domingo, 8 de janeiro de 2012
FELIZ ANO NOVO (COM MARGEM DE ERRO DE 10 ANOS PARA MAIS OU PARA MENOS)
"Quando o mundo estiver acabando, venha para o Uruguai. Aqui ele ainda dura uns dez anos mais". Foi o que me disse o gerente de uma excelente vinícola de lá, localizada nos arredores de Montevidéu. Estávamos passeando pela propriedade. Ele me contava a história da empresa, do sistema de viticultura e de elaboração do vinho. Nas últimas três ou quatro décadas, uma grande quantia de capital estrangeiro chegou às vinícolas do Chile e da Argentina, resultando no salto de qualidade que colocou esses países na elite do circuito internacional, a ponto de competirem com nomes consagrados da Europa. No Uruguai, a tecnologia, os estudos científicos e os especialistas chegaram apenas no começo da década de 1990, e o país ainda está se profissionalizando. A promessa é grande, já que ali se produz vinho em dezesseis das dezenove províncias, ou seja, praticamente no território todo. Eles possuem ainda uma vantagem: a uva Tannat encontrou no Uruguai seu solo e clima favoritos, rendendo os melhores vinhos dessa variedade, que é bastante difícil de produzir.
Tudo isso para dizer que os nossos vizinhos não compartilham da mesma ansiedade política e econômica que sentimos por aqui, em especial nas metrópoles do Estado de São Paulo, de onde falo com maior conhecimento de causa. Aqui, trabalha-se praticamente o tempo todo, a correria diária resulta num trânsito caótico, tudo é lotado, a cultura do excesso impera e, num ciclo infinito de causa e consequência, o estresse, a falta de educação e o canibalismo corporativo se tornaram comportamento padrão. Não, lá eles leem jornais em cafés charmosos no trajeto para o escritório, caminham pela orla, voltam para casa antes de escurecer e saem à noite para papear com os amigos.
A senhora gorda e sorridente que me recebeu nos campos de outra vinícola, no interior do país, olhou para toda aquela tranquilidade natural ao seu redor, entre parreiras e oliveiras carregadas de frutos, e confirmou: não trocaria sua vida por nada. Os tais dez anos de atraso de que o gerente da primeira vinícola falou, de repente, me pareceram dez anos de avanço – uma década a mais de vida muito bem aproveitada.
Foi essa aparente incompatibilidade que me chamou a atenção em Joaquín Torres García, o artista plástico mais influente da história do Uruguai. Nascido em 1874, mudou-se para a Espanha dezesseis anos depois, viveu em diversos países-chave durante a efervescência do modernismo (França, Itália e Estados Unidos) e retornou à então provinciana Montevidéu em 1934, aos sessenta anos de idade, "com a ideia de fundar um importante movimento de arte construtiva que, enraizado numa profunda tradição universal, fosse, também, a expressão de uma arte própria, não apenas para o Uruguai, mas para toda a América". Palavras do catálogo da ótima retrospectiva de sua obra, que se encontra em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
De volta à origem, Torres García fez exposições, publicou livros, ministrou palestras, editou revistas especializadas e até mesmo criou uma associação de artistas modernistas, a AAC (Associação de Arte Construtiva); em outros termos, tentou sacudir o lugar para colocá-lo no circuito internacional de arte, polinizando conhecimento e incentivando a produção de seus conterrâneos.
Digo "tentou" sacudir porque, uma década mais tarde, em fins de 1940, o artista profere sua conferência de número 500 desde o retorno a Montevidéu. Nela, "expressa seu desânimo diante da impossibilidade de concretizar as ambições com que havia chegado ao Uruguai e decide que a AAC vai ser transformada, simplesmente, num espaço de estudo da Arte Construtiva".
Torres García falece em 1949. Seu legado, no entanto, alcança o sucesso que ele tanto almejara: suas ideias foram o estopim para tudo aquilo que o país vem produzindo desde então, mais ou menos como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral, Mario e Oswald de Andrade, entre outros dos nossos modernistas.
Torres García apresentou o futuro àquele país que "vive com uma década de atraso". Ele queria estar à frente de seu tempo e levar o Uruguai inteiro consigo, fazendo "do sul o seu norte", como defendia. Talvez, na ocasião de sua morte, ele tenha achado que o projeto fracassara. Hoje, porém, podemos afirmar que a arte contemporânea uruguaia é fruto do seu ímpeto idealista – uma conquista digna das maiores honrarias.
É bobagem afirmar que um país está atrasado em relação a outro assim, de maneira tão generalista; pior ainda é sinalizar a diferença no calendário. A afirmação que ouvi na vinícola era apenas uma piada, ironizando o estilo de vida praticado pelos uruguaios. Afinal, por mais visionários que sejamos, demoramos a nos adaptar às novidades – boa parte das crises existenciais que hoje em dia afetam a humanidade provém desse processo.
Sinceramente, acredito que a obra de Torres García nos ensina muito, não apenas sobre arte, mas também sobre a relação dela com a vida: buscar sempre inovar, crescer, desenvolver... mas também curtir ao máximo o momento presente. São meus planos para 2012.
*As imagens que ilustram esta crônica são do manuscrito New York (1921), de Joaquín Torres García. Clique para ampliá-las.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
PESSOAS PEQUENAS NA CIDADE GRANDE
Faz a gente pensar na peculiaridade da vida urbana, na efemeridade da existência e em nossa pequenez perante o entorno. Também põe em questão o próprio objeto de arte, já que os bonequinhos são abandonados e o único registro que resta daquelas interferências são as fotografias feitas pelo próprio artista. Essas fotografias assumem o papel de obra, transformam-se em livro, são comercializadas, participam de exibições etc.
Escolhi algumas imagens no site do artista para ilustrar este post (clique para ampliá-las). Você pode conferir outras aqui: Slinkachu_Little People
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
IT'S THE END OF WORLD AS WE KNOW IT
(clique na imagem para ampliá-la)
Fim dos jornais, fim dos discos, fim das cartas, fim dos livros, fim dos casamentos, fim da arte, fim dos bate-papos entre amigos. Cada vez que se inventa uma engenhoca, declara-se o fim de outra. Mas nada termina de verdade, certo? Não dá para acreditar nessas conclusões antecipadas.
Para 2012, previram o fim do mundo. Mas ele não vai acabar, claro – vai acabar a maneira como nós o conhecemos. Tudo para dar início a um mundo melhor, feito de alegrias, conquistas e amizades sinceras. Nisso dá para acreditar.
Como canta o R.E.M., "It's the end of the world as we know it. And I feel fine."
(É o fim do mundo como nós o conhecemos. E eu me sinto bem.)
Então, feliz ano novo!
Fim dos jornais, fim dos discos, fim das cartas, fim dos livros, fim dos casamentos, fim da arte, fim dos bate-papos entre amigos. Cada vez que se inventa uma engenhoca, declara-se o fim de outra. Mas nada termina de verdade, certo? Não dá para acreditar nessas conclusões antecipadas.
Para 2012, previram o fim do mundo. Mas ele não vai acabar, claro – vai acabar a maneira como nós o conhecemos. Tudo para dar início a um mundo melhor, feito de alegrias, conquistas e amizades sinceras. Nisso dá para acreditar.
Como canta o R.E.M., "It's the end of the world as we know it. And I feel fine."
(É o fim do mundo como nós o conhecemos. E eu me sinto bem.)
Então, feliz ano novo!
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
"Acabo de descobrir, com brusquidão e sem razão aparente, que menti a mim mesmo durante dez anos. As aventuras estão nos livros. E, naturalmente, tudo o que se conta nos livros pode realmente acontecer, mas não da mesma maneira. Era essa forma de acontecer que era tão importante para mim, que eu prezava tanto."
A náusea, de Jean-Paul Sartre
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
A ÓTIMA ESQUISITICE DE KARINA BUHR
Na primeira vez em que ouvi Karina Buhr, achei bastante esquisito. Eu tinha lido uma nota sobre o lançamento do disco Longe de onde em uma revista especializada e fiquei curioso; afinal, é uma estreia que ganhou boas recomendações, que conta com patrocínio da Natura* e com as parcerias talentosas de Edgard Scandurra, Fernando Catatau e Guizado. Baixei o disco gratuitamente do site da artista, ouvi uma faixa ou outra cujo nome me chamou a atenção e fiz uma busca no Youtube para assistir ao clipe Cara Palavra; no geral, achei tudo bastante esquisito, como disse no início.
Comecei então a questionar o que me causava tanto estranhamento. À primeira ouvida, acho que foi o próprio corpo do som – quando soube de mais essa jovem cantora despontando, esperava que ela fosse justamente isso, mais uma como as outras. O que já seria um grande mérito, dada a boa fase da nossa cena musical. Porém, vieram aquelas batidas fortes de coração nordestino, junto com o sotaque que carrega sua origem na ponta da língua; aquelas guitarras distorcidas conectadas diretamente dos fones aos meus ouvidos, bagunçando tudo por ali; aquela mistura muito bem dosada de rock, punk e percussão… fui pego desprevinido. Era uma música diferente, forte e com vontade de expressão.
As letras também dizem muito, vide a própria Cara Palavra, que abre o disco explorando os significados das coisas quando elas mudam de contexto, ou quando as pessoas que as utilizam se transformam. Tudo vira outro, tudo se multiplica. Karina vai unindo palavras para construir novas, acentuando a sílaba errada para sugerir o significado correto. É uma experiência puramente lírica. E também bastante divertida, que vai se desvendando ao longo de uma faixa tão breve e ao mesmo tempo tão ampla.
Outro exemplo bacana é Cadáver, em que as palavras “em defesa” e “indefesa” soam praticamente idênticas, revelando-se somente no contexto (“Sua dúvida é produto da sua escravidão / Mantenha então / Sua sanidade em defesa do seu estômago. / Se você pensou que tinha solução / Mantenha então / Sua integridade indefesa.”).
Não dá para analisar o disco inteiro aqui, até porque cada faixa deve encontrar seu próprio ouvido-metade e sussurrar ali seus segredos mais intrínsecos. Talvez você não se identifique com nenhuma, o que eu acho difícil, mas vale a pena tentar mesmo assim.
Se a esquisitice de Karina Buhr incomoda, isso é bom, é sinal de que existe algo novo e interessante em seu trabalho, algo distante do lugar-comum e que lhe dá evidência nessa fase tão fresca da música brasileira. O disco exige que a gente vença o estranhamento aos poucos, sem apressar o tempo, sem pular as faixas. A cada repetição, ele fica melhor.
Agora, quero saber aonde Karina Buhr vai nos levar. Espero que para bem longe de hoje.
*Projeto selecionado no Edital Nacional 2010 do Natura Musical.
Conheça o site da artista e baixe o disco gratuitamente: www.karinabuhr.com.br
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
ARTE E DOR NA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
“Temos que nos livrar das pegadas da cilada romântica que alia a criação à dor. Qualquer situação em que a vida se vê constrangida pelas formas da realidade e/ou o modo de descrevê-las produz estranhamento. Segue-se um desconforto que mobiliza a necessidade de expressar o que não cabe no mapa vigente, com a criação de novos sentidos, condição para que a vida volte a fluir. É nisso que consiste a experiência estética do mundo: ela depende da capacidade do corpo de fazer-se vulnerável a seu entorno, deixando-se tomar pela sensação da disparidade entre as formas da realidade e os movimentos que se agitam sob sua suposta estabilidade, o que coloca o corpo em ‘estado de arte’. É uma espécie de experiência do mundo que vai além do exercício de sua apreensão reduzida às formas, operado pela percepção e sua associação a certas representações, a partir das quais se lhes atribui sentido.”
Suely Rolnik, no catálogo da mostra Arquivo para uma obra-acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto
Foto: a artista brasileira Lygia Clark, criadora da obra Estruturação do Self (ver foto abaixo) e um dos principais assuntos de estudo da psicanalista Suely Rolnik.
Suely Rolnik, no catálogo da mostra Arquivo para uma obra-acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto
Foto: a artista brasileira Lygia Clark, criadora da obra Estruturação do Self (ver foto abaixo) e um dos principais assuntos de estudo da psicanalista Suely Rolnik.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
A SACOLINHA VERMELHA DO PAPAI NOEL
Fico imaginando a reação da criança ao abrir cada um dos pacotes e explorar o conteúdo, sorrindo com os amigos, colocando as roupas sobre o corpinho para ver se servem, procurando o brinquedo que deve estar ali, no meio daquela algazarra. Sempre há um brinquedo, uma caixa de bombons, um conjunto de roupas e um par de sapatos. É o que a instituição responsável pela tutela dessas crianças carentes pede a quem se dispõe a "adotá-las" no Natal.
As tais sacolinhas se popularizaram na agência onde trabalho. Este ano, foram mais de cinquenta, o que significa mais de cinquenta tentativas de proporcionar um Natal minimamente digno a alguém com condições menos – ou nada – favorecidas.
Entre os presentes, eu sempre acrescento dois, que considero imprescindíveis: um livro e uma cartinha. A presença de livros foi determinante em minha vida, e acredito que eles também podem ajudar essas crianças a superar as dificuldades que hoje se colocam para elas, seja por adquirirem o gosto pela leitura (sempre uma experiência positiva), seja pelo conteúdo (aprendizado e visão crítica), seja pelo convívio social que advém dali (emprestando o livro, lendo em conjunto com amigos ou ouvindo um adulto contar a história).
Em uma resenha de 1924, o filósofo alemão Walter Benjamin comenta que as crianças têm um apreço peculiar por todo tipo de detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Com esses detritos, elas constroem o mundo como lhes aprouver. Os elementos dos livros infantis também seriam exemplos dessa matéria-prima tão rica, que dá sentido à vida e nos impele a estabelecer parcerias com ela, contornando criativamente as reviravoltas, admirando suas ilustrações e inventando finais felizes.
Meus brinquedos mais interessantes foram a folha de papel em branco e as caixas de papelão. Com tinta, tesoura, cola e lápis de cor, tudo era possível, desde orbitar a Lua até desenterrar tesouros do fundo do mar. O papelão se transformava em carro, armadura, cabana ou rio. Lembro-me de como era gostoso brincar sem que outras preocupações interrompessem a fantasia, e suponho que, quanto tiver filhos, conseguirei recuperar um pouco da minha própria infância.
Por enquanto, fico com as crianças carentes. E com Walter Benjamin, que, em outros dois textos, agora de 1928, analisa a história cultural do brinquedo. Ele conta que a casa de bonecas, o cavalinho de pau e os soldadinhos de chumbo – entre muitos outros "papais" dos robôs articulados, sonorizados e iluminados de hoje, do videogame e dos bebês de plástico que mamam, choram e fazem cocô – surgiram em oficinas de entalhadores de madeira ou de fundição de metal e demoraram séculos para se popularizarem, assim como para serem produzidos por indústrias específicas.
O filósofo chama nossa atenção para algo que, em sua época, já era preocupante: os sonhos de consumo que os adultos projetam nas crianças direta ou indiretamente, pela publicidade ou pelas visitas ao shopping, e que as transformam em consumidores mirins cheios de decisão. Para ele, a bola, o bambolê e a pipa são tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos pais, ou seja, quanto mais atraentes, no sentido usual, mais se afastam dos instrumentos de brincar.
O filho de uma amiga adora os tupperwares da mãe, mais do que qualquer um dos brinquedos caros que não lhe faltam. Eu o vejo pular, manobrar os potinhos, fazer sons com a boca e se divertir num incrível mundo interior, e percebo que é disso que Benjamin fala – esses seriam os brinquedos de verdade, que instigam a curiosidade e a criatividade.
Os videogames também pertencem a essa categoria, ainda que os pais tradicionalistas não concordem. Porque, no meu modo de ver, os grandes vilões de hoje são: 1) os brinquedos que brincam sozinhos, deixando a criança apenas a acompanhar com os olhos suas estripulias pré-programadas; e 2) a precocidade, que faz meninos e meninas sentirem vergonha de brincar. Agora, se o futebol eletrônico parece mais interessante do que o pebolim ou o botão, é apenas porque essa é a realidade em que vivemos. Isso não significa que a atividade lúdica na frente da TV é pior do que aquela realizada em torno da mesa, do tabuleiro, na rua... O mundo mudou e, às vezes, a brincadeira só precisa de uma compensação. E de compreensão.
Até porque os próprios adultos estão sempre na frente da tela da televisão, do computador e do celular. Então, como vamos exigir que as crianças ajam diferente? Se algo nessa história permanece intacto é o fato de que continuamos a ser o maior exemplo para elas.
Uma observação bacana de Walter Benjamin é que "a ideia determina o brinquedo", não o contrário. Quer dizer, a imaginação da criança transforma o brinquedo a seu bel-prazer, fazendo um carrinho de plástico correr no deserto ou no autódromo, falar e fazer amigos. Por isso, quando um adulto briga com a criança porque ela está brincando "errado", o errado ali é ele próprio, cortando as asinhas daquela imaginação de um jeito tão mesquinho. Brincadeiras saudáveis devem sempre ser incentivadas, não importa o que diz o manual de instruções.
Com livro e brinquedo, eu tento avivar a magia do Natal em uma criança. Para mim, esse é o verdadeiro significado da data, independentemente de religião – sua origem cristã se diluiu na cultura comum e, hoje, qualquer pessoa pode aproveitar a oportunidade para melhorar o mundo, nem que seja um pouquinho só, presenteando alguém com esperança, carinho e alegria.
Ora, pensando friamente, isso é o mínimo que devemos fazer para devolver à sociedade um pouco do que ela nos permitiu conquistar. Mais do que bondade ou moralismo, contribuir para a felicidade de todos é uma obrigação social. Afinal, estamos nessa juntos.
Sim, eu acredito em Papai Noel. Pois os livros infantis, os brinquedos e a filosofia estão aí para comprovar: basta imaginar – e se dedicar – que toda fantasia se realiza.
*Ilustrações: 1) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 2) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 3) Catedral de São Paulo vista do Tâmisa (1906), de André Derain.
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
QUER PATROCINAR A CULTURA DO BRASIL? PERGUNTE-ME COMO.
Pessoas físicas – tipo você e eu, público entusiasta das artes – podem patrocinar projetos culturais simplesmente pelo prazer de ajudar, de agradecer a boa vontade ou de incentivar a criatividade de pessoas que nem sempre – para não dizer "quase nunca" – recebem o merecido reconhecimento.
Museus importantes como a Pinacoteca do Estado de São Paulo têm programas para associados que, em troca de colaborações periódicas, oferecem vantagens como descontos na loja, entradas gratuitas etc. Vale a pena conferir.
Projetos menores também podem receber seu apoio através da Catarse, uma plataforma de financiamento coletivo que serve a diversos interessados. O vídeo abaixo mostra um exemplo: a revista Efêmero Concreto, do AHH!, que tenta acumular 18 mil reais para imprimir os exemplares da nova edição.
Como a cultura é um bem do povo, acho justo colaborar de vez em quando. Esse dinheiro não se perde nem é gasto à toa, muito pelo contrário: ele se torna parte de um tesouro comum. Basta a gente visitar uma exposição de arte urbana, folhear uma revista alternativa ou assistir a uma apresentação de teatro para perceber como ele está sendo muito bem empregado.
Museus importantes como a Pinacoteca do Estado de São Paulo têm programas para associados que, em troca de colaborações periódicas, oferecem vantagens como descontos na loja, entradas gratuitas etc. Vale a pena conferir.
Projetos menores também podem receber seu apoio através da Catarse, uma plataforma de financiamento coletivo que serve a diversos interessados. O vídeo abaixo mostra um exemplo: a revista Efêmero Concreto, do AHH!, que tenta acumular 18 mil reais para imprimir os exemplares da nova edição.
Como a cultura é um bem do povo, acho justo colaborar de vez em quando. Esse dinheiro não se perde nem é gasto à toa, muito pelo contrário: ele se torna parte de um tesouro comum. Basta a gente visitar uma exposição de arte urbana, folhear uma revista alternativa ou assistir a uma apresentação de teatro para perceber como ele está sendo muito bem empregado.
sábado, 3 de dezembro de 2011
"Metropolis é o século 20. É a ciência e o obscurantismo. O monumental e o miserável. O alto e o baixo. Os senhores e os escravos. É o século da luta de classes que ali se anuncia. Século do comunismo e do nazismo. Das utopias que viram pesadelos. Das metrópoles que também viram pesadelos. Tudo isso fala da atualidade do filme de Fritz Lang que Hitler e Goebbels, não por acaso, admiravam. Há muitas razões, inclusive equívocas, para gostar de um filme. Mas algo aqui comunga com as ideias dos dois: Metropolis é, por excelência, o filme do preto e branco, das sombras pintadas que discriminam com nitidez o claro do escuro, a luz da treva. De uma certa ordem rígida, absoluta, que devia andar de acordo com o pensamento dos nazistas. No entanto, a ideia de duplicidade que Lang introduz na trama transtorna um tanto esse panorama unívoco. É uma ideia que o acompanha desde sempre, presente em praticamente todos os seus filmes. É como se dissesse: todo homem é duplo, comporta o seu contrário. (...) É esse ambiente de fricção, conflito, dúvida permanente sobre o outro que Lang evoca magistralmente neste que é seu filme mais próximo do Expressionismo."
Inácio Araujo (2010), no jornal Folha de São Paulo
Vi Metropolis pela primeira vez não faz muitos anos. Eu estava curioso para conhecer esse clássico que influenciou todo o cinema posterior. Reconheci nele tantos temas, soluções plásticas, jogo de luzes e ideias de futuro que ele parecia um apanhado de Blade Runner, The Wall, 1984, THX 1138, A ilha e Minority Report, entre muitos outros. Aliás, essa é uma experiência interessante, assistir aos clássicos depois dos recentes, percebendo o que deles ficou como legado. Faz a gente ter certeza de que o presente está em constante diálogo com o passado, tanto que mal conseguimos distingui-los, ou saber onde acaba um e começa o outro. Se é que o passado termina mesmo. Porque, quando a gente se dá conta, o presente já ficou para trás, enquanto o futuro jamais chegará de verdade.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
REFLEXÕES POÉTICAS: INFLEXÕES VERBAIS
No Brasil, poesia é essencialmente uma arte marginal, para não dizer que sempre foi. Digo isso por conta do número de iniciados, não pela posição social deles. Qual dos seus amigos lê poesia? Poucos, imagino. Mas, quem gosta, gosta de verdade, de Drummond e Bandeira a Gullar e Piva, dos caras que fizeram história até os que estão começando a ganhar espaço.
Então, fica a dica do Livro Ruído, de Davi Araújo, recém-publicado em Portugal pela Ecleia Editora. Quem é marginal a ponto de ler poesia, vai gostar e gozar.
Ouça a entrevista que o autor concedeu à rádio Unesp: Davi Araújo – Rádio Unesp
Para saber mais sobre o Livro Ruído: Eucleia Editora
Blog: Não Fique São
sábado, 19 de novembro de 2011
"Tenho 25 anos de profissão. Sempre tentaram me dizer que o cinema é uma arte coletiva. Nunca entendi o que isso queria dizer. Quem me dizia também não sabia o que era. Existe uma indústria feita por um tanto de especialistas, não tenho nada contra isso. Mas ainda há, talvez, um pequeno espaço para os artistas."
Roberto Rossellini (1958)
Roberto Rossellini (1958)
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
ARTE E PUBLICIDADE: UMA RELAÇÃO
Não acho que publicidade é arte – para mim, são duas coisas quase excludentes. Vivo dizendo que diretor de arte [profissional responsável pela criação de imagens publicitárias] que se considera artista precisa estudar mais história da arte para entender a diferença. Redator que se considera escritor precisa estudar mais literatura. Digo isso sem desmerecer nenhuma das profissões, só não gosto de ver ninguém confundindo as coisas.
É verdade que, em fins do século XIX, quando a publicidade se profissionalizou e começou a ficar mais parecida com o que é hoje, muitos pintores ganhavam a vida fazendo pôsteres de perfume e de canetas tinteiro, assim como muitos escritores faziam frases de impacto a respeito de saponáceos, dentifrícios e fortificantes vitamínicos. Dava para ver tudo isso exposto nos bondes, e hoje essas propagandas se encontram em galerias de arte.
Mas, como disse antes, isso foi no passado, nos primórdios, e deve ter durado até a Pop Art, quando a crítica ao consumo se instaurou de vez e a arte se apropriou da linguagem publicitária para comunicar conceitos. Ali, já dava para ver que uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa, como explica o ditado.
Nada impede que um diretor de arte faça artes plásticas, que um redator escreva bons romances e que um fotógrafo publicitário revele propósitos artísticos. Ainda assim, uma coisa continua separada da outra, do mesmo modo como um psiquiatra é diferente de um psicólogo. Mas – e sempre tem um "mas" –, às vezes, essa distância se encurta, e a gente vê fotografias bem conceituais, anúncios lindos como pinturas e títulos ou comerciais de TV cheios de poesia.
Escrevi tudo isso motivado por uma campanha publicitária, vista numa notícia publicada hoje mesmo no Correio Popular de Campinas. Sugiro que você clique na imagem acima e veja também. É uma ideia tão marcante e tão crítica que, se tirássemos o logotipo da Benetton, poderíamos expôr em qualquer bienal de arte contemporânea.
É bem legal, para um consumidor, publicitário e pesquisador de arte, ver campanhas assim.
domingo, 6 de novembro de 2011
A LITERATURA DA SALVAÇÃO
"São Bento deveria ser eleito o padroeiro dos amantes da literatura grega e romana. No século VI, ele teve a brilhante ideia que permitiu a preservação dos textos antigos na Europa: a de impor sua cópia e manutenção como uma das obrigações dos monges nos mosteiros. Era obra de penitência; cada letra copiada diminuía o tempo no purgatório. Foi esta providência que assegurou a sobrevivência do legado greco-romano durante o longo período da Idade Média."
Thais Rodegheri Manzano, em E se a literatura se calasse?
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
RESPEITÁVEL PÚBLICO
Sabe, ando cansado de filmes excessivamente complexos, seja no enredo ou na produção. Cansado de milhares de personagens e reviravoltas, de estética obsessiva, de épicos históricos pautados em batalhas, de histórias pobres sustentadas por efeitos especiais cujo único objetivo é tirar o fôlego do expectador. Por isso, quando me deparo com filmes como O palhaço, de Selton Mello, solto suspiros de alívio. Não porque ele seja banal, no sentido pejorativo do termo, mas justamente porque conta uma história banal, quer dizer, por tratar da vida comum, dos dramas que todos nós vivemos cotidianamente.
Admiro quem consegue fazer poesia com matéria-prima tão simples. É disso que O palhaço trata, de uma crise de identidade que põe em dúvida a carreira profissional do protagonista – uma história pequena, porém rica em significações, semelhante ao que Ernest Hemingway fazia em seus contos.
Uma ocasião breve e pontual. E só. Um capítulo da biografia do tal palhaço, representado com uma fotografia belíssima, saturada e quente; com uma trilha que mistura MPB e temas circenses; com um humor primordial que diverte a todas as idades e com uma direção cuidadosa, de planos fechados e atenção voltada à expressão corporal dos personagens.
O palhaço tem seus clichês e defeitos: talvez pudesse se estender um pouco para que a crise ganhasse peso e a vontade de retomar a carreira convencesse mais, talvez não precisasse cair no lugar-comum do circo decadente, talvez não precisasse dos cenários ermos do interior, talvez Selton Mello pudesse se esforçar para não ser tão Selton Mello; mas a verdade é que as qualidades sobressaem e nos tocam no ponto certo.
Aliás, o filme merece ser visto por um motivo especial: é o único em cartaz, entre outros dez ou doze que ocupam as salas dos cinemas convencionais, a explorar a vida humana de maneira delicada, com simplicidade e sem grandes pretensões ou ideologias. Um verdadeiro respeito ao bom gosto e à inteligência do público.
Site oficial: www.opalhacofilme.com.br
Blog: blog.opalhacofilme.com.br
Admiro quem consegue fazer poesia com matéria-prima tão simples. É disso que O palhaço trata, de uma crise de identidade que põe em dúvida a carreira profissional do protagonista – uma história pequena, porém rica em significações, semelhante ao que Ernest Hemingway fazia em seus contos.
Uma ocasião breve e pontual. E só. Um capítulo da biografia do tal palhaço, representado com uma fotografia belíssima, saturada e quente; com uma trilha que mistura MPB e temas circenses; com um humor primordial que diverte a todas as idades e com uma direção cuidadosa, de planos fechados e atenção voltada à expressão corporal dos personagens.
O palhaço tem seus clichês e defeitos: talvez pudesse se estender um pouco para que a crise ganhasse peso e a vontade de retomar a carreira convencesse mais, talvez não precisasse cair no lugar-comum do circo decadente, talvez não precisasse dos cenários ermos do interior, talvez Selton Mello pudesse se esforçar para não ser tão Selton Mello; mas a verdade é que as qualidades sobressaem e nos tocam no ponto certo.
Aliás, o filme merece ser visto por um motivo especial: é o único em cartaz, entre outros dez ou doze que ocupam as salas dos cinemas convencionais, a explorar a vida humana de maneira delicada, com simplicidade e sem grandes pretensões ou ideologias. Um verdadeiro respeito ao bom gosto e à inteligência do público.
Site oficial: www.opalhacofilme.com.br
Blog: blog.opalhacofilme.com.br
domingo, 30 de outubro de 2011
VIAJAR É O MELHOR REMÉDIO
Já ouvi estrangeiros perguntarem se o Brasil é um país doente, dada a quantidade de drogarias à disposição. Em alguns bairros, temos uma a cada dois ou três quarteirões, às vezes mais. Se nossas doenças não extrapolam o normal, ao menos hipocondria e ansiedade, essas sim, temos que admitir. Por quê? Onde estão o samba, o futebol e as mulatas? Será que, com a melhora econômica, esses prazeres banais deram lugar ao estresse do mundo contemporâneo? Ou, ainda, será que as crises político-sociais foram substituídas por crises existenciais?
Estive recentemente no Uruguai, e o que mais me fascina num país estrangeiro é o cotidiano dos nativos, muito mais do que os pontos turísticos. Gosto de caminhar pelas ruas, entrar nas lojas, estar no meio da multidão, pegar seus ônibus e metrôs, experimentar seus cafés no meio da tarde e folhear seus jornais nos bancos da praça. Inserir-se na realidade alheia abre os horizontes de nossos próprios universos.
Foi durante essa viagem que reparei como farmácias são escassas por lá, principalmente quando comparado com São Paulo. E, já que a procura por remédios é pequena, elas vendem outros produtos não convencionais, tais como vinhos, perfumes, cosméticos, livros e brinquedos. Achei o fato curioso. Meio estranho, inicialmente, mas faz sentido. Afinal, esses também são produtos com propriedades curativas: compartilhar uma garrafa de vinho com amigos e familiares faz um bem social danado; cuidar da própria beleza melhora a autoestima e cura a depressão de si e dos outros; ler um bom romance na frente da lareira, ou na poltrona da varanda, ou debaixo dos cobertores, ou na grama do parque, naquela tarde de domingo ensolarada, ou na praia, ou em qualquer outro lugar propício ao relaxamento pode até causar dependência, mas uma dependência boa que não pede moderação. E brincar... é remédio para todas as idades, quem não sabe se divertir não pode dizer que vive de verdade.
O comércio de um país reflete a cultura dos habitantes. Os indícios são fáceis de perceber. Em Montevidéu, há praticamente uma livraria por quarteirão. Não são megastores como as nossas, pelo contrário, são pequenas e entulhadas, mas devem vender muito mais literatura, porque têm livros nas prateleiras ao invés de televisores, computadores, câmeras fotográficas, papelaria, jogos de videogame e iPods.
Cafés também se encontram aos montes, sempre movimentados. Ali, folheia-se revistas, reúne-se amigos e até se trabalha, enquanto a correria permanece do lado de fora. Não vi um só hipermercado – frutas e verduras são compradas frescas diariamente, durante o retorno para casa, em quitandas amistosas. O pão é comprado na padaria. O queijo, no laticínio. A massa, na mercearia. E, em cada um desses lugares, o produto vem acompanhado de uma conversa gostosa com os donos, que prometem reservar alcachofras firmes ou uma penca de bananas maduras para quando voltarmos no dia seguinte.
Parece provinciano e retrógrado quando, na verdade, é um estilo de vida inteligente. Em vez de perderem duas, três ou mais horas por dia no trânsito, as pessoas caminham pela orla depois do trabalho. Não vi nenhuma academia, embora, no geral, os uruguaios sejam magros e cordiais. Museus, em compensação, tem um monte, e por mais esquisito que pareça eles também são frequentados pelo povo, que conhece e respeita a cultura local, e não somente por turistas. Basta ver os prédios antigos espalhados pela cidade, nem sempre bem cuidados, mas preservados como marcos de uma história que convém não esquecer. Existem edifícios modernos no Uruguai? Sim, claro, shopping centers bonitos também, com moda atual e alta tecnologia, só que eles não são construídos em cima do passado.
Se você ainda acha que prédios velhos, lojas familiares e andar a pé são coisa de terceiro mundo, vou dizer que me deparei com o mesmo na Itália, por exemplo, desde as cidadezinhas do interior até Roma. E eles não precisam convencer ninguém da riqueza material e cultural do país. Para mim, está claro que esse estilo de vida é uma opção consciente.
Agora, sabe o que eu mais encontrei no Uruguai? Brasileiros. Sim, nós estamos em todos os cantos, nas ruas, nas empresas, nos noticiários, nos restaurantes e nos pontos turísticos, basta prestar atenção que você ouve alguém falando português. Inclusive, conheci diversas pessoas que estudam nossa língua para nos atender melhor. Se os visitamos com essa frequência é porque gostamos do que eles têm a oferecer. Pois bem, será que não poderíamos trazer um pouco daquela cultura na bagagem, no lugar de jaquetas de couro e doce de leite?
É claro que a realidade do Brasil é muito distinta, incomparavelmente maior e complexa, e que não se pode tirar os costumes de um país e aplicá-los, ipsis litteris, a outro. Mas, para mim, viajar significa observar, aprender e mudar. Se você permitir, a experiência transforma sua maneira de lidar com o mundo.
O Brasil não se resume a samba, futebol e mulatas, não queremos ser conhecidos apenas por isso. Mas, então, o que mais somos? Será que essa dúvida não indica a origem de uma crise existencial? Talvez, se derrubássemos menos prédios históricos, se acompanhássemos a política de perto, se perdêssemos menos horas no trânsito, se caminhássemos mais pelas ruas, se tomássemos mais vinho com quem gostamos, se conversássemos mais sobre assuntos relevantes, se comprar pão fresco para o café de domingo rendesse o mesmo prazer do que sapatos caros no shopping, se ler um livro ou visitar um museu não fosse tão importuno, se fizéssemos piquenique no parque ao invés de ver Faustão na TV, talvez tivéssemos uma noção melhor da nossa própria identidade, aprenderíamos a encarar os perigos de se expor à tendência globalizante e superaríamos o paradoxo de pertencer ao grupo sem perder a singularidade. Não teríamos, assim, que remediar com calmantes, analgésicos e antidepressivos as angústias desse futuro tão promissor.
Estive recentemente no Uruguai, e o que mais me fascina num país estrangeiro é o cotidiano dos nativos, muito mais do que os pontos turísticos. Gosto de caminhar pelas ruas, entrar nas lojas, estar no meio da multidão, pegar seus ônibus e metrôs, experimentar seus cafés no meio da tarde e folhear seus jornais nos bancos da praça. Inserir-se na realidade alheia abre os horizontes de nossos próprios universos.
Foi durante essa viagem que reparei como farmácias são escassas por lá, principalmente quando comparado com São Paulo. E, já que a procura por remédios é pequena, elas vendem outros produtos não convencionais, tais como vinhos, perfumes, cosméticos, livros e brinquedos. Achei o fato curioso. Meio estranho, inicialmente, mas faz sentido. Afinal, esses também são produtos com propriedades curativas: compartilhar uma garrafa de vinho com amigos e familiares faz um bem social danado; cuidar da própria beleza melhora a autoestima e cura a depressão de si e dos outros; ler um bom romance na frente da lareira, ou na poltrona da varanda, ou debaixo dos cobertores, ou na grama do parque, naquela tarde de domingo ensolarada, ou na praia, ou em qualquer outro lugar propício ao relaxamento pode até causar dependência, mas uma dependência boa que não pede moderação. E brincar... é remédio para todas as idades, quem não sabe se divertir não pode dizer que vive de verdade.
O comércio de um país reflete a cultura dos habitantes. Os indícios são fáceis de perceber. Em Montevidéu, há praticamente uma livraria por quarteirão. Não são megastores como as nossas, pelo contrário, são pequenas e entulhadas, mas devem vender muito mais literatura, porque têm livros nas prateleiras ao invés de televisores, computadores, câmeras fotográficas, papelaria, jogos de videogame e iPods.
Cafés também se encontram aos montes, sempre movimentados. Ali, folheia-se revistas, reúne-se amigos e até se trabalha, enquanto a correria permanece do lado de fora. Não vi um só hipermercado – frutas e verduras são compradas frescas diariamente, durante o retorno para casa, em quitandas amistosas. O pão é comprado na padaria. O queijo, no laticínio. A massa, na mercearia. E, em cada um desses lugares, o produto vem acompanhado de uma conversa gostosa com os donos, que prometem reservar alcachofras firmes ou uma penca de bananas maduras para quando voltarmos no dia seguinte.
Parece provinciano e retrógrado quando, na verdade, é um estilo de vida inteligente. Em vez de perderem duas, três ou mais horas por dia no trânsito, as pessoas caminham pela orla depois do trabalho. Não vi nenhuma academia, embora, no geral, os uruguaios sejam magros e cordiais. Museus, em compensação, tem um monte, e por mais esquisito que pareça eles também são frequentados pelo povo, que conhece e respeita a cultura local, e não somente por turistas. Basta ver os prédios antigos espalhados pela cidade, nem sempre bem cuidados, mas preservados como marcos de uma história que convém não esquecer. Existem edifícios modernos no Uruguai? Sim, claro, shopping centers bonitos também, com moda atual e alta tecnologia, só que eles não são construídos em cima do passado.
Se você ainda acha que prédios velhos, lojas familiares e andar a pé são coisa de terceiro mundo, vou dizer que me deparei com o mesmo na Itália, por exemplo, desde as cidadezinhas do interior até Roma. E eles não precisam convencer ninguém da riqueza material e cultural do país. Para mim, está claro que esse estilo de vida é uma opção consciente.
Agora, sabe o que eu mais encontrei no Uruguai? Brasileiros. Sim, nós estamos em todos os cantos, nas ruas, nas empresas, nos noticiários, nos restaurantes e nos pontos turísticos, basta prestar atenção que você ouve alguém falando português. Inclusive, conheci diversas pessoas que estudam nossa língua para nos atender melhor. Se os visitamos com essa frequência é porque gostamos do que eles têm a oferecer. Pois bem, será que não poderíamos trazer um pouco daquela cultura na bagagem, no lugar de jaquetas de couro e doce de leite?
É claro que a realidade do Brasil é muito distinta, incomparavelmente maior e complexa, e que não se pode tirar os costumes de um país e aplicá-los, ipsis litteris, a outro. Mas, para mim, viajar significa observar, aprender e mudar. Se você permitir, a experiência transforma sua maneira de lidar com o mundo.
O Brasil não se resume a samba, futebol e mulatas, não queremos ser conhecidos apenas por isso. Mas, então, o que mais somos? Será que essa dúvida não indica a origem de uma crise existencial? Talvez, se derrubássemos menos prédios históricos, se acompanhássemos a política de perto, se perdêssemos menos horas no trânsito, se caminhássemos mais pelas ruas, se tomássemos mais vinho com quem gostamos, se conversássemos mais sobre assuntos relevantes, se comprar pão fresco para o café de domingo rendesse o mesmo prazer do que sapatos caros no shopping, se ler um livro ou visitar um museu não fosse tão importuno, se fizéssemos piquenique no parque ao invés de ver Faustão na TV, talvez tivéssemos uma noção melhor da nossa própria identidade, aprenderíamos a encarar os perigos de se expor à tendência globalizante e superaríamos o paradoxo de pertencer ao grupo sem perder a singularidade. Não teríamos, assim, que remediar com calmantes, analgésicos e antidepressivos as angústias desse futuro tão promissor.
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