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Encontrei eco para esse pensamento num pequeno ensaio chamado Lições nas trevas, do italiano Giorgio Agamben, que compõe seu livro Quando a casa queima (publicado no Brasil pela editora Âyiné).
O filósofo afirma que o profeta se dirige às trevas de seu tempo, e para isso deve se deixar investir por elas, abrindo mão da própria lucidez. Em seguida, aproxima-o do poeta, e por consequência sugere um ponto comum entre as palavras proféticas e as poéticas.
O autor já havia desenvolvido esse conceito de trevas ao menos em outro texto, bastante conhecido, cujo título pergunta: O que é o contemporâneo? Pois elas, as trevas, representam para ele uma potência do que pode vir a ser, e que à sua maneira já está em nosso tempo, nos limites da definição; qualidade do que é obscuro, portanto do que ainda não conseguimos perceber com clareza.
Ao transportar esse conceito para o âmbito da palavra, Agamben fala de um significado não racionalizado, mas de algum modo percebido; espécie de sentido que precede a possível compreensão. Poderíamos, a partir daí, seguir com a ideia de que o profeta detém a capacidade de perceber no presente algo que ainda não está evidente, “prevendo o futuro”. O mesmo valeria para o poeta e os artistas em geral. Mas não é esse caminho que interessa agora; vamos nos ater à questão das palavras em si.
Porque a palavra profética, cujo significado está sempre por vir, teria um caráter insurgente em relação à gramática e aos nomes, ao léxico e à sintaxe, oferecendo acesso a outra experiência da linguagem. Para enfatizar esse atributo, Agamben diz inclusive que tal palavra é, de certo modo, ilegível. Enquanto sua insurgência, ou nova experiência pela palavra, é a própria obra da poesia.
Parece complicado? Mas existe nisso um ponto muito simples, com o qual é fácil concordar: pela poesia nós podemos escapar dos significados imediatos e, assim, experimentar outras possibilidades das palavras.
Aliás, é importante assinalar que poesia, nesse caso, não se resume à forma versificada: vale também para a prosa e qualquer outro tipo de texto que proporcione ao leitor uma experiência estética. A poesia seria, digamos assim, o recurso criativo que permite vencer os limites das palavras, deslocando a experiência de leitura para longe da pretensa exatidão delas; ela está nesse deslocamento entre a norma e a insurgência, sugere Agamben. E o escritor espera, claro, que algo virtuoso aconteça em tal movimento.
Eu voltei a essas ideias quando li o conto Réveillon, de Rafael Gallo, que abre seu primeiro livro, Réveillon e outros dias (editora Record). Mais para o fim da história, o protagonista – jovem adulto e surdo – diz que, às vezes, gostaria que seu pai fosse surdo também, porque isso não deixaria as falas o distraírem da linguagem mais profunda. Essa vontade se dissipa quando o filho observa o velho gesticular para se comunicar com ele. “Sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente”, reflete.
Para o surdo, os gestos feitos com o corpo levariam a uma compreensão mais complexa do outro, ou seja, possibilitariam ir além do que as palavras dizem por si mesmas. O “fundo por trás da palavra”, explica o narrador do conto. Ou o que o protagonista definia como a linguagem mais profunda do mundo: “o idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele mesmo e seus nomes impronunciáveis”.
Enquanto Agamben trata de um sentido que antecede o significado das palavras, o personagem no conto de Gallo busca um jeito de extravasá-lo. Preocupações que, no meu entender, também deveriam ser de todos os que têm na palavra o seu ofício. Afinal, se no dia a dia “escrever bem” é dominar os significantes e significados para assim produzir textos muito claros, a “arte de escrever” é outra coisa: diz respeito a elaborar o que há de impreciso nas palavras para, no que se esconde atrás delas, ou em suas trevas, permitir que o texto leve cada leitor a uma experiência singular.