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segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

UMA PERGUNTA POR DIA


Estipulei metas para mim no início deste ano. Eu nunca tinha feito isso de maneira tão sistemática. Para me lembrar de cumprir algumas delas, escrevi um bilhete que dizia: Pergunta do dia, Leitura do mês, Projeto da vez. Ele ficou grudado em minha mesa de trabalho durante muito tempo, até deixar de ser necessário. A primeira frase implicava justamente isto: eu me propus elaborar uma pergunta por dia – apenas uma já seria suficiente para fazer irromper, da superficialidade da rotina, algum pensamento crítico. 

Mais do que respostas, acredito que precisamos de perguntas, e de todo o tipo: lógicas, poéticas, urgentes, ideais, reflexivas, retóricas, impossíveis, e assim por diante. Apesar de ter seguido o plano com mais lapsos do que gostaria, até setembro redigi um total de duzentas e vinte e nove. Então, meu filho nasceu, e as prioridades mudaram um tanto. Sem a cobrança assídua do tal bilhete, acabei me esquecendo momentaneamente da meta e, por fim, assumi seu abandono. Ainda assim, incompleta, ela apresenta um mapa de afetos, lampejos, aprendizados, inquietações, ingenuidades, sonhos, entre outros motivos que inspiraram minhas questões. 

A seguir, trago uma seleção delas. Compartilho, desse modo, parte de quem fui em 2021. E torço para que elas também sirvam de provocação para você no ano que vem chegando.

7) Como permanecer ileso?
10) Até que ponto é possível sustentar o sentimento de não ser visto?
20) Como medir a distância entre as coisas e as palavras que correspondem a elas?
22) Existe passado mais passado do que outro? E passado mais presente?
23) Quanto de animalidade resta na humanidade?
30) Em que medida a esperança é só uma ilusão?
31) Como ver apenas as coisas postas, em vez de, nelas e com elas, ver coisas que não estão aqui?
32) Que marcas do passado sobrevivem em meus gestos?
39) Quando se aprende demasiado?
41) O que uma lista de realizações diz a respeito de uma vida?
43) Como fazer com que o tempo seja verdadeiramente livre?
46) Como ver ou ouvir sem julgar? Como suspender o ímpeto de encontrar significado?
49) Por que fizemos essa escolha?
50) Quanto mundo cabe em mim?
55) Quando termina?
56) Existe alegria neste fazer?
57) A obra de arte é parte do mundo ou a sua recusa?
62) Como dizer de agora sem ser evidente?
64) Que saber incide/insiste/existe na matéria?
68) Toda obra contém um público?
71) Repetir é reiterar, ampliar ou esvaziar?
72) Deixamos de fato algo para trás?
77) Existe diferença entre nós e eles?
79) Como ser mais do que o que eu conheço?
80) Como é possível raciocinar sobre algo que é essencialmente sensível?
82) Por que é tão difícil observar com atenção plena?
87) Como tropeçar na lisura?
96) Uma experiência pode perdurar sem ganhar forma?
97) Como é possível uma coisa familiar parecer tão diferente de uma hora para outra?
98) Quanto tempo precisamos para morrer?
100) Por que naturalizamos até mesmo as imagens mais horríveis?
103) É possível que exista hora certa?
108) Para que salvação?
112) Ler histórias nas imagens é o mesmo que encontrar palavras nelas?
116) Ainda é possível falar em belo?
117) A educação do olhar é fruto de um projeto?
122) Que diferença uma palavra pode fazer?
123) O que significa ser tocado por uma imagem?
125) Existe preço justo a pagar pelo capital?
128) Cadê a capacidade de tomar uma atitude diante da indignação?
132) Por que não questionar?
140) De quem é a culpa: do monumento ou de quem o sustenta?
142) Que vestígios deixamos do que não fizemos?
143) Por que demorou tanto?
147) Que diferença faz o detalhe?
148) Como tornar visível somente o visível, sem que com ele apareça qualquer invisível?
153) Em primeiro lugar vem o medo?
155) A imagem pode ser apartada da narrativa?
157) Mais luz para maior visibilidade ou para intensificar as sombras?
160) Como transformar e ainda assim me reconhecer no que faço?
161) Qual é o oco da minha vida?
162) Que ordem pode haver num mundo que tem a morte?
163) Como reconhecer a presença da arte?
165) Como duvidar da realidade estando presente no mundo?
166) Como tornar mais real o que existe?
167) O conhecimento terá mesmo que sacrificar populações inteiras que nele não cabem?
168) Uma existência pode conquistar por si própria sua legitimidade (ou seu direito de existir)?
170) O que é preciso limpar do campo de visão para poder ver melhor?
171) Como saber se não estou sendo atraído por quimeras?
173) O que devo me dedicar a tornar real?
175) Como estar fora estando dentro e permanecer dentro estando fora?
178) Quantas coisas não vou poder nunca mais deixar de saber?
184) Existe uma queda da qual não preciso me levantar?
185) Como identificar o ponto exato em que deixo de ter certeza?
186) Como é possível um tirano ainda ter lugar?
191) Chorar pelo que se foi ou cuidar do que permanece?
195) Por que ainda tolerar tanto?
196) Como identificar preciosidades no banal?
199) Quanto dura um gesto mínimo? Medimos isso em unidade de tempo?
204) Por que insistir?
207) É possível escrever para alguém além de si próprio?
208) Ser influenciado ou pensar junto?
209) Por que acredito ser ocidental?
213) Por quais motivos tão poucos conhecem?
216) Alguma sensibilidade ainda?
217) Como apreciar a beleza conforme seu próprio projeto, em vez de a estimar com o meu preconceito?
218) Que tal criar um cemitério para o que não deu certo? Ou um museu?
220) Como demolir a casa?
221) Quando foi a última vez?
223) É possível haver relação quando não existe compreensão?
228) Baseado em que devo afirmar que haverá amanhã?

Quero acrescentar uma pergunta a essa seleção, que não consta em minha caderneta, mas que continua a me instigar dia após dia: como pode, um recém-nascido, já reconhecer a intenção de um sorriso?

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

SEMPRE PENSEI QUE MORRERIA

Foto de Dasha Urvachova em Unsplash

De dengue, febre amarela, chicungunha 
bala perdida assalto, polícia 
aids 
democracia 
sedentarismo 
achei que morreria por sonhar 
por lutar ou, 
tendo vencido, 
por velhice 
teve momentos em que morrer 
seria sorte 
ignorância 
bênção 
e encontrar o além era 
esperança 
indiferença 
tuberculose, canibalismo, chibata 
eu tinha tudo para morrer de raiva 
estresse esgotamento 
piripaque 
dizia minha avó 
que não está mais entre nós 
por desilusão com a vida 
achei que a sinceridade me mataria 
o tédio, a fome 
a precariedade 
que só se vê de longe, veja bem 
morreria de amor 
assassinado, quem diria 
e teria valido a pena 
senão pularia do viaduto 
do chá envenenado 
por tristeza 
por quem se foi 
gritaria até perder o fôlego 
adeus! 
e me iria em boa hora 
nem um minuto a mais 
nunca a UTI 
o coma induzido 
emagrecer e falecer 
irreconhecível 
como se um outro morresse no meu lugar 
queria o acidente 
heroísmo 
uma legenda favorável, enfim 
jaz aqui: 
eu, no caso 
e diga-se de passagem 
nunca pensei nisso a sério 
ao contrário do que fiz parecer 
não planejei, não 
era jovem e 
descobri com certo espanto 
injustificado, é verdade 
a morte leva mesmo 
a boa gente, 
a boa alma 
não faz distinção 
quebra o vaso 
tira o ar de quem parte 
o chão de quem fica 
onde? 
como foi? 
uma tragédia 
não se sabe direito 
um espirro 
embalagem contaminada aperto de mão gole de copo botão de elevador excesso de confiança 
a brisa de fim de tarde 
noite adentro 
eterna.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CRIATIVIDADE EMBOTADA

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe)

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

HISTORINHA PARA DESPERTAR

Foto de Camila Jacques em Unsplash


Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

ANTICORPO

Foto de Velizar Ivanov em Unsplash

Fechado
num esforço coletivo
insuficiente, paliativo
sem tocar nem ser
tocado, sem poder
tocar ou fazer
proibido
pela própria consciência
de um comum
possível
sem sorriso, só smile
sem encontro sem reflexo
de mim sobreposto ao outro
a fantasmática do corpo
– ou o seu contrário?
cadáver ainda vivo
apenas
mais um e
nada mais.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

TERAPIA INTENSIVA

Vista lateral leste do Palácio do Planalto (fonte: Arquivo Público do DF)

Por que falar agora (ou nunca)
ou num momento qualquer
suspender a voz, as tintas, o tônus
– o que temos, se nada resta
tão pouco que se torna impossível
“sobre”viver entre
residências
desistências
imobilidades
de corpos tão fragilizados, oscilantes, suspirados
como as pausas nas chamadas de vídeo
com seus espectros de aspecto pacato
absorvidos pela iluminação artificial das telas de LED.

Como é possível estabelecer conexão
à fria luz de maio
meia estação, relação entrecortada por
tudo que falha e só faz escancarar a ruína
abismal, escara de um estado de inexistência
falência múltipla de órgãos públicos
quando lá do alto
do planalto berra-se:
e daí?

De seu leito
há quem sinta que é possível ainda
falar porque é preciso
com a voz, as tintas, o ímpeto derradeiro
dar a ver e a ouvir os aflitos
a quem tal violência disparada a esmo
atinge o âmago como uma bala
nem tão perdida assim porque sempre 
fere o mais desprotegido
a existência mínima que só resta
falar e resistir, pois é fundamental
jamais calar diante das ordens de assassínio
e desaparecimento imemorável.

Enquanto houver voz, ouvirá vida.

Leia mais em: Cartas da pandemia

terça-feira, 5 de maio de 2020

O ESPAÇO ENTRE MIM E O OUTRO

Foto de Angèle Kamp em Unsplash
Ainda aprendo, com dificuldade e alguma curiosidade, esses sutis gestos de horror que dominaram o espaço entre mim e o outro. Se antes tal meio parecia esvaziado, agora acolhe a coreografia da tragédia que escapa à cena e se realiza no hall do condomínio, na calçada, nos corredores do mercadinho, onde cabe apenas uma pessoa por vez: devo olhar antes de avançar, ter certeza de que estarei só enquanto o outro, que também precisa fazer seu bolo, titubeia, dá um passo atrás, tenta não violar meu cordão imaginário de isolamento. E se por acaso erro o passo a dança desanda, como o creme que pretendia confeitar com este açúcar, essência, desejo. Os humores, vencidos, talham. A paranoia fermenta admiravelmente, por sua vez. Confunde-se com o cuidado comigo e com meus semelhantes, assassinos potenciais. Isolamento tornou-se atitude social. Cárcere privado eletivo. Os paradoxos não se eximem de aparecer para um café amargo. Dia desses, no trabalho, anunciou-se: ao manter distância você mostra ao colega que se importa com a vida dele. Não fosse terrível, seria divertido. Não fosse atroz, não sei. O tempo dirá. Espero. Mesmo os gestos mais estranhos, aos poucos, tornam-se banais. Há duas semanas eu diminuía o ritmo na calçada para observar meu reflexo mascarado nos vidros dos carros estacionados. Ontem fui beber água e a derramei por todo esse mesmo filtro que me cobre a boca, nariz, corpo, família, futuro.

Leia mais em: Cartas da pandemia

quarta-feira, 15 de abril de 2020

GUARDADAS

Foto de Melissa Paniagua Ponce.

as distâncias na fila
os vazios no horizonte
as câmeras no céu
os olhos na tela
os pássaros no aquário
as crianças no tédio
os pijamas no escritório
os silêncios no elevador
os medos no outro
as angústias no sofá
os amores na gaveta
as invisibilidades no catre
os monólogos na mudez
os ímpetos na despensa
as revoluções na panela
os sonhos no freezer
as vidas no microscópio
os desejos no exterior
as quebras na saída
as mordaças no app
os disfarces na rua
as esperanças na prateleira
os gelos na mão
os próximos na cova
as imprecisões no número
as imagens no obscuro
as sintonias no impossível
as violências no pronunciamento
bem embaladas e guardadas as
indevidas proporções.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

DO ALTO DAS MINHAS JANELAS


Vejo nada e o nada me devolve o olhar, incorporado
nos demais moradores de apartamento alocados
diante de mim, atrás, ao redor, de esguelha
eles me olham do alto das suas janelas
não porque têm interesse, veja bem
na verdade eles não têm
nada melhor para ver, sou
o que lhes resta, o seu nada e
ao mesmo tempo tudo
o que resta
neste fim de mundo sem fim
nas alturas intermináveis, as horas
enquanto lá embaixo corre a imaginação
– o risco, o medo, o estranhamento
eles habitam algum lugar antes conhecido
onde estive sem saber, sem me dar
conta do que podia via a ser
hoje sei? espero
enquanto certa invisibilidade traiçoeira
aguarda, permeia, infiltra
não se deve agir como se nada estivesse acontecendo
e o nada acontece, de fato
realiza-se diante de mim
eu o vejo através das minhas janelas translúcidas
tão evidente que lá está
em algum lugar – quem duvida? daí
pretendo ver sem incomodar, ouso
ser visto para estar vivo, ser
reconhecido como um corpo
são – não apenas uma ameaça
eu que nunca liguei para isso, que preferi
passar despercebido, hoje me incomodo
com aquele que se oculta
nas cortinas para me evitar e evitar
cruzar os olhos comigo, mesmo
a uma distância segura, maior do que
os dois metros
os doze andares
as quatro semanas
a meio caminho do céu.

Leia mais em Cartas da Pandemia.