, que funcionavam como espaços de legitimação de uma arte específica e produzida segundo critérios e regras bem estabelecidos, a pintura impressionista construiu seu lugar no mundo da arte desde a margem, inicialmente atacada pela crítica e pelo público, cujo olhar era educado a apreciar uma determinada forma e nada além dela.

Ao longo do século XX, esse olhar foi se transformando e, por consequência, o gosto pelas novas formas, que ganharam destaque entre os artistas, na crítica e, claro, no mercado de arte.

Poderíamos seguir por aí, adentrando a história da arte moderna pelo menos até os experimentos com a abstração, o que se estenderia por páginas e páginas, inclusive atualizando o interminável embate entre a poesia e as artes visuais, que de alguma maneira ainda persiste. Sem que isso caiba num artigo despretensioso como este, deixo aqui uma provocação: existe imagem que não evoque palavras e palavras que não sugiram imaginários?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

ESCRITO NA AREIA


Textos para lembrar de ir à praia, de Rodrigo Luiz P. Vianna, traz poemas que têm em comum essa temática explicitada no título. O livro se divide em três partes: Escrito na areia, Ampulheta e Pérola. Que implicam também três destinações da areia, às quais são dedicados inúmeros versos. A sensibilidade e a criatividade do autor para escrever tanto a esse respeito são impressionantes. Sem dúvida, o grande destaque do livro fica com a sua exploração, que ganha aspectos, camadas, perspectivas e significados a cada página, trabalhados com uma cuidadosa elaboração.

Há jogos de palavras, como “mãos em concha” e “o labirinto se despedaça aos ouvidos”; há também ideias muito bonitas, apresentadas na forma de imagens sugestivas, como em “a circunstância tem vida e espessura” ou “cartografar durante o terremoto”. Há muito mais. Trata-se de um escrito capaz de produzir inusitados a partir de algo corriqueiro como um passeio no litoral. Por exemplo, quando nos fala da escultura conforme aquilo que falta a ela: “pedra pole a água / lapida ao longo da vida / as faltas da estátua”.

Sua complexidade nem sempre é fácil de apreender, e por diversas vezes me peguei flutuando em ondas de indefinição. Tal como faz o vento de um dos seus poemas, este livro “dissolve os limites / entre meu corpo e a praia”. Daí a sensação de desfazimento, da impossibilidade de se reter os significados diminutos, que escorrem por entre os dedos. Afinal, “a areia é um fragmento da areia”. Se por vezes enchemos as mãos com ela, outras vezes é ela que se agarra em nós. E seguimos assim, por simples prazer.

Publicado no Brasil pelas editoras Reformatório e Patuá em 2020.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O QUE FAZ DE PICASSO UM PICASSO?

Gertrude Stein (1905-1906), de Pablo Picasso

Essa pergunta pode ser respondida de inúmeras maneiras e sob inúmeros aspectos. Um deles é o de sua amiga Gertrude Stein, que escreveu a respeito do artista ainda em 1938. No pequeno livro intitulado Picasso, publicado no Brasil pela editora Âyiné, ela traça um elogio da técnica, do talento e, principalmente, do seu olhar aguçado, que fez dele um verdadeiro “criador”. Segundo Stein, Picasso foi o primeiro capaz de enxergar sua época com os olhos do século XX. Afinal, se “nada muda nas pessoas de uma geração para a outra exceto a maneira de ver e de ser visto”, como lemos ali, o criador é o sujeito capaz de perceber esse movimento. “Ele é sensível às mudanças pois a vida e sua arte são inevitavelmente influenciadas pela maneira como cada geração está vivendo, pela maneira como cada geração está sendo educada e pela maneira como as pessoas se movem, tudo isso cria a composição dessa geração”.

Essa ideia se inspira num pronunciamento de Sir Edward Grey, citado por Stein, para quem os generais da 1ª Guerra Mundial ainda batalhavam como no passado, apesar de possuírem armamento do século XX. Apenas no auge do conflito eles teriam mudado essa percepção, o pensamento e as ações de combate.

A guerra é um ponto relevante no argumento do livro. A autora inverte o senso comum de que tudo se transforma com ela ao explicar que as mudanças na verdade já aconteceram e que o conflito apenas obriga as pessoas a reconhecê-las. Aliás, como Stein bem observa, as mudanças e as guerras jamais acabam, elas apenas dão a impressão de terminar. É aí que o olhar do criador se diferencia. Em suas palavras, “um criador não está à frente de sua geração, mas ele é o primeiro entre os seus contemporâneos a ter ciência do que está acontecendo”. Ele percebe e expressa a guerra antes que ela seja declarada. E o público, depois, deve reconhecer o seu trabalho, assim como as mudanças evidenciadas pelo confronto.

Todos foram obrigados a aceitar Picasso, que anteviu o conflito mundial ainda na década de 1900, diz Stein. Seu cubismo já expressava essa nova maneira de ver e de viver.

Dado o seu pioneirismo, para Gertrude Stein, Picasso foi herói de uma era, embora não tivesse clareza da amplitude do que fazia. Ela explica que “há heróis em todas as eras em que são feitas coisas que não podem deixar de ser feitas, e nem eles nem os outros entendem como nem por que essas coisas acontecem. Ninguém jamais entende, antes de elas serem completamente criadas, o que está acontecendo, e ninguém entende nada do que fez antes de terminar tudo”.

Depois de realizado, aquilo que parecia estranho vai sendo assimilado, ao ponto de ninguém mais se lembrar por que se estranhavam, por exemplo, as composições cubistas. Todavia, a grande luta de Picasso foi justamente pelo estranhamento, quer dizer, pela sua capacidade de estranhar aquilo que a todos parecia evidente. Com seu esforço para pintar como se desconhecesse, como se visse pela primeira vez, ele focou numa parte do todo por vez, tal como os nossos olhos fazem. Picasso percebeu que vemos no outro apenas uma sobrancelha ou um braço, o ombro esquerdo ou a mão direita; se observamos a boca, as orelhas serão uma construção da memória ou complementos da imaginação, o que simplesmente não o interessava. “Os pintores nada têm a ver com reconstruções, nada a ver com memória, eles se preocupam apenas com coisas visíveis”, afirma Stein, categórica. Assim, Picasso foi desconstruindo um paradigma visual e reeducando o olhar para perceber a contemporaneidade do século XX.

Fez isso pintando o corpo, ou melhor, a materialidade. A alma das coisas e das pessoas não lhe dizia respeito. E Picasso pintava como ele próprio via, não como os demais ou com uma visão generalizante. Essa insatisfação com certa aparência comum seria a sua singularidade, que em pouco tempo, porém, foi sendo absorvida e reproduzida, fazendo surgir réplicas de Picasso, secundárias em todos os sentidos.

E nem mesmo Pablo Picasso era um Picasso o tempo inteiro. Stein usa a imagem de expansões ou acúmulos para se referir a seus períodos de se deixar influenciar. E trata seus momentos de reinvenção como esvaziamentos daquilo que o afastava do seu “temperamento espanhol”, que para ela seria uma espécie de essência do artista. Os colegas franceses, a escultura africana, as cores de Matisse, tudo isso que comumente entendemos como elementos constitutivos da obra de Picasso, para Stein eram desvios.

Essa ideia de essência, tal qual a de gênio moderno (“que já nasceu sabendo tudo sobre pintura”, como ela escreve), mais as generalizações acerca das nacionalidades (como se todas as pessoas de um determinado país fossem iguais) e a lógica exagerada que busca justificar os resultados (como se a criação artística e a vida pudessem ser reduzidas a explicações simples) são alguns dos defeitos do livro, muitos dos quais perceptíveis apenas hoje, com o distanciamento que acumulamos em relação ao Modernismo. Todavia, a proximidade que a autora manteve com Picasso e o encanto por sua obra trazem pontos de vista bem mais cativantes do que encontramos outros textos teóricos ou críticos também disponíveis. Com sua intensa amizade e admiração, Stein faz de Picasso ainda mais Picasso.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

UMA PERGUNTA POR DIA


Estipulei metas para mim no início deste ano. Eu nunca tinha feito isso de maneira tão sistemática. Para me lembrar de cumprir algumas delas, escrevi um bilhete que dizia: Pergunta do dia, Leitura do mês, Projeto da vez. Ele ficou grudado em minha mesa de trabalho durante muito tempo, até deixar de ser necessário. A primeira frase implicava justamente isto: eu me propus elaborar uma pergunta por dia – apenas uma já seria suficiente para fazer irromper, da superficialidade da rotina, algum pensamento crítico. 

Mais do que respostas, acredito que precisamos de perguntas, e de todo o tipo: lógicas, poéticas, urgentes, ideais, reflexivas, retóricas, impossíveis, e assim por diante. Apesar de ter seguido o plano com mais lapsos do que gostaria, até setembro redigi um total de duzentas e vinte e nove. Então, meu filho nasceu, e as prioridades mudaram um tanto. Sem a cobrança assídua do tal bilhete, acabei me esquecendo momentaneamente da meta e, por fim, assumi seu abandono. Ainda assim, incompleta, ela apresenta um mapa de afetos, lampejos, aprendizados, inquietações, ingenuidades, sonhos, entre outros motivos que inspiraram minhas questões. 

A seguir, trago uma seleção delas. Compartilho, desse modo, parte de quem fui em 2021. E torço para que elas também sirvam de provocação para você no ano que vem chegando.

7) Como permanecer ileso?
10) Até que ponto é possível sustentar o sentimento de não ser visto?
20) Como medir a distância entre as coisas e as palavras que correspondem a elas?
22) Existe passado mais passado do que outro? E passado mais presente?
23) Quanto de animalidade resta na humanidade?
30) Em que medida a esperança é só uma ilusão?
31) Como ver apenas as coisas postas, em vez de, nelas e com elas, ver coisas que não estão aqui?
32) Que marcas do passado sobrevivem em meus gestos?
39) Quando se aprende demasiado?
41) O que uma lista de realizações diz a respeito de uma vida?
43) Como fazer com que o tempo seja verdadeiramente livre?
46) Como ver ou ouvir sem julgar? Como suspender o ímpeto de encontrar significado?
49) Por que fizemos essa escolha?
50) Quanto mundo cabe em mim?
55) Quando termina?
56) Existe alegria neste fazer?
57) A obra de arte é parte do mundo ou a sua recusa?
62) Como dizer de agora sem ser evidente?
64) Que saber incide/insiste/existe na matéria?
68) Toda obra contém um público?
71) Repetir é reiterar, ampliar ou esvaziar?
72) Deixamos de fato algo para trás?
77) Existe diferença entre nós e eles?
79) Como ser mais do que o que eu conheço?
80) Como é possível raciocinar sobre algo que é essencialmente sensível?
82) Por que é tão difícil observar com atenção plena?
87) Como tropeçar na lisura?
96) Uma experiência pode perdurar sem ganhar forma?
97) Como é possível uma coisa familiar parecer tão diferente de uma hora para outra?
98) Quanto tempo precisamos para morrer?
100) Por que naturalizamos até mesmo as imagens mais horríveis?
103) É possível que exista hora certa?
108) Para que salvação?
112) Ler histórias nas imagens é o mesmo que encontrar palavras nelas?
116) Ainda é possível falar em belo?
117) A educação do olhar é fruto de um projeto?
122) Que diferença uma palavra pode fazer?
123) O que significa ser tocado por uma imagem?
125) Existe preço justo a pagar pelo capital?
128) Cadê a capacidade de tomar uma atitude diante da indignação?
132) Por que não questionar?
140) De quem é a culpa: do monumento ou de quem o sustenta?
142) Que vestígios deixamos do que não fizemos?
143) Por que demorou tanto?
147) Que diferença faz o detalhe?
148) Como tornar visível somente o visível, sem que com ele apareça qualquer invisível?
153) Em primeiro lugar vem o medo?
155) A imagem pode ser apartada da narrativa?
157) Mais luz para maior visibilidade ou para intensificar as sombras?
160) Como transformar e ainda assim me reconhecer no que faço?
161) Qual é o oco da minha vida?
162) Que ordem pode haver num mundo que tem a morte?
163) Como reconhecer a presença da arte?
165) Como duvidar da realidade estando presente no mundo?
166) Como tornar mais real o que existe?
167) O conhecimento terá mesmo que sacrificar populações inteiras que nele não cabem?
168) Uma existência pode conquistar por si própria sua legitimidade (ou seu direito de existir)?
170) O que é preciso limpar do campo de visão para poder ver melhor?
171) Como saber se não estou sendo atraído por quimeras?
173) O que devo me dedicar a tornar real?
175) Como estar fora estando dentro e permanecer dentro estando fora?
178) Quantas coisas não vou poder nunca mais deixar de saber?
184) Existe uma queda da qual não preciso me levantar?
185) Como identificar o ponto exato em que deixo de ter certeza?
186) Como é possível um tirano ainda ter lugar?
191) Chorar pelo que se foi ou cuidar do que permanece?
195) Por que ainda tolerar tanto?
196) Como identificar preciosidades no banal?
199) Quanto dura um gesto mínimo? Medimos isso em unidade de tempo?
204) Por que insistir?
207) É possível escrever para alguém além de si próprio?
208) Ser influenciado ou pensar junto?
209) Por que acredito ser ocidental?
213) Por quais motivos tão poucos conhecem?
216) Alguma sensibilidade ainda?
217) Como apreciar a beleza conforme seu próprio projeto, em vez de a estimar com o meu preconceito?
218) Que tal criar um cemitério para o que não deu certo? Ou um museu?
220) Como demolir a casa?
221) Quando foi a última vez?
223) É possível haver relação quando não existe compreensão?
228) Baseado em que devo afirmar que haverá amanhã?

Quero acrescentar uma pergunta a essa seleção, que não consta em minha caderneta, mas que continua a me instigar dia após dia: como pode, um recém-nascido, já reconhecer a intenção de um sorriso?

sábado, 27 de novembro de 2021

AMOR DE ÓCULOS — UMA RETRATAÇÃO

Foto de Mariana Beltrán
Seus olhos me convocam 
para mais uma aventura 
a criança no colo 
o dia após dia o 
favor, não esquece 
me tira o sono 
olhos cansados, braços estendidos 
na minha direção 
tudo ainda por fazer 
só o desejo pronto 
a vida correndo solta 
o esforço para agarrar o possível 
tão forte, o que resta 
desta nossa fortuna 
são seus olhos 
atrás da armação 
das lentes engorduradas 
minha insistência em elogiá-los 
em pedir que tire os óculos 
essa insensibilidade minha de não ver 
que eles fazem parte de você 
de não perceber a sua beleza neles 
inclusive quando estão na mesinha de canto 
sugerindo que você está por perto 
como sempre, meu amor.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

A RAZÃO DE BEATRIZ MILHAZES

O diamante (2002), de Beatriz Milhazes

Me surpreendo quando Beatriz Milhazes fala sobre a importância da razão em seu trabalho artístico, que sempre me pareceu fundamentalmente sensível. “Existe uma geometria por trás, embora minha pintura não possa se resumir a ela”, explica. Esse fascínio pelo aspecto racional tem origem em seu primeiro emprego como professora num colégio Montessori, que a ajudou a desenvolver o raciocínio sobre o próprio fazer. A ponto de ela afirmar que seu trabalho trata, sobretudo, de processos. E o que seriam eles? Técnicas, como por exemplo a de monotransfer, que desenvolveu pesquisando materiais e maneiras de aplicar a tinta – na prática, são monotipias feitas com tinta acrílica numa espécie de filme plástico, que Beatriz depois gruda na tela, construindo a imagem sem esboços preparatórios.

Outro dos seus processos de criação seria os desafios que ela se propõe. “A cada período, quero acrescentar novos elementos e preciso, assim, lidar com sua presença na imagem”, diz. Rendas, flores, arabescos, vestígios barrocos, crochês, folhagens, retalhos, frutas. Pergunto se ela tem a preocupação de desenvolver uma “visualidade brasileira”, arriscando afirmar uma identidade nacional. Beatriz gosta muito de Tarsila do Amaral e da nossa arte popular, que estão entre as suas principais referências, junto com o colorido de Matisse e o pensamento sistemático de Mondrian. Ela é também uma das nossas artistas mais conhecidas e valorizadas no exterior, o que sem dúvida traz indagações sobre a sua terra natal. “Minha origem me torna profundamente relacionada com este lugar”, comenta; e conclui que “não adianta aplicar aqui um aprendizado estrangeiro porque ele sempre será de certo modo incompatível; essa é a lição deixada por nossos modernistas”.

Beatriz Milhazes produz uma visualidade autêntica, que escapa dos estereótipos ao mesmo tempo em que valoriza o que é próprio da nossa cultura. Sem receio de se misturar ao tradicional e ao decorativo, ela atualiza os elementos que busca nesses territórios. “Através da arte decorativa é possível contar uma história da humanidade”, justifica. “O trabalho plástico obriga o artista a se haver com essa história, a elaborar um pensamento e a inventar com isso algo seu”.

Suas cores vêm dos tecidos do carnaval brasileiro, assim como o movimento e a alegria. Em 1995, quando a artista deixou de usar uma cola de tom ocre – por sugestão de técnicos do museu norte-americano onde expunha –, suas pinturas ganharam uma vivacidade contagiante. “A cor tem relação com a vida”, e com essa crença Beatriz estabelece um vínculo especial entre as pinturas e a realidade nossa de cada dia. Está aí aquela sensibilidade que extravasa a geometria e que sem dúvida dialoga com o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, com a Roda dos Prazeres de Lygia Pape, com os Objetos Relacionais de Lygia Clark, artistas de geração anterior que também partiram de uma racionalidade – a concretista, no caso – e foram além.

Benguelé (2020), de Beatriz Milhazes

Nossos olhos ficam encantados diante de suas pinturas. Existe nelas uma beleza, mas também um movimento incessante, rodopios, reviravoltas; um encantamento mágico, difícil de localizar, tamanha a sua complexidade. Nada é simples e muito menos pacífico. “Quero uma obra que ofereça uma possibilidade de vertigem”, explica ela. “Uma estridência, o contraste das disputas”. Em suas obras há embates por espaços, intensidades, atenção; tensionamento próprio daquilo que é vivo e que não se deixa calar.

“Até mesmo o meio cultural pode ser fascista em relação a ideias e fazeres. Liberdade é fundamental em todos os lugares”, afirma a artista, que voltou às origens de docente ao oferecer atividades para crianças como parte do programa educativo de sua última exposição no MASP. Oportunidade de defender a liberdade experimentada desde a infância, quando desenhava muito. Mais tarde, decepcionada com a faculdade de jornalismo, contou com o incentivo da mãe, professora de História da Arte, ao se inscrever num curso de verão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Revendo sua trajetória, ela destaca a importância do aprendizado com o educador britânico Charles Watson. “Achei desafiante porque não entendia nada do que ele falava”. Essa confissão diz muito sobre a ousadia de sua personalidade e sua obra, cujo ponto de virada aconteceu no Salão Nacional da Funarte, em 1983. A ocasião lhe rendeu um convite para participar, ainda muito jovem, da famosa exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada no ano seguinte.

Atualmente, ganhando mercados na Ásia depois de se consolidar nas Américas e na Europa, a artista tem repensado as narrativas que acompanham sua obra pictórica. “Os chineses, por exemplo, têm como referência outra história da arte, não sabem o que se passou até chegar a minha geração”, explica. “Eles enxergam meu trabalho daqui para frente”.

De todo modo, Beatriz se interessa por algo capaz de sensibilizar qualquer cultura: o tracejar humano, a manufatura, o rastro de quem produz objetos estéticos. É isso que se propõe investigar. Apesar de todos os elementos figurativos que apresenta, ela se considera uma artista abstrata. “O pensamento é abstrato”, diz, mais uma vez se referindo à implicação geométrica que estrutura suas composições. Passados meses de elaboração, a pintura ganha camadas, e o espectador dificilmente consegue identificar nelas algum resquício da racionalidade que a originou. E tudo bem, não é necessário demonstrar, “o trabalho de arte visual deve se sustentar sem discursos”.

Quero saber dos títulos, que são curiosos. “Eles vêm por último e são muito importantes. Devem abrir as possibilidades de apreensão”. Não à toa, Beatriz dedica a eles um tanto de criatividade, assim como ao restante de sua obra. Criatividade, sensibilidade e, quem diria, alguma razão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

SOBRE ERROS

Foto de Inge Poelman

Se de forma antecipada
eu soubesse das coisas
que quase tudo daria certo e afinal
o que não daria importa pouco, ah
se eu tivesse sido informado que
para o que não deu certo
e fosse ainda importante
haveria perdão
teria eu agido diferente
teria mais paciência, talvez
teria dito que amava, teria
ido aonde não tive coragem
sonhado ininterruptamente
arriscado mais, errado menos
por certo
teria deixado de fazer, e assim
teria deixado de viver uma parte, ah
mas que coisa
esta minha vida mediana
feita de altos e baixos
alegrias e tristezas
companhia e solidão e sabores e dissabores e
você já entendeu, logo
sua vida deve ser também assim
ambas têm lá alguma autenticidade
– os erros a comprovam
e por mais que saibamos perfeitamente
a realidade é que corremos e tropeçamos
e caímos e levantamos e
corremos sem poder fugir
disto que nos forma
e com o tempo me fez
careca de tentar aprender.