[…] O segundo livro é Museu de Arte Efêmera, de Eduardo A. A. Almeida, lançado esse ano pela Laranja Original. Em seu subtítulo, o livro se apresenta como “um tríptico”, e, de fato, as três histórias que o compõem carregam um efeito de serem partes de um todo, mesmo que independentes uma da outra.
Aqui, Eduardo A. A. Almeida escolheu a fragmentação como forma, e construiu suas histórias em cima disso. Um de seus personagens encapsula bem o procedimento que parece ter sido adotado nesses ótimos contos:
“Não peço uma grande narrativa
mas um apanhado de detritos
rastros e restos menores, com alguma sensibilidade
e um traço de ética.”
(p. 124)
Luminescências, o conto que abre esse tríptico já nos ambienta na tônica de seu Museu de Arte Efêmera. A história nos é apresentada em capítulos curtos, contendo cenas capturadas por câmeras de segurança e projetadas em monitores. Cada cena é um curto episódio que se inicia de forma comum, mas que sempre descamba para o absurdo. Em um dos monitores, acompanhamos um homem de óculos escuros que, deitado em um divã, narra para diferentes psicólogos um mesmo episódio da infância, mas, a cada vez, altera algum detalhe (ou alguns detalhes). Em outro, uma mulher percorre as ruas de uma cidade completamente nua, segurando apenas uma bolsa preta. E, no terceiro, um homem tenta pedir comida em um restaurante que parece não ter comida alguma. As três histórias, apesar de inicialmente separadas, são ancoradas, cada uma, em elementos que ganham importância a cada vez que reaparecem, mas, aos poucos, vemos como até esse sentido que criamos em nossa cabeça não resiste ao absurdo que o conto toma, nos forçando, ao final, a repensar tudo o que foi lido até ali.
De forma semelhante, Eterno retorno, segundo conto do livro, usa a fragmentação para criar a ideia de um tempo circular, onde tudo o que já aconteceu acontecerá de novo, e de novo, e de novo. Também separado em capítulos curtos, vemos a narrativa de um analista de seguros que, ironicamente, se vê envolvido em um acidente de carro fatal, e acorda no que parece ser uma outra dimensão (ou não). Os capítulos se dividem nesse antes e depois, mas sem seguir a ordem cronológica, reforçando, pela nova ordem temporal criada na organização do autor, a inevitabilidade do acontecido ao mostrar como não há nada que possa ser feito, nem antes, nem depois.
Fechando, o conto que dá título ao livro une os elementos de tudo o que apareceu até aqui para, de fato, nos apresentar o Museu de Arte Efêmera, prédio onde Lethe (rio da mitologia grega que apaga a memória de quem bebe de suas águas) e Zakhor (palavra em iídiche para “lembrar”) escutam as tragédias das vidas de seus visitantes e tentam convencê-los a esquecê-las para sempre e se livrarem da culpa, ou a lembrarem delas, para que não se repitam. Aqui, Eduardo A. A. Almeida usa muitos recursos do teatro e da poesia, conferindo a esse conto uma aura de tragédia grega, onde os destinos são inevitáveis, mas a vontade humana de querer mudar o passado é sempre maior, deixando um gosto agridoce na boca e aquela dorzinha do desejo não realizado. […]
Alan dos Santos — Aproveita o espaço dessa primeira pergunta para se apresentar aos leitores do site. Você já publicou por editoras importantes como Laranja Original, Reformatório e Moinhos. Três importantes editoras para o contexto de publicação da literatura brasileira contemporânea e latino-americana. Quantos livros você já publicou?
Eduardo A. A. Almeida — O Museu de Arte Efêmera é meu sexto livro, lançado agora em julho de 2024 pela Laranja Original. É formado por três histórias longas, atravessadas pela questão da memória, e cuja forma traz elementos da dramaturgia, da prosa e da poesia, bem híbrida mesmo. Antes dele eu publiquei um livro de poemas chamado Sutilezas, fins, que saiu por uma pequena editora do Espírito Santo, a Pedregulho. O belo e a bestaé um livro mais experimental, de textos curtos que tratam das proximidades e diferenças entre humanos e outros animais. É um livro engraçado e horrível ao mesmo tempo. Esse foi publicado pela Moinhos. O anterior é o meu único romance até agora — uma novela, na verdade –, de título Diante dos meus olhos, que ganhou Menção Honrosa no Prêmio Sesc e no Nascente USP, foi selecionado num edital de publicação da cidade de São Paulo e chegou aos leitores pela editora Reformatório. Meu segundo livro, já que estamos indo de trás para frente, foi o Testemunho ocular, de contos, poemas e outros textos mais livres, que venceu o concurso da extinta Lamparina Luminosa e atualmente está fora de catálogo. Esse acabou bastante afetado pela pandemia, infelizmente, que prejudicou a sua circulação. Pretendo, em breve, lançar uma segunda edição para que ele fique acessível de novo. Para encerrar, minha primeira publicação solo foi um conto, que saiu numa edição artesanal limitada pela Cultura & Barbárie, chamado Por que a Lua brilha. Foi minha estreia propriamente dita, ainda que antes eu tivesse participado de coletâneas em livros e revistas.
Mas você perguntou também sobre mim, e o que posso dizer, a título de apresentação pessoal, é que trabalho com escrita em diversos âmbitos, em especial a comunicação e a literatura. Além de escrever, assessoro autores e editores em seus projetos de criação artística ou literária. Dou aulas de escrita criativa. Fiz parte do Núcleo de Dramaturgia do SESI, do Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas e desde 2016 componho o coletivo de criação literária Discórdia. Atualmente, colaboro com o portal LiteraturaBr. E tenho uma formação acadêmica na área das artes visuais, que marca meus interesses de pesquisa e minha obra literária, basta ver alguns dos títulos dos meus livros que acabei de citar para perceber que a questão da arte, da imagem e da visualidade está posta desde ali. Se alguém se interessar, encontrará mais informações sobre mim no site www.lerparacrer.com.br, na plataforma Medium e no meu blog www.artefazparte.com. Fica aqui o convite.
Alan — Vamos explorar o Museu de Arte Efêmera (Laranja Original), seu livro mais recente e que tive a oportunidade e o prazer de ler. O livro reúne três contos que exploram a questão da memória e criam uma tensão entre a lembrança (registro, memória etc.) e o esquecimento. De fato, a questão da memória é importante para as três histórias. No primeiro dos contos, um homem refaz sua infância, modificando-a a cada relato no divã; no segundo conto, realizamos uma reflexão profunda sobre destino e escolha: estamos fadados a realizar um plano previamente estabelecido por algo ou alguém ou temos liberdade para agir? No auge dessa tensão, acompanhamos o processo de esquecimento de si de um dos personagens principais; por fim, o último dos contos personifica o embate entre memória e esquecimento confrontando Zakhor e Lethe, um saber judaico ligado à preservação da memória e o rio grego do esquecimento. Como se deu a composição das narrativas e foi intencional estabelecer a memória como o ponto de unidade do livro?
Eduardo — Você fez uma leitura muito perspicaz, o que me deixa pleno de alegria. A questão da memória atravessa as três histórias, mas não foi intencional. Na realidade, antes de ser livro, eu havia criado três dramaturgias autônomas, escritas durante minha passagem pelo Núcleo de Dramaturgia do SESI. Isso foi em 2018. Quatro ou cinco anos depois é que retomei aqueles textos e me dei conta de que tinham algo em comum, que poderia conectá-los se eu os dispusesse juntos. Foi quando surgiu a ideia do livro. Mas eu não queria reunir os textos como estavam, pois tinham sido escritos em outra situação e com outro propósito. Comecei a retrabalhá-los, com especial cuidado em relação à linguagem. Eu queria transformar dramaturgias em contos longos, mas isso não é tão simples assim, há ideias em teatro que não funcionam tal e qual na prosa, há rubricas e atos que não se tornam narrações e capítulos simplesmente porque o autor assim o deseja, então me vi tomado por um embate complexo. O resultado é híbrido, ou ambíguo; algo entre a dramaturgia, a prosa e a poesia. Mas a inquietude original se preservou nesses novos formatos, o que me deixou satisfeito. E se no tema temos um ponto comum, que é a memória, na forma acredito que haja outro, que é a questão da montagem. Quer dizer, os três contos têm uma influência grande do pensamento de Aby Waburg, que conheço por intermédio do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, e que trata de produzir estranhamentos por meio da aproximação de elementos diferentes. Sem querer complicar demais, eu explicaria assim: em vez de uma narrativa linear, convencional, coesa, me interessava desenvolver cenas breves que, postas juntas, pudessem criar atritos, conexões inesperadas, perturbações. As histórias poderiam ser contadas de muitas maneiras. Escolhi propor uma experiência de leitura mais provocativa. De certo modo, é mesmo como caminhar por um museu e olhar cada objeto exposto em sua singularidade, e então começar a criar associações entre eles, algo que vai acontecendo de maneira consecutiva, sem que se possa controlar.
Alan — Eu não conhecia o conceito de Zakhor. Poderia falar um pouquinho sobre ele ou sobre como você chegou a ele?
Eduardo — Fui atrás de Zakhor porque, mais do que uma personagem, eu precisava de uma espécie de entidade capaz de representar a cultura, a sabedoria, a ancestralidade, a tradição. Em algum momento da pesquisa, me deparei com esse termo, que se traduz como uma ordem: “lembra-te”. Uma palavra que, segundo Paul Ricoer, por muito tempo ocupou o lugar da história científica na tradição judaica. Zakhor produziu, assim, a oposição que eu queria em relação a Lethe, o rio que os gregos mortos atravessavam e que apagava as suas memórias da vida anterior. Veja que curioso: memória, cultura, sabedoria, ancestralidade, tradição, são todos termos femininos, e assim caracterizei Zakhor como uma entidade feminina. Enquanto o esquecimento, Lethe, é masculino. Não estou dizendo que são homens e mulheres, mas masculinidades e feminilidades apresentando suas diferenças num embate que remonta às tragédias clássicas. O Museu de Arte Efêmera é um livro em que a força do feminino está bastante presente. Mas isso, assim como a ideia de Zakhor, foi se construindo um pouco por vontade própria, não é que eu tenha previsto ou agido de maneira proposital. São frutos do processo criativo.
Alan — Todo o livro faz um forte flerte com a dramaturgia, especialmente a primeira das três histórias: “Luminescências”. No final do conto há orientações de como montar a exposição. Como foi costurada a relação com a dramaturgia? Salvo engano, já ouvi você dizer que a origem das histórias remete justamente à uma experiência vinda do teatro. Se for isso mesmo, gostaria de saber então como foi a transição para a literatura e mais especificamente para a forma do conto. Qual foi o seu maior desafio na lapidação do texto? No final das contas, é muito diferente escrever uma peça e um conto?
Eduardo — Foi isso mesmo, os três contos eram inicialmente dramaturgias, eu quando percebi que elas poderiam produzir conexões interessantes publicadas num único volume, a solução que encontrei foi transpor a linguagem do teatro para a da prosa. Mas isso não é um processo automático, quer dizer, não se trata de mudar aqui e ali e pronto. Existem dinâmicas, recursos, propósitos específicos de cada gênero, e que precisaram ser reinventados. Algumas transformações foram bem graves. O primeiro conto, que você citou, resultou num texto completamente diferente do original. Mas o mais importante, a meu ver, é que ambos carregam o mesmo propósito. Talvez em literatura isso seja mais difícil de perceber, mas se pensarmos em termos de, digamos, pintura e fotografia, a discrepância das linguagens é evidente. Você pode pintar uma cena que a princípio tinha sido fotografada, mas ela será construída com tela, pincel, texturas, pigmentos, gestos corporais. E vice-versa. Minhas dramaturgias continham naturalmente rubricas, que são uma espécie de paratexto cuja função é situar o leitor, indicar ações dos atores, fornecer informações que não cabem na fala, entre outras funções. De algum modo, essas rubricas assumem um papel semelhante ao do narrador em terceira pessoa da prosa. Então, esse é um caminho de transposição entre as linguagens. “Luminescências”, ainda como dramaturgia, se pautava numa dinâmica de apagar e acender as luzes do palco — boa parte da peça se passaria na escuridão. Como levar isso para o conto? Não havia o menor cabimento sugerir que o leitor fechasse os olhos e continuasse a ler. No meio do caminho, me ocorreu a ideia das câmeras de segurança. Com elas, eu consegui reproduzir na prosa a dinâmica de cenas breves que tinha previsto para o palco. E, por sua vez, isso das câmeras seria bem desafiador de apresentar num palco, pois trata de ver a cena acontecer por intermédio de um aparelho eletrônico e de um recorte, que é o enquadramento da gravação. Esses são alguns exemplos das muitas diferenças entre a dramaturgia e a prosa. Há também a questão da recepção, quer dizer, a prosa se dirige a um leitor com livro na mão e leitura solitária, enquanto a dramaturgia se dirige a uma produção teatral e a uma interpretação do texto que será apreciada coletivamente. Isso, por si só, já é capaz de mudar muita coisa. Mas há também semelhanças. Porque, no fim, estamos falando de palavras sobre o papel, palavras lidas de maneira silenciosa ou em voz alta, palavras que vão ressoar num outro, desconhecido do autor. Talvez seja esse o grande fato da literatura, o seu ponto de irredutibilidade.
Alan — Minha formação é em filosofia, e mais especificamente em filosofia contemporânea. Digo isso para ressaltar que gosto muito do contraste entre as noções de unidade e diferença, preferindo quase sempre a força da diferença. O conto “Luminescências” brinca com essas duas noções. Acompanhamos a história através de câmeras de monitoramento. Contudo, a cronologia não é sequencial, exata ou linear. Daí a aposta na diferença. Há câmeras e monitores diferentes, todos fora de ordem. Li pela primeira vez seguindo a proposta estética caótica do conto. Fui totalmente capturado pela trama. E apesar do gosto pela diferença, fui aguçado pela busca da unidade. Refiz a leitura, dessa vez por monitores e por câmeras, organizando uma ordem lógica, refazendo o percurso proposto pelo livro num jogo de idas e vindas, e creio mesmo ter identificado uma coesão na narrativa. Você esperava que os leitores fizessem de fato esse exercício de busca por unidade ou por coerência — essa nossa tola obsessão? Você concorda que o seu texto faz uma aposta radical na diferença? Em suma, como foi pensada a narrativa desse conto? Ressalto que essa foi a minha história favorita.
Eduardo — Me parece natural que, você sendo um filósofo, sua leitura do livro seja orientada por questões filosóficas, ou pelo menos atravessada por elas, e tenho muita curiosidade para ouvi-la mais a fundo. Mas é claro que, não sendo eu um filósofo, meu processo de escrita acaba seguindo outro caminho, embora em diversos pontos ele e o seu se encontrem. Digo isso porque, por exemplo, quando decidi embaralhar as três narrativas do primeiro conto, que estão ali representadas como monitores A, B e C, eu não pensava no conceito de diferença, e sim em privilegiar cada “cena”, ou cada acontecimento. Para dizer de maneira mais simples, eu abri mão de uma narrativa linear convencional porque queria que o leitor apreciasse cada imagem em si mesma, e que só depois buscasse conexões entre elas. Assim, nós temos nesse conto três narrativas, cada uma delas com um número variado de episódios, que são de fato numerados. Isso possibilita que o leitor faça o mesmo que você: ao fim do conto, retorne ao início e siga um percurso “cronológico”. Nas “notas para a montagem da exposição”, como você notou, esse convite está posto claramente. Com um aviso: “convém alertar o espectador de que essa mudança acarretará em uma experiência estética diferente”. No fim, é disse que se trata, de sugerir uma experiência estética diferente, e nesse ponto eu concordo plenamente com você, foi uma aposta radical na diferença, aqui obtida por meio da estrutura do conto. Existe uma coesão, é verdade. Mas ela me interessava menos e ficou em segundo plano. A força do conto vem de outro lugar, na minha opinião. E eu nem acho que nossa obsessão pela unidade é tola, porque é o que traz sentido para a vida, o que nos organiza e dá condições de seguir em frente. Mas a vida não pode se resumir a isso. E acredito que a literatura tem o potencial de produzir aí uma fissura, uma inquietação, enfim, dar uma bagunçada no que se pretende muito correto.
Alan — É perceptível a influência do pensamento de Nietzsche ao longo do livro. O próprio Nietzsche escreveu um livro sobre a importância da história e do esquecimento para a vida humana. O segundo conto recebeu por título “Eterno Retorno”, um dos mais belos conceitos de Nietzsche, e destaca também a voz profética do super-homem. O terceiro conto traz a força trágica do pensamento de Nietzsche e reforça a tensão entre memória e esquecimento adicionando o elemento do ressentimento perante o acontecido, no caso do conto, a perda de uma filha. Eu estou vendo Nietzsche em tudo ou seu livro busca mesmo esse diálogo de forma consciente e premeditada?
Eduardo — Bom, você já tinha descoberto que sou leitor de Deleuze e Derrida, e agora de Nietzsche. Mas meu interesse por esses filósofos tem muito mais de curiosidade pela maneira como eles transformaram a maneira de produzir pensamento do que um procedimento metodológico propriamente dito. Vamos colocar assim: sou um leitor descompromissado no que diz respeito à filosofia. Vou me apropriando dos conceitos tanto quanto das histórias que ouço ou de acontecimentos que testemunho, tudo se torna recurso para a escrita literária. Sempre achei linda a declaração de Lygia Clark de que “engravidava pelos ouvidos”, também ela querendo escapar de uma determinação intelectualizada da sua obra. Ela admitia ler e se encantar com o conhecimento advindo de outras áreas, mas aquilo em suas mãos se transformava em outra coisa, era matéria-prima para a criação artística. O eterno retorno, no caso desse meu conto, é um pouco isso também: uma referência, uma chave de leitura, um conceito que me marcou. E não é algo recente: li o Zaratustra na faculdade, vinte anos atrás, com minha cabeça de pós-adolescência. Depois até quis retomá-lo para desenvolver o conto, mas achei que acabaria por tentar aplicar na literatura as “ideias em filosofia”, como diz Deleuze em seu artigo sobre o ato de criação. Isso estaria fadado ao fracasso, então não voltei a Nietzsche. Deixei apenas que minhas impressões de décadas antes continuassem a ecoar. A bem da verdade é que as primeiras versões dessa história datam mais ou menos daquela época, então a influência esteve mesmo presente com maior intensidade. Com isso tudo, quero dizer que você está vendo Nietzsche no livro inteiro, e não tiro a sua razão. Mas não se trata de uma ação tão consciente assim e muito menos premeditada, com exceção da menção ao super-homem. Acredito que alguns autores são tão marcantes em nossa formação que não conseguimos deixá-los jamais.
Alan — Aproveitando o gancho, quais são as suas influências literárias? Quais autores e autoras te influenciam no processo de escrita? De onde vêm a sua verve experimental?
Eduardo — Embora eu leia um pouco de tudo, a vertente fantástica da literatura cria diálogos mais fortes com a minha obra. Gosto muito de Julio Cortázar, Italo Calvino, Murilo Rubião, esses clássicos. Mais recentes, me identifico com o que fazem a Samanta Schweblin, a Veronica Stigger, o Gonçalo M. Tavares. Porque são autores que extrapolam o convencional e ampliam as possibilidades da forma. Seus livros nunca são previsíveis. Experimentam, provocam, surpreendem, incomodam, nos deixam meio atônitos, questionando os limites da literatura e o que um livro pode proporcionar. E todos eles contistas, ainda que não exclusivamente. Não é por acaso. Esse é um formato que permite muitas aberturas, seja em relação à forma, à linguagem, às subversões.
Alan — Sempre gosto de pedir: poderia citar três livros que você leu recentemente e que te marcaram?
Eduardo — O livro dos lobos, do Rubens Figueiredo.Encontrei ali contos repletos de estranhamento e um profundo silêncio. Não conhecia esse lado ficcionista do Rubens, que também exerce um trabalho importante como tradutor e ensaísta.
Flecha, de Matilde Campilho. Um livro difícil de definir, formado por um apanhado de imagens e histórias breves que misturam fatos, ficção, perspectivas narrativas. Lindo demais.
O museu do silêncio, da Yoko Ogawa. Gosto muito da literatura japonesa e do trabalho da editora Estação Liberdade. Este é um romance contemporâneo que também fala da memória, dos rastros que deixamos, da efemeridade.
Alan — Por fim, sinta-se à vontade para comentar qualquer outro aspecto do livro que porventura eu não tenha te perguntado.
Eduardo — Eu preciso lhe dizer que foi um prazer imenso responder a perguntas tão interessadas e generosas. Elas me fizeram ver o meu próprio livro com outros olhos. Só posso expressar minha gratidão. E se tem algum aspecto que ainda cabe comentar talvez seja a escolha por reunir três textos e chamá-los de “tríptico”, termo tradicionalmente usado no campo da história da arte para se referir a retábulos de altar, muito populares na Idade Média. Suas imagens quase sempre têm em comum uma linha narrativa, uma moral, um personagem. Meu percurso pela pós-graduação se deu sempre no campo das artes visuais, e diversos dos meus escritos trazem questões oriundas das pesquisas que realizei ali. Os diálogos entre a literatura e as artes visuais me interessam especialmente. Veja esse meu livro mais recente: desde o título já nos deparamos com um museu de arte. Mas a reunião de três narrativas longas também é recorrente na literatura. Temos a edição dos Três contos de Flaubert, talvez a primeira que me chamou a atenção para isso. Mais recentes, temos Sul, da Veronica Stigger, e Sebastopol, do Emilio Fraia. Com certeza há muitos outros que eu poderia citar aqui. Mas eu só queria mesmo dizer que houve nessa escolha uma intenção, e ela me ajudou a explorar o meu interesse pelas artes e pelas imagens, o que veio bem a calhar.
* Esta entrevista foi conduzida pelo filósofo e psicanalista Alan dos Santos e publicada originalmente no site Deus Ateu.
Aquele sujeito que passou, o que pensou? Era um homem e uma garota, na verdade, talvez pai e filha, como nós. Porém, em silêncio. Enquanto eu tentava explicar a você o significado do infinito. As perguntas que uma menina de seis anos faz a caminho da escola! Pai, os números acabam no infinito? E eu, que não consigo deixar passar uma contradição dessas, me pus a explicar que o infinito é só uma ideia. Ele só existe como conceito, eu dizia bem no momento em que os dois passaram apressados pela calçada ao nosso lado. E depois fiquei imaginando se eles ouviram nossa conversa, apenas esse trechinho. Ficaram, talvez, surpresos. Como falar sobre existências meramente conceituais com uma menina de seis anos de idade, numa manhã gelada, caminhando até a escola?
Os números nunca chegam ao infinito, eles apenas seguem rumando naquela direção. Papai, os números não terminam nunca? Existem milhões de milhões? Respondi com uma pergunta – perguntei se você sabia o que é o horizonte. Sim, você me respondeu. O que é o horizonte? E você cantou a música do desenho animado, “o horizonte me pede para ir tão longe…” Muito bem, eu respondi. É isso. O horizonte sempre pede para irmos mais longe. Mais e mais. E nós nunca o alcançamos. Como o mar que observamos na areia da praia.
Seu horizonte atual são os números e as letras. Você está encantada com as descobertas. Quer saber o significado de tudo. E me fez lembrar de quando eu lia, na sua idade, O menino maluquinho. Eu lia e relia. A mesma edição de 1980 que ainda leio para você. Tenho muito vivo o sentimento gostoso de desvendar as expressões usadas por Ziraldo para definir o personagem. Macaquinhos no sótão. Fogo no rabo. Olho maior que a barriga. Vento nos pés. Os desenhos literais, as palavras figuradas. O avô, acusando o neto de subversivo porque levou bomba na escola, só fez sentido anos depois. Assim como o estranhamento de quando o goleiro Maluquinho, o melhor de todos, não conseguiu segurar o tempo. E o tempo passou. E o menino cresceu. E mesmo o final feliz era um pouco triste. Por quê? Porque a vida voa. E eu demorei demais até entender que só as palavras podem ir além. Tão longe!
Ziraldo se foi alguns meses atrás. Só agora me peguei pensando em como teve importância na minha meninice, na minha adolescência, na minha vida de leitor. Em como seu livro se transformou comigo a cada releitura. E foram tantas! Como fez para dizer isso tudo em uma história tão...? É a pergunta que me cabe tentar responder como escritor. Sigo nessa busca, rumando na direção de uma resposta. Quem diria.
E então Ziraldo se foi. Mas o menino continua a aprontar. Na minha vida e agora na sua. Um menino impossível. Porque um menino infinito.
Não faz muito tempo, comecei a organizar com maior rigor as minhas leituras, refletindo sobre os assuntos do meu interesse, traçando planos e tomando notas, seja para depois escrever resenhas ou como forma de estudo. Em 2022, li um total de 53 livros. Número que só decorei porque, coincidentemente, no ano seguinte li a mesma exata quantia. Isso dá uma média de pouco mais de quatro livros por mês, ou um por semana. Mas em janeiro de 2024 eu li um único livro. Em fevereiro também. E tudo bem. Porque estou tentando ler melhor.
Eu já vinha pensando em exercitar uma leitura mais analítica, embora essa ideia só tenha se apresentado com clareza por causa do livro Para ler como um escritor (editora Zahar), em que a estadunidense Francine Prose explica como a leitura atenta a fez uma leitora melhor qualificada e, por consequência, uma escritora mais habilidosa.
“Leio minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor”, diz a autora, que também dá aulas de escrita. Para ela, “todos nós começamos como leitores atentos. […] É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros que lemos foram escritos”.
Essa consciência do ritmo, da dicção, do tom, da maneira como as frases são construídas e como a informação é transmitida, como o escritor estrutura a trama, cria personagens, menciona detalhes e desenvolve diálogos, entre outros pormenores, requer um carinho especial do leitor com a forma do texto. E não pode haver nada mais importante. Pois é a forma que diferencia uma narrativa literária de um relato qualquer.
A apreciação estética de um texto literário convoca o leitor a usufruir com maior profundidade da escrita como arte. Mais do que a disposição para entender a história contada, ela trata do como se conta, de quais recursos estilísticos foram empregados, quais foram as escolhas do escritor e, claro, as suas consequências na leitura. Ler com esse prazer pela linguagem é semelhante a ouvir uma música com atenção às notas e arranjos da sua execução.
Francine Prose enumera ainda outras camadas que essa leitura suscita. Como os casos em que as revelações cruciais de uma trama estão nos interstícios, ou seja, estão apenas sugeridas nos não ditos, nos espaços entre as palavras. Podemos pensar também em como as frases se ordenam para enfatizar um sentido interpretativo. Ou como mudanças de parágrafo indicam deslocamentos nos pontos de vista da narrativa. Como os diálogos trazem implícitas as intenções dos personagens ou a parcialidade do narrador. Por qual motivo nos identificamos, ou não, com eles. Como os detalhes situam um personagem em seu ambiente, ou como um gesto sutil é capaz de apresentar algo fundamental da sua subjetividade. Quem conduz a narrativa. Com quem fala. Quais são os tempos verbais. Como se estabelecem as relações entre um personagem e outro. Como a linguagem parece adequada a determinado contexto. Como o autor usa os estranhamentos para revelar novas perspectivas sobre algo tornado banal. Ou, ainda, como a gramática é empregada, como as normas são subvertidas, como outro usos da língua são inventados para dar conta de um propósito narrativo.
Acontece que isso tudo implica uma leitura exigente. Que demanda, em primeiro lugar, atenção. E em segundo lugar requer lentidão. Requer maior preocupação com a qualidade do que com a quantidade. Além de um olhar treinado.
Francine Prose fala sobre ler de perto, como quando nos aproximamos de uma pintura de Rembrandt para observar suas pinceladas. Claro, afinal, as palavras são matéria-prima para o escritor, assim como as tintas para o pintor, ou as notas musicais para o compositor. Seguindo com as comparações, a autora cita o russo Isaac Bábel, para quem a linha é tão importante na prosa quanto na gravura.
E mesmo ensinando escrita há décadas, Francine Prose vê a atividade com desconfiança, claramente dando preferência à maneira como se formou, ou seja, lendo com entusiasmo, com empenho, com olhar crítico. Para ela, oficina de escrita e leitura atenta são práticas complementares. Que todavia operam em sentidos opostos: enquanto a primeira, assim como os manuais de estilo, expõe o lado “negativo”, ou seja, o que não se deve fazer, a segunda reúne modelos positivos, destacando o brilhantismo de certos profissionais da área.
E se você não tem pretensões de aprender o ofício, ainda assim é possível se aperfeiçoar como leitor. Em ambos os casos, ler muito não significa, necessariamente, ler bem. Não tenho dúvidas de que se pode argumentar ainda que tudo depende do propósito que leva cada pessoa a buscar um livro. Porque há tantos os aficionados pela arte das letras quanto aqueles que não querem mais do que um passatempo tranquilo. A depender da ocasião, um mesmo leitor pode ser A ou B, não há motivo para fronteiras rígidas.
Para ler como um escritor traz, no final, uma entrevista com a autora. E em meio às respostas dela se encontra a seguinte provocação, que destaco como última reflexão para todos nós: “Há escritores que seriam mais lidos – e, inversamente, escritores que nunca seriam lidos – se as pessoas realmente observassem quão bem ou quão mal eles escreviam. Na maioria dos casos, eu preferiria ler algo que está lindamente escrito e não aborda grandes temas a ler algo aparentemente mais denso que não tenha um tipo de uso novo ou revigorante da linguagem”.
“Encontrar a escama da escama. Ou aceitar que não há
escama alguma.”
Trecho do conto “Jiboia”, que dá título ao livro publicado pela Aboio
Jiboia, de Cecília Garcia, aposta na natureza como
tema de seus enredos, com destaque para a natureza humana (existe outra,
aliás?). São ao todo 16 contos, em sua maioria curtos, com cerca de 3 páginas
cada, que pesam amor e violência numa balança pouco otimista. E se em alguns
deles a animalidade marca o comportamento dos personagens, em outros serve como
pano de fundo para relações interpessoais acontecerem.
“Ciclista dócil”, por exemplo, conta a história de uma
mulher que sequestra um lobisomem-guará com o propósito de ser mordida e se
transformar em criatura da mesma espécie. Enquanto “O centauro hesita” evoca o
signo de Sagitário para contar as descobertas sexuais de dois adolescentes.
Jiboia traz figuras incomuns, que não deixam de
causar estranhamento. E há algo na sua linguagem que tampouco é fácil de
apreender. “A mãe verde”, que abre o livro, fala de uma mulher em convulsão que
pode contar apenas com o socorro de suas crianças. A narrativa vai, assim,
dizendo sem dizer, apresentando seus conflitos de maneira sugestiva, cuidando
para não soarem explícitos, como mera denúncia moral.
Outros contos têm o mesmo teor de elaboração,
assemelhando-se à prosa poética. Em “O Monza do faraó” lemos: “o sabor pastoso
da madrugada” e “tinham na boca a costura do medo”. Imagens apuradas, que enriquecem
a experiência da leitura, mas cujo excesso eventualmente cria contratempos. Ao
ponto em que lemos, no mesmo conto: “os olhos grávidos de propósitos
histriônicos”. Histriônicos.
Fato é que, neste seu livro de estreia, Cecília conseguiu
explorar uma temática importante sem recair em romantismos ou levantar
bandeiras verdes. Seu texto é maduro e diverso, criativo. E o conjunto da obra
é coerente, quer dizer, os contos funcionam bem reunidos, apesar da variedade
de questões, lugares, personagens e recursos técnicos (sketch, parábola,
flashback, naturalismo, fantasia, monólogos etc.). Vemos também ali retratos de
um Brasil folclórico, de interiores geográficos e psíquicos, como raras vezes
se apresenta em nossa literatura contemporânea. Pontos extras para a autora, que
chega mostrando garra. E dentes.
Confira a resenha do livro e, na sequência, uma entrevista com o autor.
“O que tem o último degrau? É onde a fila vai dar, oras! O homem de chapéu parece confuso. Sobem mais quatro pessoas. Não, não, o último degrau fica lá em cima. É claro que não fica!, você protesta. Ele se vira para o jovem com espinhas atrás dele: nós não viemos lá do último degrau, lá em cima? O jovem concorda, diz que sim e faz joinha com as mãos. Lá embaixo deve ser o primeiro degrau.”
Cães noturnos é o primeiro livro solo do paulistano Ivan Nery Cardoso. Nele estão reunidos 20 contos, divididos em duas partes de 10. São em geral textos breves, com uma média de 3 ou 4 páginas e algumas exceções. Embora os temas sejam variados – como um bacanal no Paraíso, brincadeiras de crianças, arte no apocalipse atômico, amor programado com inteligência artificial, turismo em Marte, lobisomens e afinação de piano, para citar alguns –, em comum eles apresentam certo estranhamento que flerta com o fantástico, ainda que nem sempre se trate disso exatamente, ou nem sempre isso se dê nos moldes de um Julio Cortázar ou um Murilo Rubião, por exemplo.
Pois Ivan manipula também elementos de outros gêneros, outras referências, outros interesses literários: o horror, como no conto que dá nome ao livro, ou em “Noite dos loucos”; certo viés explicitamente político, como no caso da comunidade incendiada de “Pompeia”; ficção científica em “Blogueirinha” e “Em busca da flor elétrica”; e assim por diante.
O fantástico, tal como se conhece, também pode ser visto aqui e ali, como no conto “Sentimento oceânico”, em que um ser amorfo habita as entranhas do protagonista; em “O pote”, recipiente capaz de preservar as últimas palavras de um morto; ou nos homenzinhos e mulherezinhas responsáveis por fazer soarem as notas de “O piano”. Destaca-se, ainda, “O último degrau”, em que o non sense, o comportamento protocolar e o convívio social urbano se encontram na mesma fila, onde pessoas aguardam com alguma impaciência por algo que desconhecem, numa trama que lembra tanto Kafka quanto aqueles dois autores mencionados anteriormente.
Se essa miscelânea por vezes parece irregular, há características que aproximam os contos, tais como a escrita convidativa de Ivan, generoso com o leitor, permitindo a ele que usufrua das histórias sem dificuldades estilísticas, formais, linguísticas. Há também uma sexualidade que atravessa a maioria dos textos. E uma profanação de temas sacros – o destino da alma cristã, por exemplo – e tabus morais como o amor homoafetivo ou a traição no matrimônio.
Ivan Nery Cardoso nos oferece um universo de possibilidades narrativas, mostrando-se criativo e habilidoso na condução do leitor através de seus enredos incomuns, o que é sempre um desafio. O livro se mostra, assim, uma estreia promissora, que deixa vontade de saber como o autor seguirá ascendendo na literatura. Os caminhos estão aí.
1. No prefácio de Cães noturnos, Nelson de Oliveira afirma que “onde não há estranhamento não há arte”. De fato, seus textos evocam esse sentimento, que se traduz de maneiras variadas ao longo das histórias. O estranhamento é um recurso literário para você?
Definitivamente, sim! Só me atraem, verdadeiramente, as histórias que se pautam pelo estranhamento que seus mundos, suas tramas e suas personagens causam em nós. Não sou muito chegado ao chamado “realismo” na literatura que leio e que produzo, preferindo obras que não tentam recriar e oferecer respostas aos problemas e situações do nosso cotidiano, mas, sim, onde as personagens se encontram em um estado de confusão com a realidade (ou a irrealidade) ao seu redor, nos levando junto com eles. Também não gosto muito de contos que se fecham de forma redonda, com respostas a todas as questões abertas ao longo da narrativa. Prefiro histórias com finais abertos, que criam um espaço para os leitores teorizarem, imaginarem, colocarem um pouco de si ali dentro. Especialmente nos contos de Cães noturnos, quis escrever histórias que mexessem com as expectativas dos leitores, os levassem a lugares estranhos, não familiares (podemos pensar no conceito do Inquietante, de Freud), e os largassem lá (pense, por exemplo, no final de “Sementes”), sem uma resposta definitiva. Esse recurso do estranhamento os leva a terminar a história nas suas mentes, e, nesses finais inventados, espero que os leitores possam encontrar algo dentro de si para levarem de volta às suas realidades.
2. Seu livro traz um apanhado bastante heterogêneo de temas. Se à primeira vista isso pode sugerir certa fragilidade, como se os textos não se encontrassem, é também uma amostra consistente de sua criatividade. Como você vê esse conjunto reunido em um único volume? Como foi escrevê-los e selecioná-los?
A escrita desses contos se deu de forma bastante difusa, geralmente durante o bloqueio criativo que experimentei na escrita de outros projetos (que seguem não finalizados). Muitos deles surgiram em oficinas de escrita, enquanto outros vieram à tona em momentos muito improváveis, após uma amalgamação de referências em algum canto do meu inconsciente. A seleção é que foi a parte mais curiosa, para mim. Já estava tentando organizar um livro de contos há muito tempo, e acabei separando-os em duas obras: uma de contos mais longos, mais “sérios” e “profundos”, e uma de contos mais curtos, debochados, mais “descompromissados”, digamos assim. Um dia, percebi que os contos dos dois livros brincavam com uma mesma ideia de falta de sentido experienciada pelas personagens. Além disso, os contos dos dois livros eram, na verdade, versões dos mesmos assuntos, e cada história de um deles possuía uma contraparte no outro. A partir disso, comecei a montar a ordem do livro que viria a ser o Cães noturnos, mas que, naquela época, possuía outro nome. Selecionei 20 contos que, no fim, exploravam 10 temas diferentes, e essa foi uma das partes mais divertidas da montagem do livro, pois descobri muito sobre o meu processo criativo.
3. O livro se divide em duas metades, cada uma com 10 contos. Mas a leitura se sucede sem grande solavanco entre elas. Isso já constava em seu projeto original ou foi uma decisão posterior, talvez já durante o trabalho de edição?
A ordenação dos contos foi o que transformou o Cães noturnos no livro que ele é, e isso veio do processo que descrevi na resposta à pergunta anterior. O que fiz, no livro, foi separar os contos em duas partes que atuam como versões espelhadas uma da outra. Isso pode ficar mais claro no caso do primeiro e do último conto, que funcionam como uma pergunta e uma resposta, mas pode ser observado em todos os outros: o segundo se relaciona com o penúltimo, o terceiro como antepenúltimo, e assim por diante, até o momento em que uma termina e a outra começa. Acho que isso pode contribuir para essa sensação fluida de leitura que você comentou, pois há um fio condutor que leva os leitores do começo até o fim do livro, fechando um círculo. Ainda não tenho relatos de pessoas que tenham lido os contos em outra ordem, então não sei se isso afeta a experiência de leitura. Durante o processo de edição houve um trabalho mais no texto, e não tanto na ordem dos contos, apesar de eu ter tirado um conto que não estava muito amadurecido e colocado “O último degrau” no lugar, pois o julgava mais pertinente à obra como um todo.
4. Há uma sexualidade eminente na maioria dos contos de Cães noturnos, e chamam a atenção os relacionamentos homoafetivos, apresentados sem que seja esse o conflito do conto, o que me parece um feito importante sobre a presença do assunto na literatura. Quer dizer, os homossexuais são personagens comuns, vivendo aventuras que não têm necessariamente a ver com a sua sexualidade. Você pode comentar essa escolha?
Apesar de trabalhar com o estranhamento nas minhas histórias, eu não queria que a sexualidade fosse um fator contribuinte para essa sensação, mas sim, um assunto normalizado ao longo do livro. As personagens são quem são e se relacionam como se relacionam. Se isso afeta suas narrativas de alguma forma, não é por conta dos gêneros aos quais são atraídos, mas por conta de seus próprios conflitos internos e de como lidam com eles. O que eu desejo que cause um estranhamento nos leitores é a situação que as personagens estão vivendo, a realidade ao seu redor, seja ela convidativa ou não.
Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.
Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.
Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?
Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?
Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.
Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.
Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.
Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.
Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.
Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.
Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.
A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.
Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.
Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?
Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.
Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a
pátria que os pariu.
“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.” (trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)
Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?
Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.
Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.
Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.
No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.
1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.
2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.
3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.
4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.
ERVA BRAVA, de Paulliny Tort (Editora Fósforo), reúne doze contos que se passam na cidade fictícia de Buriti Pequeno, no interior de Goiás. Daquela terra sertaneja brotam personagens como o agricultor turrão, a primeira-dama romântica, a benzedeira dedicada, a parteira feminista, o drogadito, o sineiro, o ludibriado, entre outros. Com seus dramas particulares, eles de alguma maneira contam do lugar onde vivem, assim como a cidade diz muito a respeito dos habitantes. No fim, uma parte não existe sem a sua contraparte. E digo contraparte porque tais relações não são pacíficas — boa quantidade dos conflitos do livro provém daí. Trata-se, sem dúvida, de um projeto literário belamente estruturado, com perspectivas e enredos variados, todos eles também conectados a um destino nada promissor: a destruição do município por um dilúvio no conto final, intitulado “Rios voadores”. Com isso, lava-se a alma de um Brasil perdido entre as modernidades, tradições e contradições do agronegócio, do tráfico de drogas, da corrupção, da herança colonial, da intolerância, do machismo, enfim, das violências todas que vivemos em nossas cidades reais.
“A damurida, prato tradicional de meu povo já fazia parte, de um jeito mágico, de meu paladar. […] As pimentas dançam no rio da minha memória, invocando a antiga canção dos antepassados que me chama de volta pra casa.” Julie Dorrico, Editora Caos & Letras, p. 27
Acredito que a grande questão do livro Eu sou macuxi e outras histórias é aprender a ser/pertencer a essa etnia. Isso implica não
apenas conhecer a língua ou praticar os costumes, mas reavivar uma memória que,
no limite, é a própria essência cultural daqueles indígenas.
Quem encara a
jornada é a narradora dos textos que compõem o livro, que não são exatamente
contos, são também poemas, relatos, fábulas, registros de acontecimentos.
Narradora que ora é observadora, ora é personagem, ora cede a palavra e se
torna ouvinte da avó, que por sua vez conta histórias por intermédio de uma
tradutora – do macuxês para o inglês para o português para uma língua própria,
inventada. Assim, coloca-se em pauta a tradição oral e as permanências e
transformações que atravessam gerações.
Mas talvez o que mais tenha me intrigado
seja o abandono daquele “eu” convencional, numa atitude fundamental para a
narradora se tornar macuxi. Ela faz isso contando não somente uma experiência
sua de conhecimento e imersão, mas dando voz às mitologias fundadoras de um
povo. Só assim, abandonando uma determinada “si mesma”, é capaz de aprender a
ser ainda mais; aprender a ser uma indígena e uma nação macuxi ao mesmo tempo.
Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?
“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.
O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.
Havia Pedro no meio do caminho de Zé Ser, a cobra que veio do Paraíso prosear e versejar e tirar as nossas coisas do lugar. Criatura que desde sempre circula por aí abocanhando o próprio rabo, “que percorre estas bandas em busca de antídoto para monotonia”, nas palavras da própria, ou seja, solução para o tom único, a voz solitária, a ideia fixa. E entre Pedro e a cobra Zé Ser, o que se destaca é, justamente, o “entre”; melhor dizendo, os interstícios que marcam este pequeno livro de Fernando Sousa Andrade. Os intervalos, as pausas, as rupturas, as intermitências, os cortes, os vãos, os hiatos entre a música e o pensamento crítico, entre o verso e a prosa, entre melodias e cenas narradas como lapsos cantados de uma existência meio humana e meio animal.
Esse espaço intermediário é explorado pelo autor com um método capaz de interromper o estabelecido. E o que lemos são, muitas vezes, questões de sujeitos perdidos no universo da linguagem; a linguagem e os sujeitos desconstruídos com esmero, como se Fernando garimpasse palavras nos escombros recém-criados e lapidasse novas possibilidades de sentido, buscando feitos, efeitos e defeitos reversos; as “linhas soltas e fluídas” que atribui aos músicos e filósofos, suas inspirações poéticas. “Toda palavra é só uma ciranda”, diz um dos versos, jogando com o leitor.
Há sem dúvida esses atravessamentos todos em seus Interstícios (Penalux, 2021). São caminhadas poéticas ao ritmo de provas ou trovas. Indeterminações. Cadência de palavras contra certa decadência dos significados objetivos, alguns inesperados, algumas suspensões da lógica que, paradoxalmente, são criadas com analogias precisas, sonoridades e um inegável interesse filosófico. Mas o livro não é uma aplicação de conceitos nem uma suposta composição musical; é mesmo uma experiência literária que se articula entre a palavra e a vida, entre a linguagem dos seres e o silêncio da página branca, em intervalos preciosos que não cessam de acontecer – “eternos interstícios”, diz um dos textos ali reunidos. Fraturas no comum que o abrem para outros espaço-tempos poéticos.
As afinidades e desavenças entre humanos e outros animais estabelecem um ramo extenso da literatura, desde as fábulas de Esopo a escritores contemporâneos. Fui me embrenhando por essa selva cheia de mistérios, encantos e absurdos enquanto escrevia meu livro mais recente, chamado O belo e a besta, que está sendo lançado agora pela editora Moinhos.
Talvez você já tenha lido uma porção de histórias sem se atentar a essa questão. Às vezes, a animalidade é apenas parte de uma obra mais complexa, como no caso das próprias fábulas, que trazem fundamentos morais implicados na relação entre animais falantes, cujo comportamento simula o dos humanos.
A seguir, dou dicas de livros que marcaram minha vida de leitor e que influenciaram a escrita de O belo e a besta. Estes não são necessariamente os melhores. Nem os únicos. Mas podem ser boas portas de entrada para quem se interessar pelo assunto, assim como foram para mim.
1. Em primeiro lugar, dois personagens que já na infância me fizeram perceber que a leitura podia ser tão prazerosa quanto crítica. Não falo de um livro específico, mas de toda a obra de Bill Waterson com Calvin e Haroldo. Se você nunca leu, precisa ler. Calvin é um menininho norte-americano com um tigre de estimação, que para os adultos é uma pelúcia, mas para ele é um animal de verdade. E o engraçado é que o tigre parece bem mais civilizado do que a criança.
2. Atualizando a tradição popular existe o sensacional A ovelha negra e outras fábulas, do escritor hondurenho Augusto Monterrosso. Com histórias repletas de humor, ironia e política, ele subverte a lógica e a moral das fábulas convencionais.
3 e 4. Dois escritores latinos criaram inventários de animais reais ou fantásticos, que nos lembram bestiários medievais e as descrições da fauna americana feitas durante a colonização, quando tudo aqui parecia selvagem e violento aos olhos estrangeiros. Refiro-me ao argentino Jorge Luis Borges, com O livro dos seres imaginários, e ao brasileiro Wilson Bueno, que publicou O jardim zoológico, entre outros títulos com a mesma temática. Em ambos, lemos o nome e uma descrição desses animais, que mostram até onde vai a nossa inventividade sobre a natureza.
5. Eu ia dizer “até onde vai nossa fantasia sobre a alteridade que os animais apresentam”, mas quem explora isso com mais afinco é Guimarães Rosa. A tal animalidade permeia boa parte dos seus textos, e talvez o ápice seja Meu tio o Iauaretê, publicado na coletânea Estas histórias. O conto mostra um matador de onças que vive na mata e que, vamos descobrindo aos poucos, descende das próprias onças; um homem-bicho cujas características correspondentes a um ou a outro são meio indiscerníveis.
6. Falando nisso, outro livro que marcou minha juventude é A revolução dos bichos, de George Orwell, que critica os regimes totalitários usando animais como metáforas de certas organizações sociais. É curto, impactante, e os governos atuais nunca o deixam envelhecer ou se tornar inoportuno.
7. Maus, de Art Spiegelman, tem com ele algumas semelhanças. Inspirado na experiência do pai do autor na Segunda Guerra Mundial, ali as nacionalidades ou etnias são representadas como animais. Os norte-americanos são cachorros, os alemães são gatos, os judeus são ratos e assim por diante. Mais interessante do que as questões de perseguição e dos campos de concentração, já bastante desenvolvidas em outras obras literárias, essa história em quadrinhos mostra como a experiência marca não apenas quem lá esteve, mas inclusive quem nasceu quando a guerra já tinha acabado.
8. Eu poderia citar vários outros títulos de ficção, mas quero aproveitar a oportunidade para compartilhar também três obras ensaísticas que ajudam a problematizar o assunto. A primeira delas é Literatura e animalidade, da brasileira Maria Esther Maciel, que me mostrou a possibilidade de realizar uma abordagem poética para além das alegorias do comportamento humano, por vezes baseadas em animais estereotipados. Boa parte do meu livro foi escrita em diálogo com suas análises.
9 e 10. Duas obras de leitura mais complexa são O que os animais nos ensinam sobre política, do canadense Brian Massumi, e O aberto: o homem e o animal, do italiano Giorgio Agamben. Ambos os filósofos expandem, pesam e cruzam os conceitos de humanidade e de animalidade, revendo-os historicamente, buscando outros sentidos possíveis advindos de diferentes áreas do conhecimento e mostrando como a nossa perspectiva sobre os animais quase sempre é estreita e preconceituosa.
Demais títulos de não ficção que eu poderia citar aqui foram encontrados nas referências bibliográficas desses três. Sugiro que você dê uma olhada, caso também se interesse. A lista é imensa.
Por fim, convido você a conhecer meu O belo e a besta. Ele propõe uma espécie de passeio por um jardim zoológico em que se pode olhar os animais e onde eles olham de volta. O livro é composto por cerca de setenta textinhos que buscam um tom entre a ironia e o bom humor, ou entre o natural e o bizarro. Foi escrito para ser divertido, causar espanto, inquietar. E eu espero que também possa sugerir o que os animais têm a dizer sobre a nossa humanidade.
No reflexo dos olhos deste livro que me lê está posto o lugar-comum aqui, entre as páginas abertas o meu encerramento vivo em pretensa diferenciação identidade individualidade, não nada mais previsível que uma unidade fabricada em larga escala, induzida a testes rígidos para se manter um padrão na lida e a repulsa pelo que dele escapa
Não consigo me ver assim, na realidade é como sou – visto tudo isto evidenciado frente ao livro impassível
Enquanto a moldura me oferece o paraíso a preços módicos, uma vida próxima, tranquila, todavia eu sou encarado pelo poema e até lido suficientemente bem com ser objeto de complexa trama algum desinteresse irresoluta observação
Faço meu esforço convocado pela leitura desse suposto eu nos olhos que sequer pestanejam translúcidos, adiante e me ofuscam como a luz no fim da vida.