"Verdadeiramente desconsolador seria o conhecimento útimo ter ainda a forma da objetualidade. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade."
Giorgio Agamben
(no livro Ideia da Prosa)
terça-feira, 6 de agosto de 2013
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
PENSAMENTO EM DEVIR
Este texto é complementar à apresentação da mostra DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes, no Centro de Educação Municipal Adamastor (Guarulhos/SP). Se você não leu o primeiro texto, está aqui.
“O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação (...). Apenas a matéria, apenas a potência do pensamento”, escreveu o filósofo Giorgio Agamben sobre Damáscio, que no século VI quis encontrar uma espécie de verdade final, única e absoluta. Até que a percebeu, quem diria!, na folha em branco que aguardava seus escritos. Em forma de potência. A única forma que a sustentaria.
O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.
Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.
Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.
Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.
Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.
Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.
Clique no convite para ampliá-lo. |
O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.
Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.
Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.
Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.
Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.
Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.
sexta-feira, 26 de julho de 2013
DISSOLUÇÃO: NOVA EXPOSIÇÃO DE FELIPE GÓES EM GUARULHOS
Eis o convite para a abertura de mais um trabalho que realizei em parceria com o artista Felipe Góes. Quem puder comparecer será muito bem vindo. Quem não puder, dê uma passada depois, ficou bem bacana.
Por fim, abaixo do convite há uma breve leitura das obras expostas, escolhidas porque evidenciam uma questão muito presente no trabalho do artista e, de certo modo, no pensamento artístico contemporâneo.
Clique na imagem para ampliá-la. |
Certa vez, Felipe Góes contou que quatro vacas se materializaram em uma de suas telas, o que sugeria um pasto no lugar da grande mancha verde que já estava pintada. Uma delas sumiu logo, a segunda demorou mais, a terceira e a quarta se foram em seus próprios tempos. Nenhuma vaca restara quando o artista deu a obra por terminada; tampouco o pasto permanecera o mesmo – podia ser um brejo, um lago, um acúmulo de tinta. Não se tinha certeza de mais nada. Exceto de que havia ali um complexo registro de intenções.
Porque o pensamento do artista se manifesta na tela, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Não parte de um projeto já estruturado, não tem uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Tudo se processa no gesto poético, no ato criador da prática artística. Linhas de força, manchas de expressão, camadas de sentimentos: anseios, vontades, rancores, arrependimentos, ilusões, desapontamentos, alegrias, ambiguidades... O assunto se transforma, ganha corpo e se dissolve diante dos olhos para reaparecer adiante, não exatamente igual nem completamente diverso, implicado na matéria pictórica – ou desaparece sem voltar jamais. Assim se realiza o processo criativo de Felipe Góes.
Quando sabemos disso, fica evidente que esta forma apresentada pela pintura é, dos embates vividos, apenas uma etapa que o artista decidiu preservar. Tal suposto inacabamento, por sua vez, inspira a vontade criativa de quem entra em contato com a obra e passa, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar suas próprias histórias, a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.
Algumas das ideias acima estão desenvolvidas num texto complementar, que você lê aqui: Pensamento em Devir
quinta-feira, 25 de julho de 2013
quarta-feira, 24 de julho de 2013
CONTAMINAÇÃO CULTURAL
Pouco antes de falecer, Jacques Derrida teria dito que entendia sua obra como a de um epidemiólogo, pois foi sempre uma tentativa de inserir o outro no eu. Não sou familiarizado com aquela filosofia; quem me contou isso, durante uma entrevista, foi Ricardo Basbaum. Na ocasião falávamos de certo tipo de contaminação pela cultura, à qual estamos suscetíveis de uma maneira ou de outra.
Pois tudo aquilo que vivenciamos, que experimentamos, que nos inquieta é percebido por nossos corpos, apreendido pelos sentidos, incorporado. Não se trata de consciência apenas, mas de um conhecimento que extravasa as barreiras da razão e habita o corpo inteiro, fica impregnado na carne. Nós reagimos àquela ação cultural produzindo anticorpos. Quer dizer, apreendemos o que nos invade, processamos, produzimos certo tipo de reação. Tudo o que resta dessa experiência cultural permanece registrado naquilo que somos, e o carregaremos pelo resto da vida na memória do corpo.
Fiquei com a ideia a martelar. Foi assim que me dei conta do paradoxo: o corpo produz anticorpos. Trata-se de uma figura de linguagem, claro. Cujo objetivo não é tornar o homem imune à cultura, o que seria um equívoco; ao contrário, o conceito ajuda a compreender que nem todo conhecimento pertence ao território da razão, como acredita certa herança racionalista de séculos atrás que ainda prevalece nas mais banais das situações. Além de termos consciência dos nossos corpos, é também por meio deles que a consciência atua. Ou seja, corpo e consciência não existem isoladamente; eles formam uma só coisa, coincidem no ser. Num corpo-consciência.
Conforme explica José Gil, "não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência". Na prática, isso significa que todo conhecimento é, de certo modo, um conhecimento sensível. Que é por meio de afetações – aquilo que acontece ao redor e nos sensibiliza – que descobrimos as coisas do mundo. Conhecer pressupõe estabelecer uma relação afetiva com o mundo, do qual nós próprios somos parte – somos feitos da mesma matéria do mundo, diria Maurice Merleau-Ponty.
Se essa forma de conhecer parece estranha num primeiro momento – e, com sorte, plausível num segundo –, imagine como transformaria o nosso dia a dia. Na escola, por exemplo, onde a decoreba, prática ainda tão comum, parece também tão precária. Onde aprender "na marra" não proporciona mais do que desgosto, impedindo qualquer relação sensível com a matéria. Mesma escola em que os trabalhos do corpo – dança, esportes... – ocupam um lugar menor, quase sempre reduzidos a uma questão de preparo físico. Isto para citar apenas uma ocasião em que o conhecimento imposto simplesmente não opera – é necessária uma abertura do ser em direção ao outro. Disposição, acolhimento.
Para José Gil, "a contaminação afetiva seria assim o exemplo mais comum de contágio: nada mais banal do que a transmissão imediata da expressão emotiva de um rosto, lágrimas ou riso que induzem em outrem mais lágrimas e mais riso".
Nossas memórias, por sua vez, são memórias corporais, no sentido de que habitam o corpo e também o constituem. Não estão "guardadas na mente ou na cabeça", como se a consciência fosse uma instância superior ou como se fosse possível fragmentar o corpo em especialidades [médicas?]. Não se separa um pedaço sem afetar o restante, assim como não se separa corpo e mente – quando um deixa de existir, o outro também sucumbe. A memória está no corpo e, dependendo do que evoca, é possível senti-la. Lembranças carinhosas acalentam, um trauma arrepia, uma perda dói, uma paixão amolece as pernas, a ira enrijece o coração, um acanhamento aquece as bochechas e assim por diante. O caminho inverso também é possível: o frio remete às férias no Chile; o abraço, a uma experiência de infância etc.
Existem ainda fantasmas que assombram nossos corpos. Presenças ausentes que deixam marcas e reavivam sensações, que interferem no presente vindas, muitas vezes, de um além-consciência. Fantasmas que nem sempre reconhecemos e com os quais é difícil lidar. Estes sim corrompem, desconfortam, provocam sensação de desmembramento; podem levar ao grave sofrimento psíquico.
Alguns artistas contemporâneos trabalharam essas questões, e desconheço quem se aprofundou tanto quanto a brasileira Lygia Clark, cuja obra desembocou numa espécie de prática terapêutica denominada Estruturação do Self. Dos museus, ela migrou para instituições psiquiátricas, fundando um novo lugar nesse misto ambíguo de arte e clínica, que não é exatamente um nem outro.
"É precisamente do self, segundo Winnicott, que se extrai o sentimento de existir, a capacidade de uma experiência total, a sensação de participar na construção da realidade de si e do mundo que ela gera, propiciando a impressão de que a vida tem sentido", escreveu Suely Rolnik.
Lygia Clark mostrou que não apenas os corpos são contaminados pela cultura: numa dialética própria, também cada pessoa contamina o universo cultural, afetando a ele e às demais. É uma via de duas mãos. Duas entidades que coincidem sem que uma ocupe o lugar da outra e sem que seja possível separá-las. Cada um de nós está conectado a tudo o que se produz e que se entende por cultura, sendo por ela responsável. Com nossos gestos, a cultura ganha corpo; por meio da experiência cultural, o ser ganha consistência.
Obs.: A versão deste texto publicada no Correio Popular foi sutilmente reduzida pelo autor.
Pois tudo aquilo que vivenciamos, que experimentamos, que nos inquieta é percebido por nossos corpos, apreendido pelos sentidos, incorporado. Não se trata de consciência apenas, mas de um conhecimento que extravasa as barreiras da razão e habita o corpo inteiro, fica impregnado na carne. Nós reagimos àquela ação cultural produzindo anticorpos. Quer dizer, apreendemos o que nos invade, processamos, produzimos certo tipo de reação. Tudo o que resta dessa experiência cultural permanece registrado naquilo que somos, e o carregaremos pelo resto da vida na memória do corpo.
Fiquei com a ideia a martelar. Foi assim que me dei conta do paradoxo: o corpo produz anticorpos. Trata-se de uma figura de linguagem, claro. Cujo objetivo não é tornar o homem imune à cultura, o que seria um equívoco; ao contrário, o conceito ajuda a compreender que nem todo conhecimento pertence ao território da razão, como acredita certa herança racionalista de séculos atrás que ainda prevalece nas mais banais das situações. Além de termos consciência dos nossos corpos, é também por meio deles que a consciência atua. Ou seja, corpo e consciência não existem isoladamente; eles formam uma só coisa, coincidem no ser. Num corpo-consciência.
Conforme explica José Gil, "não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência". Na prática, isso significa que todo conhecimento é, de certo modo, um conhecimento sensível. Que é por meio de afetações – aquilo que acontece ao redor e nos sensibiliza – que descobrimos as coisas do mundo. Conhecer pressupõe estabelecer uma relação afetiva com o mundo, do qual nós próprios somos parte – somos feitos da mesma matéria do mundo, diria Maurice Merleau-Ponty.
Se essa forma de conhecer parece estranha num primeiro momento – e, com sorte, plausível num segundo –, imagine como transformaria o nosso dia a dia. Na escola, por exemplo, onde a decoreba, prática ainda tão comum, parece também tão precária. Onde aprender "na marra" não proporciona mais do que desgosto, impedindo qualquer relação sensível com a matéria. Mesma escola em que os trabalhos do corpo – dança, esportes... – ocupam um lugar menor, quase sempre reduzidos a uma questão de preparo físico. Isto para citar apenas uma ocasião em que o conhecimento imposto simplesmente não opera – é necessária uma abertura do ser em direção ao outro. Disposição, acolhimento.
Para José Gil, "a contaminação afetiva seria assim o exemplo mais comum de contágio: nada mais banal do que a transmissão imediata da expressão emotiva de um rosto, lágrimas ou riso que induzem em outrem mais lágrimas e mais riso".
Nossas memórias, por sua vez, são memórias corporais, no sentido de que habitam o corpo e também o constituem. Não estão "guardadas na mente ou na cabeça", como se a consciência fosse uma instância superior ou como se fosse possível fragmentar o corpo em especialidades [médicas?]. Não se separa um pedaço sem afetar o restante, assim como não se separa corpo e mente – quando um deixa de existir, o outro também sucumbe. A memória está no corpo e, dependendo do que evoca, é possível senti-la. Lembranças carinhosas acalentam, um trauma arrepia, uma perda dói, uma paixão amolece as pernas, a ira enrijece o coração, um acanhamento aquece as bochechas e assim por diante. O caminho inverso também é possível: o frio remete às férias no Chile; o abraço, a uma experiência de infância etc.
Existem ainda fantasmas que assombram nossos corpos. Presenças ausentes que deixam marcas e reavivam sensações, que interferem no presente vindas, muitas vezes, de um além-consciência. Fantasmas que nem sempre reconhecemos e com os quais é difícil lidar. Estes sim corrompem, desconfortam, provocam sensação de desmembramento; podem levar ao grave sofrimento psíquico.
Alguns artistas contemporâneos trabalharam essas questões, e desconheço quem se aprofundou tanto quanto a brasileira Lygia Clark, cuja obra desembocou numa espécie de prática terapêutica denominada Estruturação do Self. Dos museus, ela migrou para instituições psiquiátricas, fundando um novo lugar nesse misto ambíguo de arte e clínica, que não é exatamente um nem outro.
"É precisamente do self, segundo Winnicott, que se extrai o sentimento de existir, a capacidade de uma experiência total, a sensação de participar na construção da realidade de si e do mundo que ela gera, propiciando a impressão de que a vida tem sentido", escreveu Suely Rolnik.
Lygia Clark mostrou que não apenas os corpos são contaminados pela cultura: numa dialética própria, também cada pessoa contamina o universo cultural, afetando a ele e às demais. É uma via de duas mãos. Duas entidades que coincidem sem que uma ocupe o lugar da outra e sem que seja possível separá-las. Cada um de nós está conectado a tudo o que se produz e que se entende por cultura, sendo por ela responsável. Com nossos gestos, a cultura ganha corpo; por meio da experiência cultural, o ser ganha consistência.
Obs.: A versão deste texto publicada no Correio Popular foi sutilmente reduzida pelo autor.
quinta-feira, 4 de julho de 2013
COM-TEMPO
Agora,
Quando começou?
O agora,
Quando vai terminar?
Agora.
Agora.
Agora.
Neste inexato instante.
Tempo que sinto
Muito.
Agora.
Quando começou?
O agora,
Quando vai terminar?
Agora.
Agora.
Agora.
Neste inexato instante.
Tempo que sinto
Muito.
Agora.
quinta-feira, 27 de junho de 2013
terça-feira, 25 de junho de 2013
O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA
Quando nós conhecemos apenas uma versão da história, corremos o risco de ela se tornar absoluta.
Quando assumimos essa história como verdade, o preconceito passa a nos habitar.
Quando reproduzimos esse discurso, provocamos uma violência contra o outro.
Isso tudo acontece inclusive quando se tem a melhor das intenções.
Autenticidade, mídia, poder, discernimento, coletividade, estereótipos, dignidade, diferenciação.
Na curta e emocionante palestra intitulada O perigo da história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie mostra como a questão está mais próxima do que supomos. Ela perambula em nosso cotidiano, em nossas atitudes, em nossas escolhas e palavras. Vale a pena assistir aqui:
"Todas essas histórias me fazem quem sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram."
"Quando rejeitamos a história única, quando nos damos conta de que não existe apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso."
Saiba mais sobre Hibisco Roxo, livro de Chimamanda Ngozi Adichie publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Site oficial (em inglês): chimamanda.com
Quando assumimos essa história como verdade, o preconceito passa a nos habitar.
Quando reproduzimos esse discurso, provocamos uma violência contra o outro.
Isso tudo acontece inclusive quando se tem a melhor das intenções.
Autenticidade, mídia, poder, discernimento, coletividade, estereótipos, dignidade, diferenciação.
Na curta e emocionante palestra intitulada O perigo da história única, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie mostra como a questão está mais próxima do que supomos. Ela perambula em nosso cotidiano, em nossas atitudes, em nossas escolhas e palavras. Vale a pena assistir aqui:
"Todas essas histórias me fazem quem sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram."
"Quando rejeitamos a história única, quando nos damos conta de que não existe apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso."
Chimamanda Adichie
Saiba mais sobre Hibisco Roxo, livro de Chimamanda Ngozi Adichie publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Site oficial (em inglês): chimamanda.com
sexta-feira, 21 de junho de 2013
AS REDES SOCIAIS
Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998 – um livro de rara importância e dos mais variados interesses, porém esgotadíssimo, para azar de todos. Ler aquelas cartas foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne. Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Ambos eram pobretões de dar pena, às vezes faltava dinheiro até para selar o envelope. Mesmo assim, falavam de tudo um pouco em textos longos, em que revelavam muitas inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças, desejos e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso. Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. O mesmo valia para as respectivas obras. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, para as questões da psique, para o homem em desacordo com o sentimento de si, em busca de liberdade. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Em suma, completavam-se, compreendiam-se, solidarizavam-se; ainda que se soubessem muito diferentes um do outro. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.
Existiu outro movimento consecutivo, envolvendo cartas, que nada tem a ver com a correspondência entre Hélio e Lygia. Refiro-me à Arte Postal, que ganhou diversos adeptos e da qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo de arte conceitual abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas obras são de artistas que permanecem desconhecidos, enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.
Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: devido ao meu fascínio por canetas-tinteiro, adquiri o hábito de trocar cartas com aficionados do Brasil e do mundo. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Elas servem para amostras de tinta, aulas de caligrafia, relatos de experiências com marcas e modelos etc. Também servem para manter amizades. Pois o hobby me incentivou a enviar cartas inclusive a pessoas que não dão a mínima para canetas, e elas foram correspondidas. Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi com isso tudo que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.
Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e por conta das canetas descobri que o antigo sistema é também interessante, em sua medida.
Falando em demora, já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o país, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração. Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria impossível mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo correto simplesmente circula no canal inadequado.
Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão. Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.
Lygia Clark, de certo modo, antevia isso tudo. Tanto que, em 1971, afirmou ao jornalista que a entrevistava, recusando o título de cientista da arte: “É muito difícil hoje botar um limite nas categorias, mesmo entre coisas diferentes, como Ciência, Psicologia e Arte, que estão tendendo a convergir para um ponto só, que, no fundo, seria a comunicação”.
Pensamento bem contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, nenhum nó é mais importante do que o outro, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. As correntes de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século XX, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.
*Imagens: Metaesquemas, de Hélio Oiticica (fonte: Itaú Cultural – Programa Hélio Oiticica). Este texto foi publicado no Correio Popular em versão resumida.
quinta-feira, 20 de junho de 2013
CURAR DE QUÊ?
"Existem muitos modos de ser mulher, de ser homem, de ser homossexual, de ser bissexual, de ser transexual. As classificações são sempre uma construção para orientar a percepção, organizar o mundo, e também para manipular e controlar. E a realidade sempre escapa a elas."
Este artigo de Cristina Veiga Judar veio na hora certa. Pois, por meio da arte, ajuda a pensar as atitudes equivocadas do Infeliciano e sua turminha machochô. Leia aqui: Entre ele e ela, quem? (Revista da Cultura nº 71)
quarta-feira, 19 de junho de 2013
A CULTURA ESTÁ NAS RUAS
A cultura está onde o povo está. Veja imagens aéreas dos protestos que têm mobilizado São Paulo. É lindo demais.
terça-feira, 18 de junho de 2013
DIREITO AO GRITO
Reproduzo aqui texto publicado pela editora Cultura e Barbárie. Clique nas imagens para ampliá-las ou baixe o arquivo .pdf aqui: Direito ao Grito
sexta-feira, 14 de junho de 2013
CORPO E SUBJETIVIDADE
"Nossas memórias e planos, nosso passado e possibilidades
de futuro, existem na concretude de nossos
corpos e de nossas ações. O corpo mais que todo, a se
ultrapassar como ação orgânica e histórica, parte de
um mundo-ação. Corpo não identitário, impossibilitado
de isolar-se em um “si mesmo”. (...) Corpo-no-mundo, memória
concreta do passado todo superfície, colapsado no
presente, de onde se atualizam novas ações, as quais
são o futuro no agora, a concretude do vir-a-ser."
"Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundoexpressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro."
"Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações."
"O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corpo-rizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformandoos. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista."
"O corpo é abertura para o mundo – e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada."
"Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um “si mesmo”, mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico."
Trechos colhidos em DA DIVERSIDADE: UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE SUBJETIVIDADE, de Luis Artur Costa e Tania Mara Galli Fonseca
Leia o artigo completo aqui: Revista Interamericana de Psicologia, vol. 42, n. 3
"Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundoexpressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro."
"Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações."
"O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corpo-rizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformandoos. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista."
"O corpo é abertura para o mundo – e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada."
"Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um “si mesmo”, mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico."
Trechos colhidos em DA DIVERSIDADE: UMA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE SUBJETIVIDADE, de Luis Artur Costa e Tania Mara Galli Fonseca
Leia o artigo completo aqui: Revista Interamericana de Psicologia, vol. 42, n. 3
CONVITE PARA PALESTRA
O grupo de pesquisa de que participo está promovendo uma palestra na USP, seguida de debate, com o professor Dr. João Augusto Frayze-Pereira. O tema? IMPLICAÇÕES ENTRE ARTE E PSICANÁLISE. Quando? Sexta-feira próxima, dia 21 de junho, a partir das 16h30 (mais detalhes no convite abaixo). Vai ser bem legal. E vale trazer quantos acompanhantes quiser. Apareça!
Clique na imagem para ampliá-la. |
quinta-feira, 6 de junho de 2013
CORPO E CONSCIÊNCIA
"Importa insistir na ideia de que a consciência do corpo não nasce de uma operação que modifica o regime normal da consciência vígil, mas que constitui uma espécie de regime subjacente a todo o estado de consciência, mesmo o da mais pura consciência reflexiva. Não há consciência sem consciência do corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência."
José Gil, em Abrir o Corpo
José Gil, em Abrir o Corpo
sexta-feira, 24 de maio de 2013
UNIDADE E DIVERSIDADE DOS SENTIDOS
"Um cego sabe exatamente pelo tato o que são galhos e folhas, um
braço e os dedos da mão. Após cirurgia [que o faz enxergar] ele se
espanta ao encontrar "tanta diferença" entre uma árvore e o corpo
humano."
Maurice Merleau-Ponty
(1945, p. 259)
"Interrogando as coisas à sua maneira, cada um dos órgãos dos sentidos realiza uma síntese própria: é a diversidade dos sentidos. (...) No entanto, menos óbvia do que a diversidade é a unidade dos sentidos. Se, por um lado, as diferentes modalidades perceptivas nos dão diversos aspectos do mundo, constituem diferentes vias de acesso a um mesmo mundo. (...) E é necessário que todos os sentidos se abram ao mesmo mundo, do contrário os seres sensíveis com os quais eles nos põem em contato só existiriam para aqueles que os interrogam. Faltar-lhes-ia a plenitude do ser e não haveria condições para os percebermos como seres verdadeiramente existentes."
João A. Frayze-Pereira em Arte, Dor
(2010, p. 175)
Maurice Merleau-Ponty
(1945, p. 259)
"Interrogando as coisas à sua maneira, cada um dos órgãos dos sentidos realiza uma síntese própria: é a diversidade dos sentidos. (...) No entanto, menos óbvia do que a diversidade é a unidade dos sentidos. Se, por um lado, as diferentes modalidades perceptivas nos dão diversos aspectos do mundo, constituem diferentes vias de acesso a um mesmo mundo. (...) E é necessário que todos os sentidos se abram ao mesmo mundo, do contrário os seres sensíveis com os quais eles nos põem em contato só existiriam para aqueles que os interrogam. Faltar-lhes-ia a plenitude do ser e não haveria condições para os percebermos como seres verdadeiramente existentes."
João A. Frayze-Pereira em Arte, Dor
(2010, p. 175)
terça-feira, 21 de maio de 2013
TESTEMUNHA AURICULAR
É um projeto curioso, literalmente e literariamente. Literal porque exige prontidão para capturar conversas alheias, descobrir nelas o que há de incompleto, ambíguo e intrigante, ser enxerido mesmo. Literário porque as falas, devidamente apropriadas e transcritas, rendem livro, tornam-se públicas, voltam às ruas em novo formato. Ora, se um mictório retirado do banheiro se fez arte ao ser levado à sala de exposição, algumas frases recolhidas diretamente da boca do povo podem seguir a mesma lógica e se transformar em literatura quando fixadas no papel. Refiro-me ao livro Delírio de Damasco, criado às orelhadas por Veronica Stigger, a partir de conversas entreouvidas nas ruas da cidade.
O projeto, como eu dizia, veio ao mundo pela primeira vez a convite do SESC São Paulo, na Mostra de Artes de 2010. A proposta era realizar uma intervenção nos tapumes da unidade 24 de Maio, em construção na época. Veronica colou cartazes com frases soltas que ouviu durante suas caminhadas pelo local, devolvendo às ruas o que nelas se originou. O que há de escritura aí?, vão perguntar. Com certeza, os ouvidos afiados e o cuidado com a seleção dos textos – mais do que as canetadas propriamente ditas –, que conferem legitimidade ao projeto, situando-o nesse limiar entre a arte e as letras.
Tem frases para todos os gostos e desgostos, minha senhora, é pegar e levar. Exagerada, irônica, erótica, engraçada, polêmica... Sim, houve quem se ofendesse e enviasse reclamação ao SESC – mensagens que a escritora fez questão de ela mesma responder. Frases do tipo: “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?”, “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, “Um cara bacana. Mas ele não é normal. Se fosse, não dava o cu”. Conversas da vida privada, do baixo volume ou do baixo calão, que, escancaradas, ganham outra dimensão, expõem seus preconceitos, revelam sua violência disfarçada de intimidade. Por sob os panos, aceitamos numa boa a agressão que não nos atinge diretamente, somos capazes de nos divertir com ela e até de incentivá-la. Mas caem os panos e ninguém quer ser envolvido, ninguém sabe de nada, somos todos santos, com o livro do moralismo debaixo do braço.
De repente, aquilo que nos acostumamos a ouvir no dia a dia incomoda, provoca, nos força a recuar um passo. A piadinha fica séria, mordemos a língua. Somos levados a reagir, a refletir ou a tomar uma atitude qualquer. Esse é o fôlego do projeto de Veronica Stigger: revelar a violência implícita nas tagarelices por meio de outra violência, esta cometida sobre elas próprias, que consiste em arrancá-las da sua zona de conforto e explicitar seus significados mais secretos.
Tem ainda outra sequela. Ao menos aconteceu comigo. É prestar atenção no que se diz e também nas entrelinhas, naquilo que permanece subentendido. Desde o divertido contrassenso de “Você ouviu falar ou fui eu que disse?”, surgido num bate-papo com minha noiva, até a bronca meio paradoxal de um colega de trabalho que, louco da vida com a falta de respeito da equipe, gritou: “Vocês não têm educação, caralho?”. Sim, passei a dar trela à língua solta, a ouvir os palavrões que ela tem a compartilhar.
A multiplicidade de leituras daqueles textos é uma característica que os enriquece. Serve também de incentivo à criação espontânea, pois o que temos ali são pílulas ativadoras. A autora contou que leitores deram continuidade às frases, as quais também poderiam ser chamadas de Pré-Histórias, conforme as publicadas anteriormente na coletânea Os anões. Escrevendo começos, meios e fins no próprio livro, imaginamos quem proferiu, a quê se referia, com quem conversava, onde estava naquele exato instante. Em suma, completamos a cena, damos vazão à literatura que também nos cabe pró-criar.
“A minha língua é da boca pra fora”, diz o poema Língua Ordinária, de Davi Araújo. Concordo. É a língua que se ouve da boca do povo, que habita as ruas, que se faz comunicando, que beija mas também envenena, cuja vida imita a literatura e vice-versa, numa dialética apetitosa. A língua afeita a se perder por aí, a engolir seco, engolir sapo, enrolar-se em si mesma; língua que se fixa no muro ou no livro e muda de tom. O que você tem a dizer? Levante a voz!
A editora que publicou Delírio de Damasco não poderia ter nome mais pertinente: Cultura e Barbárie. Porque um pouco de cada – um pouco de cultura e um tanto de barbárie – apimenta nossa língua, arranca lágrimas, acentua o verbo, acrescenta um ponto de exclamação. Convém, portanto, prestar atenção ao que se diz. E também ao que se pensa antes de dizer, se for o caso, já que nem sempre isso acontece. Cuidado: a cidade tem ouvido!
O projeto, como eu dizia, veio ao mundo pela primeira vez a convite do SESC São Paulo, na Mostra de Artes de 2010. A proposta era realizar uma intervenção nos tapumes da unidade 24 de Maio, em construção na época. Veronica colou cartazes com frases soltas que ouviu durante suas caminhadas pelo local, devolvendo às ruas o que nelas se originou. O que há de escritura aí?, vão perguntar. Com certeza, os ouvidos afiados e o cuidado com a seleção dos textos – mais do que as canetadas propriamente ditas –, que conferem legitimidade ao projeto, situando-o nesse limiar entre a arte e as letras.
Tem frases para todos os gostos e desgostos, minha senhora, é pegar e levar. Exagerada, irônica, erótica, engraçada, polêmica... Sim, houve quem se ofendesse e enviasse reclamação ao SESC – mensagens que a escritora fez questão de ela mesma responder. Frases do tipo: “Me diz uma coisa, ele é débil mental ou só feio mesmo?”, “Minha mãe rezava para que eu não namorasse uma negra”, “Um cara bacana. Mas ele não é normal. Se fosse, não dava o cu”. Conversas da vida privada, do baixo volume ou do baixo calão, que, escancaradas, ganham outra dimensão, expõem seus preconceitos, revelam sua violência disfarçada de intimidade. Por sob os panos, aceitamos numa boa a agressão que não nos atinge diretamente, somos capazes de nos divertir com ela e até de incentivá-la. Mas caem os panos e ninguém quer ser envolvido, ninguém sabe de nada, somos todos santos, com o livro do moralismo debaixo do braço.
De repente, aquilo que nos acostumamos a ouvir no dia a dia incomoda, provoca, nos força a recuar um passo. A piadinha fica séria, mordemos a língua. Somos levados a reagir, a refletir ou a tomar uma atitude qualquer. Esse é o fôlego do projeto de Veronica Stigger: revelar a violência implícita nas tagarelices por meio de outra violência, esta cometida sobre elas próprias, que consiste em arrancá-las da sua zona de conforto e explicitar seus significados mais secretos.
Tem ainda outra sequela. Ao menos aconteceu comigo. É prestar atenção no que se diz e também nas entrelinhas, naquilo que permanece subentendido. Desde o divertido contrassenso de “Você ouviu falar ou fui eu que disse?”, surgido num bate-papo com minha noiva, até a bronca meio paradoxal de um colega de trabalho que, louco da vida com a falta de respeito da equipe, gritou: “Vocês não têm educação, caralho?”. Sim, passei a dar trela à língua solta, a ouvir os palavrões que ela tem a compartilhar.
A multiplicidade de leituras daqueles textos é uma característica que os enriquece. Serve também de incentivo à criação espontânea, pois o que temos ali são pílulas ativadoras. A autora contou que leitores deram continuidade às frases, as quais também poderiam ser chamadas de Pré-Histórias, conforme as publicadas anteriormente na coletânea Os anões. Escrevendo começos, meios e fins no próprio livro, imaginamos quem proferiu, a quê se referia, com quem conversava, onde estava naquele exato instante. Em suma, completamos a cena, damos vazão à literatura que também nos cabe pró-criar.
“A minha língua é da boca pra fora”, diz o poema Língua Ordinária, de Davi Araújo. Concordo. É a língua que se ouve da boca do povo, que habita as ruas, que se faz comunicando, que beija mas também envenena, cuja vida imita a literatura e vice-versa, numa dialética apetitosa. A língua afeita a se perder por aí, a engolir seco, engolir sapo, enrolar-se em si mesma; língua que se fixa no muro ou no livro e muda de tom. O que você tem a dizer? Levante a voz!
A editora que publicou Delírio de Damasco não poderia ter nome mais pertinente: Cultura e Barbárie. Porque um pouco de cada – um pouco de cultura e um tanto de barbárie – apimenta nossa língua, arranca lágrimas, acentua o verbo, acrescenta um ponto de exclamação. Convém, portanto, prestar atenção ao que se diz. E também ao que se pensa antes de dizer, se for o caso, já que nem sempre isso acontece. Cuidado: a cidade tem ouvido!
quinta-feira, 9 de maio de 2013
sábado, 4 de maio de 2013
HOFESH SHECHTER
"Arrebatador" é a palavra que melhor resume o espetáculo Political Mother, da companhia inglesa comandada por Hofesh Shechter, que assisti ontem no Auditório Ibirapuera. Com música ao vivo - das pancadas heavy metal aos violinos clássicos -, a banda dividia a atenção do público com os bailarinos, e todos dançavam juntos sob a opressão do totalitarismo. Havia momentos de escuridão, sentimentos de dor e compaixão, manifestação e repressão popular, tudo pura dicotomia, pontos de vida completamente apartados e extremistas. Lembrei o tempo todo do romance 1984 (George Orwell), daquele clima de sociedade vigiada e controlada, sobrevivendo à repressão. Pensei em campos de extermínio, em refugiados de guerra e também nos momentos singulares de força que surgem ali com objetivo de tornar a existência suportável. Tudo ilusão. Essa história toda sem narrativa, sem verbo, somente linguagem corporal e música, muita música alta para impulsionar os corpos e fazê-los falar. Foi lindo. O auditório estava lotado de uma maneira que eu jamais imaginaria. Se me perguntassem quantos brasileiros se interessariam por dança contemporânea, eu responderia "poucos". Mas seria uma resposta errada. Juntos, aplaudimos a companhia por longos e entusiasmados minutos. Saí de lá arrebatado.
Aqui tem mais informações sobre o festival: O Boticário na Dança
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