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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O MUSEU DE ARTE EFÊMERA: ENTREVISTA COM EDUARDO A. A. ALMEIDA*

Eduardo A. A. Almeida (foto de Edi Rocha)


Alan dos Santos  — Aproveita o espaço dessa primeira pergunta para se apresentar aos leitores do site. Você já publicou por editoras importantes como Laranja Original, Reformatório e Moinhos. Três importantes editoras para o contexto de publicação da literatura brasileira contemporânea e latino-americana. Quantos livros você já publicou?

Eduardo A. A. Almeida — O Museu de Arte Efêmera é meu sexto livro, lançado agora em julho de 2024 pela Laranja Original. É formado por três histórias longas, atravessadas pela questão da memória, e cuja forma traz elementos da dramaturgia, da prosa e da poesia, bem híbrida mesmo. Antes dele eu publiquei um livro de poemas chamado Sutilezas, fins, que saiu por uma pequena editora do Espírito Santo, a Pedregulho. O belo e a besta é um livro mais experimental, de textos curtos que tratam das proximidades e diferenças entre humanos e outros animais. É um livro engraçado e horrível ao mesmo tempo. Esse foi publicado pela Moinhos. O anterior é o meu único romance até agora — uma novela, na verdade –, de título Diante dos meus olhos, que ganhou Menção Honrosa no Prêmio Sesc e no Nascente USP, foi selecionado num edital de publicação da cidade de São Paulo e chegou aos leitores pela editora Reformatório. Meu segundo livro, já que estamos indo de trás para frente, foi o Testemunho ocular, de contos, poemas e outros textos mais livres, que venceu o concurso da extinta Lamparina Luminosa e atualmente está fora de catálogo. Esse acabou bastante afetado pela pandemia, infelizmente, que prejudicou a sua circulação. Pretendo, em breve, lançar uma segunda edição para que ele fique acessível de novo. Para encerrar, minha primeira publicação solo foi um conto, que saiu numa edição artesanal limitada pela Cultura & Barbárie, chamado Por que a Lua brilha. Foi minha estreia propriamente dita, ainda que antes eu tivesse participado de coletâneas em livros e revistas.

Mas você perguntou também sobre mim, e o que posso dizer, a título de apresentação pessoal, é que trabalho com escrita em diversos âmbitos, em especial a comunicação e a literatura. Além de escrever, assessoro autores e editores em seus projetos de criação artística ou literária. Dou aulas de escrita criativa. Fiz parte do Núcleo de Dramaturgia do SESI, do Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas e desde 2016 componho o coletivo de criação literária Discórdia. Atualmente, colaboro com o portal LiteraturaBr. E tenho uma formação acadêmica na área das artes visuais, que marca meus interesses de pesquisa e minha obra literária, basta ver alguns dos títulos dos meus livros que acabei de citar para perceber que a questão da arte, da imagem e da visualidade está posta desde ali. Se alguém se interessar, encontrará mais informações sobre mim no site www.lerparacrer.com.br, na plataforma Medium e no meu blog www.artefazparte.com. Fica aqui o convite.

Alan — Vamos explorar o Museu de Arte Efêmera (Laranja Original), seu livro mais recente e que tive a oportunidade e o prazer de ler. O livro reúne três contos que exploram a questão da memória e criam uma tensão entre a lembrança (registro, memória etc.) e o esquecimento. De fato, a questão da memória é importante para as três histórias. No primeiro dos contos, um homem refaz sua infância, modificando-a a cada relato no divã; no segundo conto, realizamos uma reflexão profunda sobre destino e escolha: estamos fadados a realizar um plano previamente estabelecido por algo ou alguém ou temos liberdade para agir? No auge dessa tensão, acompanhamos o processo de esquecimento de si de um dos personagens principais; por fim, o último dos contos personifica o embate entre memória e esquecimento confrontando Zakhor e Lethe, um saber judaico ligado à preservação da memória e o rio grego do esquecimento. Como se deu a composição das narrativas e foi intencional estabelecer a memória como o ponto de unidade do livro?

Eduardo — Você fez uma leitura muito perspicaz, o que me deixa pleno de alegria. A questão da memória atravessa as três histórias, mas não foi intencional. Na realidade, antes de ser livro, eu havia criado três dramaturgias autônomas, escritas durante minha passagem pelo Núcleo de Dramaturgia do SESI. Isso foi em 2018. Quatro ou cinco anos depois é que retomei aqueles textos e me dei conta de que tinham algo em comum, que poderia conectá-los se eu os dispusesse juntos. Foi quando surgiu a ideia do livro. Mas eu não queria reunir os textos como estavam, pois tinham sido escritos em outra situação e com outro propósito. Comecei a retrabalhá-los, com especial cuidado em relação à linguagem. Eu queria transformar dramaturgias em contos longos, mas isso não é tão simples assim, há ideias em teatro que não funcionam tal e qual na prosa, há rubricas e atos que não se tornam narrações e capítulos simplesmente porque o autor assim o deseja, então me vi tomado por um embate complexo. O resultado é híbrido, ou ambíguo; algo entre a dramaturgia, a prosa e a poesia. Mas a inquietude original se preservou nesses novos formatos, o que me deixou satisfeito. E se no tema temos um ponto comum, que é a memória, na forma acredito que haja outro, que é a questão da montagem. Quer dizer, os três contos têm uma influência grande do pensamento de Aby Waburg, que conheço por intermédio do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, e que trata de produzir estranhamentos por meio da aproximação de elementos diferentes. Sem querer complicar demais, eu explicaria assim: em vez de uma narrativa linear, convencional, coesa, me interessava desenvolver cenas breves que, postas juntas, pudessem criar atritos, conexões inesperadas, perturbações. As histórias poderiam ser contadas de muitas maneiras. Escolhi propor uma experiência de leitura mais provocativa. De certo modo, é mesmo como caminhar por um museu e olhar cada objeto exposto em sua singularidade, e então começar a criar associações entre eles, algo que vai acontecendo de maneira consecutiva, sem que se possa controlar.

Alan — Eu não conhecia o conceito de Zakhor. Poderia falar um pouquinho sobre ele ou sobre como você chegou a ele?

Eduardo — Fui atrás de Zakhor porque, mais do que uma personagem, eu precisava de uma espécie de entidade capaz de representar a cultura, a sabedoria, a ancestralidade, a tradição. Em algum momento da pesquisa, me deparei com esse termo, que se traduz como uma ordem: “lembra-te”. Uma palavra que, segundo Paul Ricoer, por muito tempo ocupou o lugar da história científica na tradição judaica. Zakhor produziu, assim, a oposição que eu queria em relação a Lethe, o rio que os gregos mortos atravessavam e que apagava as suas memórias da vida anterior. Veja que curioso: memória, cultura, sabedoria, ancestralidade, tradição, são todos termos femininos, e assim caracterizei Zakhor como uma entidade feminina. Enquanto o esquecimento, Lethe, é masculino. Não estou dizendo que são homens e mulheres, mas masculinidades e feminilidades apresentando suas diferenças num embate que remonta às tragédias clássicas. O Museu de Arte Efêmera é um livro em que a força do feminino está bastante presente. Mas isso, assim como a ideia de Zakhor, foi se construindo um pouco por vontade própria, não é que eu tenha previsto ou agido de maneira proposital. São frutos do processo criativo.

Alan — Todo o livro faz um forte flerte com a dramaturgia, especialmente a primeira das três histórias: “Luminescências”. No final do conto há orientações de como montar a exposição. Como foi costurada a relação com a dramaturgia? Salvo engano, já ouvi você dizer que a origem das histórias remete justamente à uma experiência vinda do teatro. Se for isso mesmo, gostaria de saber então como foi a transição para a literatura e mais especificamente para a forma do conto. Qual foi o seu maior desafio na lapidação do texto? No final das contas, é muito diferente escrever uma peça e um conto?

Eduardo — Foi isso mesmo, os três contos eram inicialmente dramaturgias, eu quando percebi que elas poderiam produzir conexões interessantes publicadas num único volume, a solução que encontrei foi transpor a linguagem do teatro para a da prosa. Mas isso não é um processo automático, quer dizer, não se trata de mudar aqui e ali e pronto. Existem dinâmicas, recursos, propósitos específicos de cada gênero, e que precisaram ser reinventados. Algumas transformações foram bem graves. O primeiro conto, que você citou, resultou num texto completamente diferente do original. Mas o mais importante, a meu ver, é que ambos carregam o mesmo propósito. Talvez em literatura isso seja mais difícil de perceber, mas se pensarmos em termos de, digamos, pintura e fotografia, a discrepância das linguagens é evidente. Você pode pintar uma cena que a princípio tinha sido fotografada, mas ela será construída com tela, pincel, texturas, pigmentos, gestos corporais. E vice-versa. Minhas dramaturgias continham naturalmente rubricas, que são uma espécie de paratexto cuja função é situar o leitor, indicar ações dos atores, fornecer informações que não cabem na fala, entre outras funções. De algum modo, essas rubricas assumem um papel semelhante ao do narrador em terceira pessoa da prosa. Então, esse é um caminho de transposição entre as linguagens. “Luminescências”, ainda como dramaturgia, se pautava numa dinâmica de apagar e acender as luzes do palco — boa parte da peça se passaria na escuridão. Como levar isso para o conto? Não havia o menor cabimento sugerir que o leitor fechasse os olhos e continuasse a ler. No meio do caminho, me ocorreu a ideia das câmeras de segurança. Com elas, eu consegui reproduzir na prosa a dinâmica de cenas breves que tinha previsto para o palco. E, por sua vez, isso das câmeras seria bem desafiador de apresentar num palco, pois trata de ver a cena acontecer por intermédio de um aparelho eletrônico e de um recorte, que é o enquadramento da gravação. Esses são alguns exemplos das muitas diferenças entre a dramaturgia e a prosa. Há também a questão da recepção, quer dizer, a prosa se dirige a um leitor com livro na mão e leitura solitária, enquanto a dramaturgia se dirige a uma produção teatral e a uma interpretação do texto que será apreciada coletivamente. Isso, por si só, já é capaz de mudar muita coisa. Mas há também semelhanças. Porque, no fim, estamos falando de palavras sobre o papel, palavras lidas de maneira silenciosa ou em voz alta, palavras que vão ressoar num outro, desconhecido do autor. Talvez seja esse o grande fato da literatura, o seu ponto de irredutibilidade.

Alan — Minha formação é em filosofia, e mais especificamente em filosofia contemporânea. Digo isso para ressaltar que gosto muito do contraste entre as noções de unidade e diferença, preferindo quase sempre a força da diferença. O conto “Luminescências” brinca com essas duas noções. Acompanhamos a história através de câmeras de monitoramento. Contudo, a cronologia não é sequencial, exata ou linear. Daí a aposta na diferença. Há câmeras e monitores diferentes, todos fora de ordem. Li pela primeira vez seguindo a proposta estética caótica do conto. Fui totalmente capturado pela trama. E apesar do gosto pela diferença, fui aguçado pela busca da unidade. Refiz a leitura, dessa vez por monitores e por câmeras, organizando uma ordem lógica, refazendo o percurso proposto pelo livro num jogo de idas e vindas, e creio mesmo ter identificado uma coesão na narrativa. Você esperava que os leitores fizessem de fato esse exercício de busca por unidade ou por coerência — essa nossa tola obsessão? Você concorda que o seu texto faz uma aposta radical na diferença? Em suma, como foi pensada a narrativa desse conto? Ressalto que essa foi a minha história favorita.

Eduardo — Me parece natural que, você sendo um filósofo, sua leitura do livro seja orientada por questões filosóficas, ou pelo menos atravessada por elas, e tenho muita curiosidade para ouvi-la mais a fundo. Mas é claro que, não sendo eu um filósofo, meu processo de escrita acaba seguindo outro caminho, embora em diversos pontos ele e o seu se encontrem. Digo isso porque, por exemplo, quando decidi embaralhar as três narrativas do primeiro conto, que estão ali representadas como monitores A, B e C, eu não pensava no conceito de diferença, e sim em privilegiar cada “cena”, ou cada acontecimento. Para dizer de maneira mais simples, eu abri mão de uma narrativa linear convencional porque queria que o leitor apreciasse cada imagem em si mesma, e que só depois buscasse conexões entre elas. Assim, nós temos nesse conto três narrativas, cada uma delas com um número variado de episódios, que são de fato numerados. Isso possibilita que o leitor faça o mesmo que você: ao fim do conto, retorne ao início e siga um percurso “cronológico”. Nas “notas para a montagem da exposição”, como você notou, esse convite está posto claramente. Com um aviso: “convém alertar o espectador de que essa mudança acarretará em uma experiência estética diferente”. No fim, é disse que se trata, de sugerir uma experiência estética diferente, e nesse ponto eu concordo plenamente com você, foi uma aposta radical na diferença, aqui obtida por meio da estrutura do conto. Existe uma coesão, é verdade. Mas ela me interessava menos e ficou em segundo plano. A força do conto vem de outro lugar, na minha opinião. E eu nem acho que nossa obsessão pela unidade é tola, porque é o que traz sentido para a vida, o que nos organiza e dá condições de seguir em frente. Mas a vida não pode se resumir a isso. E acredito que a literatura tem o potencial de produzir aí uma fissura, uma inquietação, enfim, dar uma bagunçada no que se pretende muito correto.

Alan — É perceptível a influência do pensamento de Nietzsche ao longo do livro. O próprio Nietzsche escreveu um livro sobre a importância da história e do esquecimento para a vida humana. O segundo conto recebeu por título “Eterno Retorno”, um dos mais belos conceitos de Nietzsche, e destaca também a voz profética do super-homem. O terceiro conto traz a força trágica do pensamento de Nietzsche e reforça a tensão entre memória e esquecimento adicionando o elemento do ressentimento perante o acontecido, no caso do conto, a perda de uma filha. Eu estou vendo Nietzsche em tudo ou seu livro busca mesmo esse diálogo de forma consciente e premeditada?

Eduardo — Bom, você já tinha descoberto que sou leitor de Deleuze e Derrida, e agora de Nietzsche. Mas meu interesse por esses filósofos tem muito mais de curiosidade pela maneira como eles transformaram a maneira de produzir pensamento do que um procedimento metodológico propriamente dito. Vamos colocar assim: sou um leitor descompromissado no que diz respeito à filosofia. Vou me apropriando dos conceitos tanto quanto das histórias que ouço ou de acontecimentos que testemunho, tudo se torna recurso para a escrita literária. Sempre achei linda a declaração de Lygia Clark de que “engravidava pelos ouvidos”, também ela querendo escapar de uma determinação intelectualizada da sua obra. Ela admitia ler e se encantar com o conhecimento advindo de outras áreas, mas aquilo em suas mãos se transformava em outra coisa, era matéria-prima para a criação artística. O eterno retorno, no caso desse meu conto, é um pouco isso também: uma referência, uma chave de leitura, um conceito que me marcou. E não é algo recente: li o Zaratustra na faculdade, vinte anos atrás, com minha cabeça de pós-adolescência. Depois até quis retomá-lo para desenvolver o conto, mas achei que acabaria por tentar aplicar na literatura as “ideias em filosofia”, como diz Deleuze em seu artigo sobre o ato de criação. Isso estaria fadado ao fracasso, então não voltei a Nietzsche. Deixei apenas que minhas impressões de décadas antes continuassem a ecoar. A bem da verdade é que as primeiras versões dessa história datam mais ou menos daquela época, então a influência esteve mesmo presente com maior intensidade. Com isso tudo, quero dizer que você está vendo Nietzsche no livro inteiro, e não tiro a sua razão. Mas não se trata de uma ação tão consciente assim e muito menos premeditada, com exceção da menção ao super-homem. Acredito que alguns autores são tão marcantes em nossa formação que não conseguimos deixá-los jamais.

Alan — Aproveitando o gancho, quais são as suas influências literárias? Quais autores e autoras te influenciam no processo de escrita? De onde vêm a sua verve experimental?

Eduardo — Embora eu leia um pouco de tudo, a vertente fantástica da literatura cria diálogos mais fortes com a minha obra. Gosto muito de Julio Cortázar, Italo Calvino, Murilo Rubião, esses clássicos. Mais recentes, me identifico com o que fazem a Samanta Schweblin, a Veronica Stigger, o Gonçalo M. Tavares. Porque são autores que extrapolam o convencional e ampliam as possibilidades da forma. Seus livros nunca são previsíveis. Experimentam, provocam, surpreendem, incomodam, nos deixam meio atônitos, questionando os limites da literatura e o que um livro pode proporcionar. E todos eles contistas, ainda que não exclusivamente. Não é por acaso. Esse é um formato que permite muitas aberturas, seja em relação à forma, à linguagem, às subversões.

Alan — Sempre gosto de pedir: poderia citar três livros que você leu recentemente e que te marcaram?

Eduardo — O livro dos lobos, do Rubens Figueiredo. Encontrei ali contos repletos de estranhamento e um profundo silêncio. Não conhecia esse lado ficcionista do Rubens, que também exerce um trabalho importante como tradutor e ensaísta.

Flecha, de Matilde Campilho. Um livro difícil de definir, formado por um apanhado de imagens e histórias breves que misturam fatos, ficção, perspectivas narrativas. Lindo demais.

O museu do silêncio, da Yoko Ogawa. Gosto muito da literatura japonesa e do trabalho da editora Estação Liberdade. Este é um romance contemporâneo que também fala da memória, dos rastros que deixamos, da efemeridade.

Alan — Por fim, sinta-se à vontade para comentar qualquer outro aspecto do livro que porventura eu não tenha te perguntado.

Eduardo — Eu preciso lhe dizer que foi um prazer imenso responder a perguntas tão interessadas e generosas. Elas me fizeram ver o meu próprio livro com outros olhos. Só posso expressar minha gratidão. E se tem algum aspecto que ainda cabe comentar talvez seja a escolha por reunir três textos e chamá-los de “tríptico”, termo tradicionalmente usado no campo da história da arte para se referir a retábulos de altar, muito populares na Idade Média. Suas imagens quase sempre têm em comum uma linha narrativa, uma moral, um personagem. Meu percurso pela pós-graduação se deu sempre no campo das artes visuais, e diversos dos meus escritos trazem questões oriundas das pesquisas que realizei ali. Os diálogos entre a literatura e as artes visuais me interessam especialmente. Veja esse meu livro mais recente: desde o título já nos deparamos com um museu de arte. Mas a reunião de três narrativas longas também é recorrente na literatura. Temos a edição dos Três contos de Flaubert, talvez a primeira que me chamou a atenção para isso. Mais recentes, temos Sul, da Veronica Stigger, e Sebastopol, do Emilio Fraia. Com certeza há muitos outros que eu poderia citar aqui. Mas eu só queria mesmo dizer que houve nessa escolha uma intenção, e ela me ajudou a explorar o meu interesse pelas artes e pelas imagens, o que veio bem a calhar.

* Esta entrevista foi conduzida pelo filósofo e psicanalista Alan dos Santos e publicada originalmente no site Deus Ateu.

Saiba mais sobre o livro no site da editora Laranja Original


quarta-feira, 24 de julho de 2024

A ESCRITA, O ESPANTO

 

Texto publicado originalmente em LiteraturaBr


Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.
[…]
O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco,
e eu o tomei somente para uso habitual.

Trecho do poema Desatenção, de Wisława Szymborska


Ando às voltas com o espanto. Esse sentimento, que é também uma espécie de acontecimento, ganhou sabor especial por conta do meu livro mais recente, Museu de Arte Efêmera (editora Laranja Original). Com tal palavra a me assombrar, e a obra em processo, dei-me conta de que escrevo para provocar espanto. No leitor, sem dúvida, porque acredito nessa literatura que apresenta um desconhecido, evoca a sensação de estranhamento, desnaturaliza o banalizado, em vez de apenas reiterar o que já se sabe. E escrevo para eu também me espantar.

Espanto-me com a narrativa que se vai criando à revelia dos meus planos, como se me usasse para adquirir vida própria. Emociono-me com meus personagens, sofro com os seus conflitos. Rio da piada que não esperava escrever. Surpreendo-me com usos da linguagem que não me diria capaz de desenvolver até o momento em que a vejo no papel, com a tinta ainda por secar. Acredito na arte que surge desse inusitado.

“O escritor é aquele que se espanta com as coisas, desde as mais triviais às mais extraordinária”, afirma Noemi Jaffe no livro Escrita em movimento. E completa: “ele dificilmente permite que as coisas se banalizem, já que quase tudo é matéria de escrita”.

Também fico feliz ao ler Wisława Szymborska falar sobre o espantoso na poesia. “Na qual se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e sobre ela nenhuma nuvem. Nenhum dia e depois dele nenhuma noite. E acima de tudo nenhuma existência do que quer que seja neste mundo”.

Ao receber o Prêmio Nobel em 1996, a poetiza comentou a importância do “não saber” em sua obra. O que faz da escrita não um instrumento da verdade, mas da busca. A escrita como perseguição daquilo que demanda ser escrito, e que todavia é arisco. Escrever como meio de se fazer perguntas e tentar respostas necessariamente insuficientes.

O artista das letras não deve escrever para defender uma ideia, penso eu, mas para se atirar no desconhecido. Tenho sempre comigo a fotografia em que Yves Klein pula do alto de um muro. Salto no vazio, diz o título. Onde cairá? Caso sobreviva, em quais condições se reerguerá? Com sorte, trará desse lugar estranho – o vazio – um punhado de matérias-primas, a princípio desconexas, que desse seu desencontro serão capazes de sugerir algo ainda não dito, ou sequer imaginado. Espantoso?

Para Szymborska, a inspiração nasce de um incessante “não sei”. E isso não é privilégio dos poetas ou dos artistas em geral. Segundo ela, “existem médicos, pedagogos, jardineiros e centenas de outros profissionais assim. Seu trabalho pode ser uma constante aventura desde que consigam ver nele sempre novos desafios. Apesar das dificuldades e fracassos, sua curiosidade não arrefece. A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas. […] Todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto”.

A tradutora Regina Przybycien destaca, por exemplo, o interesse de Szymborska por outras áreas do conhecimento além da poesia, entre elas as ciências. Vivia em busca de oportunidades para espantar-se. “Achava que a poesia não nasce de conversas com poetas ou sobre poesia, daí sua amizade com matemáticos, físicos, geólogos, os quais podiam lhe revelar algo interessante e indicar leituras”.

É uma ideia que me atrai de maneira particular, dado o meu interesse pelas artes visuais, que inevitavelmente atravessa meu trabalho de escrita. Já se percebe no título deste mais recente, que remete a um museu, e que na folha de rosto se define como tríptico – formato tradicional de pintura, comum nos retábulos medievais, em que três peças criam um conjunto, associando-se em geral por compartilharem um tema ou um significado.

Você pode encomendar um exemplar na loja da Laranja Original

Os três contos que compõem o acervo do Museu de Arte Efêmera são atravessados pela questão da memória. A memória como forma de elaborar a vida, como marca traumática, como resistência diante do esquecimento. Eles apresentam estrutura fragmentária, inspiração dramática – eram, inicialmente, peças de teatro, que transcrevi para o formato de prosa – e jogos de imagens e sensações. Procuram mostrar como nossas histórias pessoais podem ser ao mesmo tempo frágeis e poderosas.

É meu livro mais ousado, em especial no que diz respeito à linguagem. Os textos tiveram suas primeiras versões em 2018. Quando os reli, passado um período de sedimentação, me espantei, percebendo-me leitor de mim mesmo, e o que melhor conhece minhas habilidades e lacunas de escritor. Espantei-me com o embaralhamento das vozes, que abre a narrativa para outras possibilidades. Com o enredo não premeditado, com o tanto de vivência pessoal alimentando a vitalidade das personagens. E em especial com a busca por respostas que percorre os textos e os conecta.

No conto Luminescências, um sujeito reinventa certo acontecimento de sua infância a cada vez que o relata, buscando entender como aquilo ainda o determina. Após um acidente de carro que vitima sua namorada, o protagonista de Eterno retorno deve se reaver com o destino. Por fim, em Museu de Arte Efêmera de Lethe, o fato de ninguém se lembrar da criança afogada no rio faz outras tragédias virem à tona, assim como a indiferença de suas testemunhas.

Sigo ansioso por descobrir se os leitores sentirão também o espanto que me acometeu durante a redação. Não idêntico, claro. Mas algum ímpeto poético que abra uma fenda nos absurdos corriqueiros já tomados como certos. Um deslocamento na direção do desconhecido. Uma respiração retesada. Um incômodo. Se isso acontecer, o trabalho terá cumprido o seu propósito.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

DEJETO

Trecho do livro “Museu de Arte Efêmera”, recém-lançado pela editora Laranja Original.


– Cutuca logo, vai.
– E se não estiver morta?
– É claro que está.
– Como você sabe?
– Eu sou mais velho. Eu sei.
– É minha varinha da Hermione. Eu não vou encostar nisso aí.
– Não vai estragar.
– Então, empresta a sua.
– A minha é de colecionador, custa cinco vezes o preço da sua. Em dólares!
– Ué, não vai estragar.
– Se não cutucar, como a gente vai saber que a água está envenenada?
– Você acha que isso aí bebeu e morreu?
– Se for veneno, a gente tem que nadar de boca fechada.
– Não vamos nadar!
– Não está verde que nem nos desenhos. Pode ter se afogado.
– Pode ter sido comida por um peixe gigante e depois vomitada aqui.
– Isto aqui não é mar, é uma represa. E não é história de criancinha. Aqui não tem peixe gigante.
– Pode ter sido vomitada no mar e veio boiando até aqui.
– É o rio que desce até o mar, não o mar que sobe o rio. Você não presta atenção nas aulas?
– Não tive essa matéria ainda.
– É só você pensar: o mar é salgado, o rio é doce. Se o mar escorresse no rio, ele também seria salgado.
– Se o rio caísse no mar, o mar seria doce!
– Sal é mais forte que açúcar. É por isso que a gente come a sobremesa depois.
– Hã?
– Cutuca logo, vai. Sem varinha.
– Não vou encostar nisso aí não.
– Medrosa.
– É você!
– A gente precisa resolver isso pra nadar.
– Você prometeu pra mamãe que só ia brincar na beiradinha.
– Eu sei nadar. Vamos procurar um galho.
– A gente devia falar pra mamãe.
– Ela tem coisa mais importante pra fazer.
– Mais do que isso?
– Mais. A gente devia procurar um jornalista.
– Você conhece um?
– Aqui no condomínio deve ter. Aquela ruiva da novela tava assinando autorização na portaria. Foi a mãe que disse.
– Eu não achei nenhum galho ainda.
– Continua procurando. A gente devia filmar com o celular, postar no YouTube, aí o jornalista vinha procurar a gente.
– Pra quê?
– Pra fazer entrevista. Foi a gente que encontrou ela primeiro.
– A gente ia ficar famoso.
– Pena que a mãe não me deixou trazer o celular.
– Você ia derrubar na água de novo.
– Na piscina, foi sem querer. E tem piscina e privada em casa, então lá também não é seguro.
– Nenhum galho. Desisto.
– Cutuca com a mão mesmo.
– De jeito nenhum! Vou pegar doença.
– Você perdeu no par ou ímpar.
– Eu disse que queria ímpar.
– Eu sou mais velho, eu escolho primeiro. Agora, cutuca.
– Quantos anos você acha que ela tem?
– Tava no máximo na segunda série.
– Tudo isso?
– Tem um pouco menos do que o meu tamanho.
– Certeza que não conhece ela?
– Lá na escola não tem ninguém com o cabelo enroladinho assim.
– Parece trombadinha. Será que pulou o muro?
– A mãe já disse mil vezes pra gente não falar essas coisas na frente dos outros.
– Mas ela tá morta.
– Ainda não temos certeza, você não cutucou. Deve ter sido a chuva de ontem.
– Será que veio de muito longe?
– Acho que sim. Tá cheia de lama.
– Como a gente vai descobrir a mamãe dela?
– A gente vai filmar e postar na internet. Alguém vai ver e marcar ela. Vou buscar o celular. Não sai daqui.
– Eu vou junto.
– Não, você corre muito devagar. Espera aqui.
– Você prometeu pra mamãe que ia cuidar de mim!
– É só você não sair daqui.

– Oi, menina. Eu sou a Alice. Qual é o seu nome? Que diferente! Eu também queria ter um nome assim. Tem quatro Alices na minha classe. Desculpa ter chamado você de trombadinha. Minha mãe disse que a gente só pode falar preconceito quando não tem ninguém por perto. Você mora onde? Nossa, verdade? Como você chegou na chácara do vovô? Vim aqui passar uns tempos. Eu queria muito mesmo era morar em Hogwarts e ter aulas de magia. Na minha escola, só tem português, matemática, ciências, geografia, história e ioga e expressão corporal. E inglês. Eu queria mesmo era ter uma capa invisível para estudar ali e ninguém ficar perguntando nada. Logo passa, não é verdade? Meu irmão disse que você se afogou na represa. Ele aprendeu a nadar, eu ainda não sei direito. Achei que era mais fácil. Por que você não fez natação? Não tem piscina no seu clube? Se tivesse feito, podia nadar melhor do que todo mundo da minha escola. Na festinha de formatura deste ano, vou de novo pra Disney. Minha mãe disse que vou aproveitar mais porque vou estar maior. Eu não sei… Nas outras vezes, papai estava junto. Se estudasse em Hogwarts como você, faria tudo num passe de mágica. Traria papai para morar de novo com a gente. Como você perdeu o tênis? Seu pé tá muito sujo! Se eu subir no sofá assim, mamãe dá uma bronca gigante. Outro dia, eu tirei o sapato pra brincar no jardim e mamãe disse que a princesinha dela não podia andar por aí de qualquer jeito. Se a sua mamãe deixa você andar descalça, é uma menina de sorte. Pois é! Seu cabelo parece muito com o da moça que trabalha lá em casa, o nome dela é Jeneci, você conhece? Vou perguntar pra Jeneci se ela conhece você. Ela fala de um jeito engraçado. A mamãe não gosta que eu conte muitas coisas pra ela porque nunca se sabe. Nunca se sabe o quê? Não sei, nunca se sabe! Mamãe também é engraçada, às vezes. Mas de um jeito diferente. E ela é muito brava quase sempre. Ontem, ela falou palavrão no telefone. Eu me escondi debaixo da escada, onde nenhum adulto me encontra. E ouvi. Meu irmão disse que era o advogado do papai que ligou. Ele disse que papai ia buscar a gente, mas não apareceu. Mamãe fez as malas rapidinho, saiu catando tudo das gavetas. E o seu, ainda mora com você? Eu queria perguntar quando o meu vai voltar de verdade, mas a mamãe não deixa porque vou deixar ele triste. Ele também não tem capa de ficar invisível. Até que você é uma menina legal! Quando meu irmão chegar, vamos juntar nossas varinhas e fazer você voltar a andar. Ou nadar. Daí, a gente pode até ser amigas. Qual é a sua feiticeira preferida? Que máximo, vai dar certinho pra gente brincar de Harry Potter, Hermione e Gina! Você sabia que o Harry Potter perdeu a mamãe e o papai quando era criança? A gente vai fazer de tudo para encontrar os seus, tá? Dá pra achar tudo na internet. O que é isso no seu bolso? Tá quase saindo. Aqui, ó, tá vendo? Não, obrigada. É. Tem certeza? Tá bem, dá aqui…

– Que triste! Foi você que escreveu?
– Você encostou nela!
– Não encostei!
– Encostou sim, eu vi! O que é isso?
– Nada. Um papel sujo. Vamos fazer o vídeo?
– A mãe não emprestou o celular. Ela tá a tarde inteira mexendo nele! Disse que alguém pode ligar e ela precisa atender.
– Você contou que é pra encontrar a mamãe da menina?
– Ela mandou a gente deixar isso aí e voltar pra casa logo. O pão de queijo tá quase pronto. A Jeneci fez suco de laranja também.
– Tá bem. Tchau, Gina! A gente volta amanhã pra brincar com você. Vamos ficar um bom tempo na casa do vovô.

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O trecho acima faz parte do conto “Museu de Arte Efêmera de Lethe”, que por sua vez compõe o livro Museu de Arte Efêmera, de Eduardo A. A. Almeida, publicado pela editora Laranja Original.


Sinopse

Um sujeito reinventa certo acontecimento de sua infância a cada vez que o relata, buscando entender como aquilo ainda o determina. Após um acidente de carro que vitima sua namorada, um corretor de seguros deve se reaver com o destino. Quando ninguém se lembra da criança afogada no rio, outras tragédias vêm à tona, e junto a indiferença de suas testemunhas.

Os três contos que compõem o acervo deste museu têm em comum a questão da memória. A memória como forma de elaborar a vida, como marca traumática, como resistência diante do esquecimento.

Com estrutura fragmentada, inspiração dramática e um complexo jogo de imagens e sensações, Museu de Arte Efêmera mostra como nossas histórias podem ser ao mesmo tempo frágeis e poderosas.

quinta-feira, 16 de março de 2023

GÊMEOS

Foto de Jacob Capener

Ninguém, em absoluto, tem conhecimento de que a Terra possui um planeta gêmeo, com as suas mesmas características, onde todavia a vida não se desenvolve. São idênticos os oceanos, as montanhas, as áreas desérticas, os polos Sul e Norte. Idênticas as luzes e sombras, ventos, correntes marítimas. E assim por diante. Com a diferença de que lá não se veem plantas, animais de qualquer espécie, sequer vírus e bactérias. Muito menos seres humanos. Nenhuma forma de vida habita tal lugar. Não por causa de ameaças fisioquímicas, por tragédias de tipo material ou transcendente, por guerras nucleares ou pandemias; a vida em nosso planeta-irmão não acontece por uma profunda impossibilidade. Como uma força indomável que nada permite, nem o premeditado e menos ainda o fortuito. Impossibilidade tamanha que tampouco nossos cientistas mais bem formados, equipados e assessorados, com toda razão, são capazes de tomar conhecimento desse corpo cósmico particular, ainda que suas dimensões não devessem passar despercebidas sequer a olho nu. Ninguém toma conhecimento dele, nem tomará, por mais semelhante que nos seja, pois mais próximo que se coloque em nosso sistema solar. Ao ponto em que sua gravidade tanto influencia a Terra que, de fato, ela se faz imprescindível para a nossa existência, tal como a conhecemos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

FASE DE CRESCIMENTO

 

Foto de Gabby Orcutt

Vizinho de nós, constroem um prédio
cinquenta, sessenta, oitenta andares
– a certa altura já
não faz diferença –
é o maior, não o único
há também o complexo hospitalar
o mercado de luxos
a imponente loja disso ou daquilo
– todos projetos de um moderno “eixo” imobiliário
dizem, rumo ao futuro

Enquanto, para mim, realmente grandioso
é ver seus pezinhos voltados para cima
no braço do sofá. Dez dedinhos redondos
no horizonte iluminado pelo abajur, dançando
ao som do desenho animado
que prenuncia o seu sono

Lá fora, um mundo vasto reivindica
o seu caminhar. Mas ainda é tempo
de viver as pequenas alegrias
dar risinhos com o personagem maluco
ter medo do gigante, do dragão e
construir seu lugar na escala
do ser humano, nem um centímetro mais.

*Minha pequena Lis faz 5 anos! 😍

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

ESPELHO D'ÁGUA

 

Foto de Francesco Ungaro

Não sei se li em algum lugar 
ou se imaginei por conta própria 
certa civilização que mantinha 
tradição infalível contra desavenças: 
consistia em juntar dois rivais 
numa tina de banho 
para ali se lavarem até que 
suas diferenças se diluíssem 

Daquela água suja saíam 
nem puros nem amigos 
saíam uma gota mais conscientes 
de seus limites e do pó 
do mundo que lhes é comum 

Pó dos ossos antepassados 
farinha dos pães frescos 
a serem partilhados.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

QUEM VEM LÁ?


Criei o blog Arte Faz Parte para compartilhar na internet os textos que saíam na minha coluna, no caderno de cultura do Correio Popular. Isso faz quase 15 anos! Naquela época, o jornal era impresso, e somente os leitores do interior de São Paulo tinham acesso. Fiz o blog para meus amigos poderem ler também. 

Gostei de experimentar este formato, acabei publicando uma porção de outras coisas aqui, e o blog teve fases diversas (algumas mais maduras, outras meio embaraçosas). Nunca me preocupei com estabelecer diretrizes, ser coerente, responder a alguma expectativa de público. Não me lembro de já ter excluído publicações que agora considero irrelevantes. Até hoje, não sei quem o acessa e quem lê. 

Mantenho este espaço para ter um histórico do meu trabalho, para jogar garrafas no oceano, para eventualmente alguém encontrar um meio de me contatar. E, com alguma frequência, essas garrafas retornam. Pode ser um comentário, uma marcação em redes sociais, um sinal de fumaça 

Hoje, para minha surpresa, recebo um e-mail informando que o blog foi acessado 800 vezes em apenas um mês, a partir de pesquisas feitas no Google.

Não sei se isso é muito ou se é pouco, de acordo com parâmetros assim ou assados. Fato é que fiquei feliz por saber que reuni, neste espaço virtual, com passos de tartaruga, um conteúdo que ainda gera interesse.

Com o nascimento do meu segundo filho, no final de 2021, o blog passou um ano estagnado, assim como minha produção artística em geral. Mas o menino já está quase andando, e pretendo dar mais atenção ao Arte Faz Parte em 2023. Afinal, em breve o blog fará 18 anos e começará a responder por seus próprios atos. Vou curti-lo enquanto posso.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

MORRE UM JOVEM

Clique aqui para saber mais

Escrevi os versos abaixo quando soube do falecimento de Victor Heringer. Nos primeiros rascunhos havia uma menção a ele. Mas achei que, no livro que estou publicando agora, o poema poderia ser dedicado a todos que nos deixam ainda jovens. E à esperança que resiste. Por isso não há dedicatória alguma.

O livro em questão se chama Sutilezas, fins. É o quinto na minha trajetória de escritor, e o primeiro composto exclusivamente por poemas. Ele aposta na apreciação da sutileza, da delicadeza e da profundidade como saída para nossa condição contemporânea.

A pré-venda vai até 31 de maio no site da Loja Pedregulho. Como se trata de uma editora pequena e a tiragem é limitada, faz toda a diferença você encomendar seu exemplar. Clique aqui

Agora sim, o poema.

MORRE UM JOVEM

Morrem milhares
todos os dias dizem:
o país não se importa
exceto por este sujeito
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país

É preciso matar muitos países supostos
para viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos ajeitados
teimam em envelhecer
ao ponto em que a obsolescência
confunde-se com salvação.

quinta-feira, 10 de março de 2022

COLONIALIS MUNDI

Foto de Jovis Aloor


Haveria então essa porta
de civilização antiga, descoberta
durante uma escavação
ao ser deitada no chão ela se abriu
para o mundo inferior

Algum debate e mulheres e homens avançados
se propuseram descer por ela para explorar 
e foram 
surpreendidos por homens e mulheres 
e silêncios emergentes
tais como eles, de idêntica aparência e conduta
haviam descoberto em seu canteiro de obras 
uma porta 
caída
que os levava ao mundo inferior.

sábado, 27 de novembro de 2021

AMOR DE ÓCULOS — UMA RETRATAÇÃO

Foto de Mariana Beltrán
Seus olhos me convocam 
para mais uma aventura 
a criança no colo 
o dia após dia o 
favor, não esquece 
me tira o sono 
olhos cansados, braços estendidos 
na minha direção 
tudo ainda por fazer 
só o desejo pronto 
a vida correndo solta 
o esforço para agarrar o possível 
tão forte, o que resta 
desta nossa fortuna 
são seus olhos 
atrás da armação 
das lentes engorduradas 
minha insistência em elogiá-los 
em pedir que tire os óculos 
essa insensibilidade minha de não ver 
que eles fazem parte de você 
de não perceber a sua beleza neles 
inclusive quando estão na mesinha de canto 
sugerindo que você está por perto 
como sempre, meu amor.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

SOBRE ERROS

Foto de Inge Poelman

Se de forma antecipada
eu soubesse das coisas
que quase tudo daria certo e afinal
o que não daria importa pouco, ah
se eu tivesse sido informado que
para o que não deu certo
e fosse ainda importante
haveria perdão
teria eu agido diferente
teria mais paciência, talvez
teria dito que amava, teria
ido aonde não tive coragem
sonhado ininterruptamente
arriscado mais, errado menos
por certo
teria deixado de fazer, e assim
teria deixado de viver uma parte, ah
mas que coisa
esta minha vida mediana
feita de altos e baixos
alegrias e tristezas
companhia e solidão e sabores e dissabores e
você já entendeu, logo
sua vida deve ser também assim
ambas têm lá alguma autenticidade
– os erros a comprovam
e por mais que saibamos perfeitamente
a realidade é que corremos e tropeçamos
e caímos e levantamos e
corremos sem poder fugir
disto que nos forma
e com o tempo me fez
careca de tentar aprender.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

UM VAZIO

Foto de Kunj Parekh


Era
uma concha
não era uma concha, era uma cavidade
uma ferida
uma caverna
era
o escuro o abismo a depressão
não, era uma queda
profunda
a queda era uma verdade
a verdade era a dor
a dor era um corpo, de fato
um filho
era
o mar
a onda
a lágrima
a convulsão
o agudo atravessando toda a rouca imensidão
não era um buraco, era
uma marca
a ferro e fogo
perfuração na superfície da história
era mais uma história de ocultamento
era
o trecho da história que não se conta, e muda tudo
a carne que faltava à vítima
a alma que faltava à casca
a existência renegada
era
uma mãe também
não era uma mãe, era um eco
um horror
o júri montado ao redor, nós
como urubus
uns aqui e outros ali e todos
a mesma culpa jamais assumida
assistindo apenas
ao último carinho, à tentativa
de agarrar o que já se tinha esvaído
era o buraco de bala no peito
era a areia ao redor
era uma concha
o nome já meio enterrado
como sempre
a água que batia
e se afastava
a água ia e vinha e batia
uma vez mais
displicente
escavando
desfazendo a concha
em mais areia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O BELO E A BESTA: RESSONÂNCIAS


Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?

“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.

O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.

Saiba mais no site da editora Moinhos

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

ENTREMEIO (ALGUMA LUZ)

Foto de Shio Yang

Trinta e sete mil e quatrocentos metros de fio de cobre paralelo foi a quantidade que conseguiu comprar com todas as suas economias. Esticou-o desde a sala de estar de seu apartamento, no décimo segundo andar, atravessando ruas e avenidas, estradas, linhas de trem suburbano, terrenos baldios, pracinhas cheias de capim alto etc., desviando de feiras livres, crianças, ruínas, córregos etc., fazendo as curvas necessárias para manter uma trajetória suficientemente retilínea na direção da cidade vizinha mais próxima. Na extremidade do fio, instalou um soquete e, no soquete, uma lâmpada. Voltou para casa. Na ponta inicial, acoplou um interruptor, desses de abajur, e na sequência um plugue macho. Ligou o circuito à rede elétrica. Precisou forçar um pouco para que alcançasse a tomada localizada atrás do sofá. Tudo certo. Era noite. Acionou o interruptor. Desde então, isso já faz meses, muda a chave seletora para a posição contrária toda manhã ao acordar. Imediatamente antes de dormir, coloca-a outra vez na posição anterior. Jamais soube se, ao fazer isso, acende ou apaga a lâmpada no entremeio. Sequer tem certeza de que ela continua rosqueada no soquete a trinta e sete mil e quatrocentos metros de distância. Sua rotina é acender e apagar a lâmpada em qualquer ordem que seja e atender clientes de uma rede de lanchonetes para, todo décimo dia do mês, pagar a conta de luz.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O BELO E A BESTA: RESSONÂNCIAS


Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?

“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.

O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.

Saiba mais no site da editora Moinhos

MAGIA

Foto de Geoffroy Hauwen

Primeiro a ouço
como se fosse uma só
gota, são inúmeras
num mesmo tom
frisson da natureza
lembro-me como se fosse
hoje, o cheiro da saudade
vento frio a entorpecer meu rosto
a vontade de permanecer
observando essa magia, a água
cair do céu. Ouviu?
É água
caindo
do céu.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

MEIO A MEIO

Foto de Alice Pasqual em Unsplash

Oi, pai.
Oiê.
Oi, meninas. Tudo bem?
Sim.
Mais ou menos.
O que foi?
Nada.
Nada.
Que estão fazendo?
Nada.
Falando.
Falando?
Nada especial.
Só colocando a fofoca em dia.
Estão com fome?
Sempre.
Não muita. Vamos comer o quê?
Pensei em pizza.
Quatro queijos.
Como assim?
Meia quatro queijos.
Por que como assim?
Eu me referia à pizza, não ao sabor. Pai, o médico não proibiu?
De vez em quando pode.
Deixa ele ser feliz.
De vez em quando pode?
Ele não especificou.
Deixa de pegar no pé.
Eu me preocupo, tá?
Já faz tempo que estou só no filé de frango.
Ele não vai comer a pizza inteira. Nem vai comer pizza todo dia. É só hoje.
Faz quanto tempo que você colocou ponte de safena?
Então, agora estou limpo por dentro. Pronto para outra.
Ele pode comer uma fatia ou duas.
Faz três semanas.
Você fala como se eu estivesse para morrer. Logo agora que me salvei.
Tá vendo? Para com isso.
Eu... Eu falei porque não quero passar por esse sufoco mais uma vez.
Eu sei. Obrigado por se preocupar. Eu também não quero, nunca mais.
Pede meia abobrinha.
Não, nada de pizza. Eu faço qualquer coisa para comer.
Eu como abobrinha, pode ser? É mais saudável.
Meia quatro queijos, meia abobrinha. Eu peço.
Pai, por que isso?
Estou bem, de verdade. Só não posso abusar.
Alô, é da pizzaria?
Eu vi seus exames. O colesterol continua no teto.
Até o teto é bom. Não vai melhorar, é genético.
Meia quatro queijos, meia abobrinha.
Você tem feito exercício?
Ainda estou convalescendo.
Rua Tapeté, vinte e um. É casa.
Convalescente toma sopa, não come pizza.
Vou procurar um personal, ok?
Traz a máquina de cartão?
Quando?
Semana que vem.
Ok, obrigada.
Por que não amanhã?
No domingo?
Vai demorar quarenta e cinco minutos.
Então segunda.
Prometo.
Pronto. Vou arrumar a mesa. Você me ajuda?
Ajudo.
Eu também.
Você pega a toalha lá no aparador.
Eu pego os talhares. Você, os copos?
Vou colocar uma toalha especial.
Taças.
O pai não pode beber.
Posso sim.
Tinto ou branco?
Como assim, pai? Convalescente bebe vinho?
Tinto faz bem para o coração.
Você também precisa relaxar.
Como eu posso?
Eu já estou bem.
Ele está bem.
Você sabe que não é só isso. Como pode?
Alguém viu aquela toalha branca que sua mãe trouxe de Portugal?
Não vai entrar nesse assunto agora, né?
Ele precisa saber!
Alô-ô!
Procura direito, pai! Fica aí mesmo.
Eu vou contar. Não é certo.
Na primeira ou na segunda gaveta?
Você vai acabar com a noite dele. E com a nossa. Para quê?
Procura nas duas!
Estou procurando, estou procurando.
A gente conta quando a consulta estiver marcada.
Eu não consigo. Não dá! E quer saber? Será que ele pode beber, não vai fazer mal?
Achei só a vermelha e branca, de piquenique. Pode ser? A do dia a dia eu não quero, hoje é uma noite especial.
Você ouviu o cardiologista. As chances são mínimas. Deixa ele viver o quanto pode.
Se tiver uma chance, eu quero apostar nela. Eu quero acreditar.
Até que combina, parece toalha de cantina italiana. Por que você está chorando?
Não é nada.
É.
Nada?
Bobagem dela.
Eu não sei direito.
Você está estranha desde que eu cheguei. Não é aquele ator, né? Eu já falei para você.
Ator só faz cena, a gente sabe.
Não. Deixa pra lá. Eu... Lembrei agora de uma coisa que perdi.
Vou dar um conselho, tá? Deixa isso de lado e vai ser feliz. Olha aqui a sua taça. Saúde!

terça-feira, 13 de julho de 2021

A PRESENÇA DA ARTE

Composição em cinza, de Arcângelo Ianelli

É possível permanecer
depois de há muito
ter partido
encher os olhos
com resquícios
de uma existência
antever a crise, o caos
inverter a memória em realidade
experienciar a intensidade – que pulsa
ressoar o espírito do tempo
em tocante melodia
e assim
fazer-se inteiro
pleno-sempre
sobre o chão
estar disposto
único
entre outros
porque a arte
instaura essa presença
frente a toda vida
que desvanece.

terça-feira, 29 de junho de 2021

UMA PEQUENA VITÓRIA POR DIA

Foto de Nicolas Solerieu em Unsplash

Privada sem respingos
vaso com novo broto
flerte com o estranho
entre duas estações do metrô
vazio preenchido com chocolate
comido antes de derreter no bolso
nota de cinquenta esquecida
encontrada a cachorrinha da vizinha
alguém segurando a porta do elevador para você
subir desde o fundo do poço
água quente do chuveiro
cantarolar feliz sem letra
a palavra certa
no momento certo
perdão, dizem
dois pedestres em rota de colisão
ao desviarem para o mesmo lado na calçada
voltar para casa mais cedo
acompanhar o nascer do sol
tocar a pele do bebê
dar tudo por alguém
receber de volta
o olhar
abrir as janelas
a brisa do mar
aroma de café preto
o despertar de uma ideia
sorrir por dentro
uma pequena vitória por dia
o resto é perdição
fogo cruzado
sobrevivência.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

PORCELANA

Foto de Jannet Serhan em Unsplash


Uma amiga dizia

das xícaras de chá

de sua velha tia

que eram sujas

manchadas de restos

de velhos chás e

cerimônias e eu nunca

pude esquecer tal imagem

a velha tia

abandonada por tudo

país família palavras

exceto por suas xícaras

manchadas de memórias

espectros de chá verde, e agora

aquela amiga já não é

a velha tia tampouco

as xícaras se perderam

nos cacos do tempo mas

as manchas

feito relíquias

resistem comigo.