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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O MUSEU DE ARTE EFÊMERA: ENTREVISTA COM EDUARDO A. A. ALMEIDA*

Eduardo A. A. Almeida (foto de Edi Rocha)


Alan dos Santos  — Aproveita o espaço dessa primeira pergunta para se apresentar aos leitores do site. Você já publicou por editoras importantes como Laranja Original, Reformatório e Moinhos. Três importantes editoras para o contexto de publicação da literatura brasileira contemporânea e latino-americana. Quantos livros você já publicou?

Eduardo A. A. Almeida — O Museu de Arte Efêmera é meu sexto livro, lançado agora em julho de 2024 pela Laranja Original. É formado por três histórias longas, atravessadas pela questão da memória, e cuja forma traz elementos da dramaturgia, da prosa e da poesia, bem híbrida mesmo. Antes dele eu publiquei um livro de poemas chamado Sutilezas, fins, que saiu por uma pequena editora do Espírito Santo, a Pedregulho. O belo e a besta é um livro mais experimental, de textos curtos que tratam das proximidades e diferenças entre humanos e outros animais. É um livro engraçado e horrível ao mesmo tempo. Esse foi publicado pela Moinhos. O anterior é o meu único romance até agora — uma novela, na verdade –, de título Diante dos meus olhos, que ganhou Menção Honrosa no Prêmio Sesc e no Nascente USP, foi selecionado num edital de publicação da cidade de São Paulo e chegou aos leitores pela editora Reformatório. Meu segundo livro, já que estamos indo de trás para frente, foi o Testemunho ocular, de contos, poemas e outros textos mais livres, que venceu o concurso da extinta Lamparina Luminosa e atualmente está fora de catálogo. Esse acabou bastante afetado pela pandemia, infelizmente, que prejudicou a sua circulação. Pretendo, em breve, lançar uma segunda edição para que ele fique acessível de novo. Para encerrar, minha primeira publicação solo foi um conto, que saiu numa edição artesanal limitada pela Cultura & Barbárie, chamado Por que a Lua brilha. Foi minha estreia propriamente dita, ainda que antes eu tivesse participado de coletâneas em livros e revistas.

Mas você perguntou também sobre mim, e o que posso dizer, a título de apresentação pessoal, é que trabalho com escrita em diversos âmbitos, em especial a comunicação e a literatura. Além de escrever, assessoro autores e editores em seus projetos de criação artística ou literária. Dou aulas de escrita criativa. Fiz parte do Núcleo de Dramaturgia do SESI, do Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas e desde 2016 componho o coletivo de criação literária Discórdia. Atualmente, colaboro com o portal LiteraturaBr. E tenho uma formação acadêmica na área das artes visuais, que marca meus interesses de pesquisa e minha obra literária, basta ver alguns dos títulos dos meus livros que acabei de citar para perceber que a questão da arte, da imagem e da visualidade está posta desde ali. Se alguém se interessar, encontrará mais informações sobre mim no site www.lerparacrer.com.br, na plataforma Medium e no meu blog www.artefazparte.com. Fica aqui o convite.

Alan — Vamos explorar o Museu de Arte Efêmera (Laranja Original), seu livro mais recente e que tive a oportunidade e o prazer de ler. O livro reúne três contos que exploram a questão da memória e criam uma tensão entre a lembrança (registro, memória etc.) e o esquecimento. De fato, a questão da memória é importante para as três histórias. No primeiro dos contos, um homem refaz sua infância, modificando-a a cada relato no divã; no segundo conto, realizamos uma reflexão profunda sobre destino e escolha: estamos fadados a realizar um plano previamente estabelecido por algo ou alguém ou temos liberdade para agir? No auge dessa tensão, acompanhamos o processo de esquecimento de si de um dos personagens principais; por fim, o último dos contos personifica o embate entre memória e esquecimento confrontando Zakhor e Lethe, um saber judaico ligado à preservação da memória e o rio grego do esquecimento. Como se deu a composição das narrativas e foi intencional estabelecer a memória como o ponto de unidade do livro?

Eduardo — Você fez uma leitura muito perspicaz, o que me deixa pleno de alegria. A questão da memória atravessa as três histórias, mas não foi intencional. Na realidade, antes de ser livro, eu havia criado três dramaturgias autônomas, escritas durante minha passagem pelo Núcleo de Dramaturgia do SESI. Isso foi em 2018. Quatro ou cinco anos depois é que retomei aqueles textos e me dei conta de que tinham algo em comum, que poderia conectá-los se eu os dispusesse juntos. Foi quando surgiu a ideia do livro. Mas eu não queria reunir os textos como estavam, pois tinham sido escritos em outra situação e com outro propósito. Comecei a retrabalhá-los, com especial cuidado em relação à linguagem. Eu queria transformar dramaturgias em contos longos, mas isso não é tão simples assim, há ideias em teatro que não funcionam tal e qual na prosa, há rubricas e atos que não se tornam narrações e capítulos simplesmente porque o autor assim o deseja, então me vi tomado por um embate complexo. O resultado é híbrido, ou ambíguo; algo entre a dramaturgia, a prosa e a poesia. Mas a inquietude original se preservou nesses novos formatos, o que me deixou satisfeito. E se no tema temos um ponto comum, que é a memória, na forma acredito que haja outro, que é a questão da montagem. Quer dizer, os três contos têm uma influência grande do pensamento de Aby Waburg, que conheço por intermédio do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, e que trata de produzir estranhamentos por meio da aproximação de elementos diferentes. Sem querer complicar demais, eu explicaria assim: em vez de uma narrativa linear, convencional, coesa, me interessava desenvolver cenas breves que, postas juntas, pudessem criar atritos, conexões inesperadas, perturbações. As histórias poderiam ser contadas de muitas maneiras. Escolhi propor uma experiência de leitura mais provocativa. De certo modo, é mesmo como caminhar por um museu e olhar cada objeto exposto em sua singularidade, e então começar a criar associações entre eles, algo que vai acontecendo de maneira consecutiva, sem que se possa controlar.

Alan — Eu não conhecia o conceito de Zakhor. Poderia falar um pouquinho sobre ele ou sobre como você chegou a ele?

Eduardo — Fui atrás de Zakhor porque, mais do que uma personagem, eu precisava de uma espécie de entidade capaz de representar a cultura, a sabedoria, a ancestralidade, a tradição. Em algum momento da pesquisa, me deparei com esse termo, que se traduz como uma ordem: “lembra-te”. Uma palavra que, segundo Paul Ricoer, por muito tempo ocupou o lugar da história científica na tradição judaica. Zakhor produziu, assim, a oposição que eu queria em relação a Lethe, o rio que os gregos mortos atravessavam e que apagava as suas memórias da vida anterior. Veja que curioso: memória, cultura, sabedoria, ancestralidade, tradição, são todos termos femininos, e assim caracterizei Zakhor como uma entidade feminina. Enquanto o esquecimento, Lethe, é masculino. Não estou dizendo que são homens e mulheres, mas masculinidades e feminilidades apresentando suas diferenças num embate que remonta às tragédias clássicas. O Museu de Arte Efêmera é um livro em que a força do feminino está bastante presente. Mas isso, assim como a ideia de Zakhor, foi se construindo um pouco por vontade própria, não é que eu tenha previsto ou agido de maneira proposital. São frutos do processo criativo.

Alan — Todo o livro faz um forte flerte com a dramaturgia, especialmente a primeira das três histórias: “Luminescências”. No final do conto há orientações de como montar a exposição. Como foi costurada a relação com a dramaturgia? Salvo engano, já ouvi você dizer que a origem das histórias remete justamente à uma experiência vinda do teatro. Se for isso mesmo, gostaria de saber então como foi a transição para a literatura e mais especificamente para a forma do conto. Qual foi o seu maior desafio na lapidação do texto? No final das contas, é muito diferente escrever uma peça e um conto?

Eduardo — Foi isso mesmo, os três contos eram inicialmente dramaturgias, eu quando percebi que elas poderiam produzir conexões interessantes publicadas num único volume, a solução que encontrei foi transpor a linguagem do teatro para a da prosa. Mas isso não é um processo automático, quer dizer, não se trata de mudar aqui e ali e pronto. Existem dinâmicas, recursos, propósitos específicos de cada gênero, e que precisaram ser reinventados. Algumas transformações foram bem graves. O primeiro conto, que você citou, resultou num texto completamente diferente do original. Mas o mais importante, a meu ver, é que ambos carregam o mesmo propósito. Talvez em literatura isso seja mais difícil de perceber, mas se pensarmos em termos de, digamos, pintura e fotografia, a discrepância das linguagens é evidente. Você pode pintar uma cena que a princípio tinha sido fotografada, mas ela será construída com tela, pincel, texturas, pigmentos, gestos corporais. E vice-versa. Minhas dramaturgias continham naturalmente rubricas, que são uma espécie de paratexto cuja função é situar o leitor, indicar ações dos atores, fornecer informações que não cabem na fala, entre outras funções. De algum modo, essas rubricas assumem um papel semelhante ao do narrador em terceira pessoa da prosa. Então, esse é um caminho de transposição entre as linguagens. “Luminescências”, ainda como dramaturgia, se pautava numa dinâmica de apagar e acender as luzes do palco — boa parte da peça se passaria na escuridão. Como levar isso para o conto? Não havia o menor cabimento sugerir que o leitor fechasse os olhos e continuasse a ler. No meio do caminho, me ocorreu a ideia das câmeras de segurança. Com elas, eu consegui reproduzir na prosa a dinâmica de cenas breves que tinha previsto para o palco. E, por sua vez, isso das câmeras seria bem desafiador de apresentar num palco, pois trata de ver a cena acontecer por intermédio de um aparelho eletrônico e de um recorte, que é o enquadramento da gravação. Esses são alguns exemplos das muitas diferenças entre a dramaturgia e a prosa. Há também a questão da recepção, quer dizer, a prosa se dirige a um leitor com livro na mão e leitura solitária, enquanto a dramaturgia se dirige a uma produção teatral e a uma interpretação do texto que será apreciada coletivamente. Isso, por si só, já é capaz de mudar muita coisa. Mas há também semelhanças. Porque, no fim, estamos falando de palavras sobre o papel, palavras lidas de maneira silenciosa ou em voz alta, palavras que vão ressoar num outro, desconhecido do autor. Talvez seja esse o grande fato da literatura, o seu ponto de irredutibilidade.

Alan — Minha formação é em filosofia, e mais especificamente em filosofia contemporânea. Digo isso para ressaltar que gosto muito do contraste entre as noções de unidade e diferença, preferindo quase sempre a força da diferença. O conto “Luminescências” brinca com essas duas noções. Acompanhamos a história através de câmeras de monitoramento. Contudo, a cronologia não é sequencial, exata ou linear. Daí a aposta na diferença. Há câmeras e monitores diferentes, todos fora de ordem. Li pela primeira vez seguindo a proposta estética caótica do conto. Fui totalmente capturado pela trama. E apesar do gosto pela diferença, fui aguçado pela busca da unidade. Refiz a leitura, dessa vez por monitores e por câmeras, organizando uma ordem lógica, refazendo o percurso proposto pelo livro num jogo de idas e vindas, e creio mesmo ter identificado uma coesão na narrativa. Você esperava que os leitores fizessem de fato esse exercício de busca por unidade ou por coerência — essa nossa tola obsessão? Você concorda que o seu texto faz uma aposta radical na diferença? Em suma, como foi pensada a narrativa desse conto? Ressalto que essa foi a minha história favorita.

Eduardo — Me parece natural que, você sendo um filósofo, sua leitura do livro seja orientada por questões filosóficas, ou pelo menos atravessada por elas, e tenho muita curiosidade para ouvi-la mais a fundo. Mas é claro que, não sendo eu um filósofo, meu processo de escrita acaba seguindo outro caminho, embora em diversos pontos ele e o seu se encontrem. Digo isso porque, por exemplo, quando decidi embaralhar as três narrativas do primeiro conto, que estão ali representadas como monitores A, B e C, eu não pensava no conceito de diferença, e sim em privilegiar cada “cena”, ou cada acontecimento. Para dizer de maneira mais simples, eu abri mão de uma narrativa linear convencional porque queria que o leitor apreciasse cada imagem em si mesma, e que só depois buscasse conexões entre elas. Assim, nós temos nesse conto três narrativas, cada uma delas com um número variado de episódios, que são de fato numerados. Isso possibilita que o leitor faça o mesmo que você: ao fim do conto, retorne ao início e siga um percurso “cronológico”. Nas “notas para a montagem da exposição”, como você notou, esse convite está posto claramente. Com um aviso: “convém alertar o espectador de que essa mudança acarretará em uma experiência estética diferente”. No fim, é disse que se trata, de sugerir uma experiência estética diferente, e nesse ponto eu concordo plenamente com você, foi uma aposta radical na diferença, aqui obtida por meio da estrutura do conto. Existe uma coesão, é verdade. Mas ela me interessava menos e ficou em segundo plano. A força do conto vem de outro lugar, na minha opinião. E eu nem acho que nossa obsessão pela unidade é tola, porque é o que traz sentido para a vida, o que nos organiza e dá condições de seguir em frente. Mas a vida não pode se resumir a isso. E acredito que a literatura tem o potencial de produzir aí uma fissura, uma inquietação, enfim, dar uma bagunçada no que se pretende muito correto.

Alan — É perceptível a influência do pensamento de Nietzsche ao longo do livro. O próprio Nietzsche escreveu um livro sobre a importância da história e do esquecimento para a vida humana. O segundo conto recebeu por título “Eterno Retorno”, um dos mais belos conceitos de Nietzsche, e destaca também a voz profética do super-homem. O terceiro conto traz a força trágica do pensamento de Nietzsche e reforça a tensão entre memória e esquecimento adicionando o elemento do ressentimento perante o acontecido, no caso do conto, a perda de uma filha. Eu estou vendo Nietzsche em tudo ou seu livro busca mesmo esse diálogo de forma consciente e premeditada?

Eduardo — Bom, você já tinha descoberto que sou leitor de Deleuze e Derrida, e agora de Nietzsche. Mas meu interesse por esses filósofos tem muito mais de curiosidade pela maneira como eles transformaram a maneira de produzir pensamento do que um procedimento metodológico propriamente dito. Vamos colocar assim: sou um leitor descompromissado no que diz respeito à filosofia. Vou me apropriando dos conceitos tanto quanto das histórias que ouço ou de acontecimentos que testemunho, tudo se torna recurso para a escrita literária. Sempre achei linda a declaração de Lygia Clark de que “engravidava pelos ouvidos”, também ela querendo escapar de uma determinação intelectualizada da sua obra. Ela admitia ler e se encantar com o conhecimento advindo de outras áreas, mas aquilo em suas mãos se transformava em outra coisa, era matéria-prima para a criação artística. O eterno retorno, no caso desse meu conto, é um pouco isso também: uma referência, uma chave de leitura, um conceito que me marcou. E não é algo recente: li o Zaratustra na faculdade, vinte anos atrás, com minha cabeça de pós-adolescência. Depois até quis retomá-lo para desenvolver o conto, mas achei que acabaria por tentar aplicar na literatura as “ideias em filosofia”, como diz Deleuze em seu artigo sobre o ato de criação. Isso estaria fadado ao fracasso, então não voltei a Nietzsche. Deixei apenas que minhas impressões de décadas antes continuassem a ecoar. A bem da verdade é que as primeiras versões dessa história datam mais ou menos daquela época, então a influência esteve mesmo presente com maior intensidade. Com isso tudo, quero dizer que você está vendo Nietzsche no livro inteiro, e não tiro a sua razão. Mas não se trata de uma ação tão consciente assim e muito menos premeditada, com exceção da menção ao super-homem. Acredito que alguns autores são tão marcantes em nossa formação que não conseguimos deixá-los jamais.

Alan — Aproveitando o gancho, quais são as suas influências literárias? Quais autores e autoras te influenciam no processo de escrita? De onde vêm a sua verve experimental?

Eduardo — Embora eu leia um pouco de tudo, a vertente fantástica da literatura cria diálogos mais fortes com a minha obra. Gosto muito de Julio Cortázar, Italo Calvino, Murilo Rubião, esses clássicos. Mais recentes, me identifico com o que fazem a Samanta Schweblin, a Veronica Stigger, o Gonçalo M. Tavares. Porque são autores que extrapolam o convencional e ampliam as possibilidades da forma. Seus livros nunca são previsíveis. Experimentam, provocam, surpreendem, incomodam, nos deixam meio atônitos, questionando os limites da literatura e o que um livro pode proporcionar. E todos eles contistas, ainda que não exclusivamente. Não é por acaso. Esse é um formato que permite muitas aberturas, seja em relação à forma, à linguagem, às subversões.

Alan — Sempre gosto de pedir: poderia citar três livros que você leu recentemente e que te marcaram?

Eduardo — O livro dos lobos, do Rubens Figueiredo. Encontrei ali contos repletos de estranhamento e um profundo silêncio. Não conhecia esse lado ficcionista do Rubens, que também exerce um trabalho importante como tradutor e ensaísta.

Flecha, de Matilde Campilho. Um livro difícil de definir, formado por um apanhado de imagens e histórias breves que misturam fatos, ficção, perspectivas narrativas. Lindo demais.

O museu do silêncio, da Yoko Ogawa. Gosto muito da literatura japonesa e do trabalho da editora Estação Liberdade. Este é um romance contemporâneo que também fala da memória, dos rastros que deixamos, da efemeridade.

Alan — Por fim, sinta-se à vontade para comentar qualquer outro aspecto do livro que porventura eu não tenha te perguntado.

Eduardo — Eu preciso lhe dizer que foi um prazer imenso responder a perguntas tão interessadas e generosas. Elas me fizeram ver o meu próprio livro com outros olhos. Só posso expressar minha gratidão. E se tem algum aspecto que ainda cabe comentar talvez seja a escolha por reunir três textos e chamá-los de “tríptico”, termo tradicionalmente usado no campo da história da arte para se referir a retábulos de altar, muito populares na Idade Média. Suas imagens quase sempre têm em comum uma linha narrativa, uma moral, um personagem. Meu percurso pela pós-graduação se deu sempre no campo das artes visuais, e diversos dos meus escritos trazem questões oriundas das pesquisas que realizei ali. Os diálogos entre a literatura e as artes visuais me interessam especialmente. Veja esse meu livro mais recente: desde o título já nos deparamos com um museu de arte. Mas a reunião de três narrativas longas também é recorrente na literatura. Temos a edição dos Três contos de Flaubert, talvez a primeira que me chamou a atenção para isso. Mais recentes, temos Sul, da Veronica Stigger, e Sebastopol, do Emilio Fraia. Com certeza há muitos outros que eu poderia citar aqui. Mas eu só queria mesmo dizer que houve nessa escolha uma intenção, e ela me ajudou a explorar o meu interesse pelas artes e pelas imagens, o que veio bem a calhar.

* Esta entrevista foi conduzida pelo filósofo e psicanalista Alan dos Santos e publicada originalmente no site Deus Ateu.

Saiba mais sobre o livro no site da editora Laranja Original


quarta-feira, 20 de setembro de 2023

QUANDO A PALAVRA NÃO DÁ CONTA DE DIZER


Foto de Sincerely Media

Os significados das palavras costumam ser um dos principais interesses de todo escritor. Contudo, com o passar dos anos fui sendo convocado a pensar também numa espécie de caminho inverso, quer dizer, naquilo que as palavras não alcançam. Seus limites. Suas falhas. Ou lacunas. 

Encontrei eco para esse pensamento num pequeno ensaio chamado Lições nas trevas, do italiano Giorgio Agamben, que compõe seu livro Quando a casa queima (publicado no Brasil pela editora Âyiné). 

O filósofo afirma que o profeta se dirige às trevas de seu tempo, e para isso deve se deixar investir por elas, abrindo mão da própria lucidez. Em seguida, aproxima-o do poeta, e por consequência sugere um ponto comum entre as palavras proféticas e as poéticas. 

O autor já havia desenvolvido esse conceito de trevas ao menos em outro texto, bastante conhecido, cujo título pergunta: O que é o contemporâneo? Pois elas, as trevas, representam para ele uma potência do que pode vir a ser, e que à sua maneira já está em nosso tempo, nos limites da definição; qualidade do que é obscuro, portanto do que ainda não conseguimos perceber com clareza. 

Ao transportar esse conceito para o âmbito da palavra, Agamben fala de um significado não racionalizado, mas de algum modo percebido; espécie de sentido que precede a possível compreensão. Poderíamos, a partir daí, seguir com a ideia de que o profeta detém a capacidade de perceber no presente algo que ainda não está evidente, “prevendo o futuro”. O mesmo valeria para o poeta e os artistas em geral. Mas não é esse caminho que interessa agora; vamos nos ater à questão das palavras em si. 

Porque a palavra profética, cujo significado está sempre por vir, teria um caráter insurgente em relação à gramática e aos nomes, ao léxico e à sintaxe, oferecendo acesso a outra experiência da linguagem. Para enfatizar esse atributo, Agamben diz inclusive que tal palavra é, de certo modo, ilegível. Enquanto sua insurgência, ou nova experiência pela palavra, é a própria obra da poesia. 

Parece complicado? Mas existe nisso um ponto muito simples, com o qual é fácil concordar: pela poesia nós podemos escapar dos significados imediatos e, assim, experimentar outras possibilidades das palavras. 

Aliás, é importante assinalar que poesia, nesse caso, não se resume à forma versificada: vale também para a prosa e qualquer outro tipo de texto que proporcione ao leitor uma experiência estética. A poesia seria, digamos assim, o recurso criativo que permite vencer os limites das palavras, deslocando a experiência de leitura para longe da pretensa exatidão delas; ela está nesse deslocamento entre a norma e a insurgência, sugere Agamben. E o escritor espera, claro, que algo virtuoso aconteça em tal movimento. 

Eu voltei a essas ideias quando li o conto Réveillon, de Rafael Gallo, que abre seu primeiro livro, Réveillon e outros dias (editora Record). Mais para o fim da história, o protagonista – jovem adulto e surdo – diz que, às vezes, gostaria que seu pai fosse surdo também, porque isso não deixaria as falas o distraírem da linguagem mais profunda. Essa vontade se dissipa quando o filho observa o velho gesticular para se comunicar com ele. “Sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente”, reflete. 

Para o surdo, os gestos feitos com o corpo levariam a uma compreensão mais complexa do outro, ou seja, possibilitariam ir além do que as palavras dizem por si mesmas. O “fundo por trás da palavra”, explica o narrador do conto. Ou o que o protagonista definia como a linguagem mais profunda do mundo: “o idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele mesmo e seus nomes impronunciáveis”. 

Enquanto Agamben trata de um sentido que antecede o significado das palavras, o personagem no conto de Gallo busca um jeito de extravasá-lo. Preocupações que, no meu entender, também deveriam ser de todos os que têm na palavra o seu ofício. Afinal, se no dia a dia “escrever bem” é dominar os significantes e significados para assim produzir textos muito claros, a “arte de escrever” é outra coisa: diz respeito a elaborar o que há de impreciso nas palavras para, no que se esconde atrás delas, ou em suas trevas, permitir que o texto leve cada leitor a uma experiência singular.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

ARTE, CONJUNÇÃO ADVERSATIVA

 
Plugue (2018), de Nina Beier
 
O título da 34ª Bienal de São PauloFaz escuro mas eu canto – é um verso escrito por Thiago de Mello em 1963. Embora seu poema fale do trabalho na lavoura, podemos lê-lo sob a chave das tensões sociopolíticas entre os movimentos libertários e as repressões da época, muitas das quais, infelizmente, continuamos a vivenciar. Faz escuro. Mas eu canto. A escuridão persiste, assim como as formas de resistência a ela, entre as quais a esperança, a poesia, a alegria. E a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada cria espaço propício para que se possa exercitar o ato verdadeiramente revolucionário, sugerido no poema pela conjunção “mas”. Está aí o levante, a indignação, a denúncia, a resiliência, a afirmação da adversidade, o rompimento do ciclo, o desejo de mudança, a experiência alternativa, a apreciação da complexidade do mundo através de mais do que apenas um ponto de vista. “Mas” é a arte que se apresenta no Parque do Ibirapuera, na capital paulista, até 5 de dezembro de 2021.
 
Os mais de 1,1 mil trabalhos em exibição, criados pelos 91 artistas participantes, elaboram por vezes o escuro, por vezes o canto, se quisermos usar a mesma metáfora que parece balizar as escolhas dos organizadores. Eles abrangem um arco temporal que remete à formação do universo – representada pelos dois meteoritos – às produções desenvolvidas especialmente para a ocasião. Isso tudo disposto de modo a suscitar relações e, claro, sentidos interpretativos, questionamentos, atritos, reflexões, diferenciações, encontros de forças, entre inúmeras outras possibilidades.
 
Gustavo Caboco
Essa “poética da relação” tem base no pensamento do martinicano Édouard Glissant, filósofo, poeta, ensaísta, autor de um livro com esse mesmo título e uma das grandes referências conceituais da mostra. Tais relações já podem ser notadas na entrada, numa “sala” montada em torno do meteorito de Bendegó, símbolo de sobrevivência por ter resistido a variadas situações de risco, sendo o incêndio do Museu Nacional em 2018 a mais recente delas. Embora não esteja fisicamente presente por conta da dificuldade de se transportar suas 5,36 toneladas desde o Rio de Janeiro até São Paulo, sua história é retomada junto a outros trabalhos de arte que também colocam em questão a memória, a ancestralidade, a origem e a extinção nos seus mais variados sentidos.

Vemos ali, além de um meteorito menor – o de Santa Luzia, segundo em tamanho encontrado no Brasil – e de bonecas indígenas doadas pelos seus criadores para substituírem as originais queimadas – ambos os itens também provenientes do acervo do museu incendiado –, uma espécie de cosmologia inventada pelo artista Gustavo Caboco para problematizar sua identidade indígena; performances com declamações de livros feitas de memória, que aludem às deliberadas destruições por fogo do romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; cerca de 150 monotipias da série Boca do Inferno, de Carmela Gross, criadas a partir de imagens de vulcões; entre outros trabalhos.

Coloquei aspas na palavra “sala” porque não se trata exatamente disso: a bienal apresenta as obras em nichos, separados por três tipos de divisórias chamadas “peles”. Elas são feitas de policarbonato, juta ou madeira, e suas transparências e opacidades remetem tanto à filosofia de Glissant quanto aos ocultamentos de culturas, saberes, pessoas etc. realizados por gestos opressores conscientes ou não.
 
Ainda que algumas peças ocupem o espaço com maior liberdade, boa parte delas fica reunida sob a imantação dos 14 enunciados propostos pela curadoria. Esses enunciados são objetos, ideias ou narrativas que não pertencem necessariamente ao campo das artes, mas que carregam histórias e simbologias. O Museu Nacional é um deles, assim como o sino da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, dita Capela do Padre Faria, em Ouro Preto; os retratos do abolicionista estadunidense Frederick Douglass; a obra de Paulo Freire; o filme Hiroshima mon amour, de Alain Resnais; e assim por diante.

Mais do que um punhado de grandes nomes, me parece que os curadores conseguiram fazer do conjunto de obras e artistas a verdadeira potência da exposição. A temática, de modo geral, trata das relações entre culturas, temporalidades, valores, atitudes, com destaque para questões oriundas do colonialismo – entre as quais, e talvez principalmente, as sobre a diáspora africana por meio do tráfico de escravos e o extermínio dos povos originários. Há também menções a práticas democráticas ou autoritárias, como por exemplo em A carga e Presunto, trabalhos criados nos anos 1960 e que se atualizam no Brasil de 2021. Isso tudo configura a força de resistência, assim como as limitações que toda exposição de arte apresenta.
 
Arjan Martins
As diferenças entre os participantes e as muitas semelhanças estéticas e formais de suas obras, por um lado, fazem pensar em como essas proximidades são construídas na contemporaneidade. Já as dificuldades que senti para assimilar certas propostas talvez indiquem minha condição de estrangeiro, inclusive em minha própria terra e entre as pessoas que aqui habitam. Isso é algo previsto, pois existe na mostra um convite declarado a que se estabeleçam relações, mesmo que as partes não sejam perfeitamente compreensíveis entre si.
 
“Da adversidade vivemos”, afirmou Hélio Oiticica em seu famoso ensaio sobre a Nova Objetividade brasileira. Esse artista, falecido em 1980, compõe um dos enunciados da 34ª Bienal de São Paulo. E a exposição, como um todo, parece reiterar sua proposta, mostrando que pela diferença entre as formas de vida se produzem também variadas criações artísticas.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS "EXISTÊNCIAS MÍNIMAS" DE FLÁVIA RIBEIRO


Existências mínimas, de Flávia Ribeiro, na exposição Continuum

Em dado momento da pandemia, com a crise pessoal agravada, a artista Flávia Ribeiro precisou se recolher num sítio. Ali, não poderia continuar seus trabalhos com bronze fundido, então levou consigo algumas tintas guache, entre elas o seu vermelho favorito. Ao longo dessa temporada, recolheu gravetos de um velho ipê, já muito doente, algumas pedras, toquinhos de madeira remanescentes de uma construção feita há pouco no local. Não pensou em, com eles, criar arte, no sentido de executar um projeto artístico, muito menos em expor as pequenas esculturas que surgiam do longo processo de entalhar os gravetos com uma faquinha, pintar os toquinhos, empilhar pedras em formações instáveis. Todavia, depois de criadas, ficou impossível ignorá-las.

Na exposição Continuum, na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, essas esculturazinhas foram reunidas sob o título de Existências mínimas. Trata-se de uma referência ao livro As existências mínimas, de David Lapoujade, publicado no Brasil pela N-1 Edições, que fala de certas entidades virtuais, ou potencialidades que acompanham cada ser e carecem de realidade, como se não houvesse lugar para elas no mundo real. Aquilo que poderia ser e até certo ponto é; porém, de uma maneira precária, provisória, fictícia, sempre em busca do direito de existir mais intensamente.

Das cerca de trinta peças criadas no sítio, algumas já se quebraram, tamanha a fragilidade da sua composição. Essa fragilidade física talvez seja a grande força do conjunto que me chamou a atenção em meio aos demais trabalhos da mostra, disposto com singularidade entre a leveza e a translucidez dos desenhos em papel manteiga e a carga histórica e corpórea dos bronzes. Pois, criadas com uma espécie de gesto mínimo, também basta um sopro para se desfazerem, deixando de ser como são, e se tornarem outra coisa. Elas apontam, assim, para a nossa impermanência e ao mesmo tempo para a suposta longevidade da arte, talvez para o contrário também.

É com essa iminência que tais seres requerem seu direito de existir no mundo real e conquistam um lugar distinto na obra da artista, inclusive colocando o restante em questão. Como ela mesma comentou com o grupo de discussão sobre arte contemporânea do qual faço parte, as Existências mínimas surgiram sem planejamento e então foi preciso lidar com elas. Foi preciso se interrogar a respeito do que provocam, do que trazem de novo, de que relações estabelecem com a sua produção anterior; oferecem, assim, a oportunidade de se aprender com isso.

“Os virtuais têm a força do problemático”, diz Lapoujade. Para quem a força de um problema não é a sua tensão interna, mas a incerteza que ele introduz na (re)distribuição de realidade. Uma nova perspectiva irrompe e confunde a ordem de determinado plano de existência, deslocando os centros de gravidade.

Existência mínima, 2020, de Flávia Ribeiro

O filósofo explica ainda que cada existência provém de um gesto que a instaura, mas esse gesto não emana de um criador, é imanente à própria existência. De modo que, para ter lugar, ela precisa vencer a dúvida, o ceticismo ou a negação que contesta o seu direito de existir.

Pois não seria essa a qualidade daquelas pequenas esculturas de Flávia Ribeiro? Apresentarem-se sem serem convidadas, como um estrangeiro que bate à sua porta e coloca em questão o que acredita saber sobre si mesma? Um estranho imprevisto com o qual precisa dialogar, que invariavelmente a transforma, força-a para além do lugar-comum?

Elas são começos, esboços, fragmentos; quase se confundem com o puro nada, explica Lapoujade. Evidente que as Existências mínimas da artista não são uma representação do conceito desenvolvido no livro. Mas não tenho dúvidas de que as aproximações enriquecem de sentido ambos. Afinal, é próprio desses seres virtuais expandirem as possibilidades. “Seu ‘gesto’ próprio é suscitar outros gestos”, diz o filósofo; “são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos”.

Como o novo está sempre posto em relação com o pré-existente, vejo também similitudes com outros trabalhos de Flávia Ribeiro, inclusive alguns da própria exposição. Por exemplo, com as estruturas delicadas do Campo para pensar I, espaço de imantação formado por uma base de parafina em que ideias ganham materialidade, como que desenhadas no ar com fios de arame e organza. Ou com o proposto “vir a ser” das suas esculturas intituladas Pré-objetos. Ou, ainda, com a pulsação da cor vermelha, que acentua algumas peças e, assim, em pitadas, se faz sempre presente.

As Existências mínimas são a amostra mais viva da intuição poética de Flávia Ribeiro, talvez um ponto de virada em sua trajetória, e com certeza um ponto de inflexão. Propõem caminhos alternativos, como as forquilhas do ipê. Carregam algo da brincadeira das crianças, que encaram o jogo da vida com seriedade, mas sem a sisudez de quem já se acostumou com as maneiras convencionais de existir. São receios e fragilidades assumidos; inconsistências e evanescências elaboradas na forma de uma coragem irregular, orgânica, primitiva, tão necessária para sobreviver na dureza do mundo real.


sexta-feira, 18 de junho de 2021

ALGUNS OLHARES PARA A ARTE DO PASSADO

Ao analisarmos uma pintura pelo viés da história da arte, vamos querer vê-la em seu tempo e seu contexto, tentando compreender o que representou para seus contemporâneos. A história de A noite estrelada, por exemplo, reconstrói a biografia de Vincent Van Gogh, sua internação voluntária no asilo de Saint-Rémy, na Provença, a janela do quarto por onde ele observava o céu noturno, a arquitetura dos vilarejos holandeses que o artista resgatou da memória e incluiu naquele vale iluminado pelo luar. Tudo isso por meio de documentos, como as cartas trocadas com seu irmão Théo, diários, registros variados deixados por pessoas próximas, relatos, análises técnicas da própria obra etc. A crítica de arte segue caminho semelhante, sendo por vezes indiscernível da historiografia. E tais narrativas se atualizam na medida em que novidades são descobertas e outras associações vão se produzindo. Mas estas não são as únicas formas de olhar a arte do passado.

No livro Studiolo, traduzido do italiano e publicado este ano no Brasil pela editora Âyiné, o filósofo Giorgio Agamben apresenta uma coleção de pequenos textos inspirados por trabalhos de arte que, conforme advertência do próprio autor, pretendem se colocar na tradição do comentário e não da crítica e da história. “Se chamamos de presente o instante em que uma obra chega à sua legibilidade, as obras comentadas no livro, ainda que compostas em um arco de tempo que começa em 5000 a.C. e chega até hoje, são todas igualmente presentes, convocadas aqui e agora em um instante eterno”, explica.

Ou seja, se a história e a crítica de arte leem as obras do passado sob a luz do nosso presente e contribuem, assim, para a elaboração de certa linha de tempo, a abordagem de Agamben é radicalmente outra: seu interesse nelas é ler o hoje sob a luz do passado, considerando que esse passado nunca se interrompeu. Afinal, de que maneira aquelas obras de arte impactam o entendimento de nossa época? Que heranças nos constituem enquanto seres humanos? Por que agimos como agimos e pensamos da maneira como pensamos?

A visão linear da história sempre foi um dos objetos da sua crítica, que desconstrói o formato cronológico ao investigar eventos que nunca cessam de acontecer. No caso da pintura de Van Gogh que citei antes, poderíamos pensar, talvez, na questão da loucura, na condição do olhar do artista, no imaginário e na memória, nas relações do sistema econômico com a organização social, na potência da criação artística e assim por diante. Todavia, A noite estrelada não é um dos trabalhos comentados em Studiolo.

O total de vinte e um textos – a maioria associados a pinturas de épocas muito diversas, desde a antiguidade clássica à modernidade – traça relações entre o próprio fazer artístico, observações acerca da imagem, história, literatura, filosofia, política, teologia, iconologia, entre outras áreas do conhecimento, como é comum nos escritos de Agamben. E, dada a sua extensão de, em média, apenas duas ou três páginas cada, eles se apresentam como lampejos; ideias pontuais, potencialmente muito maiores do que a forma concisa em que foram concebidos.

O título Studiolo remete ao gabinete particular onde os príncipes da Renascença se retiravam para meditar ou ler, rodeados pelas suas obras de arte favoritas. Agamben justifica, assim, a seleção das obras que comenta, as quais a princípio têm pouco ou nada em comum.

A respeito de Ninfa e pastor, pintura tardia de Ticiano, Agamben fala sobre a perda do mistério por meio da satisfação dos amantes e, assim, de certa inoperosidade da natureza humana, conceito já desenvolvido em outros livros seus. Ao dissertar sobre a janela de A noite, óleo sobre tela de Isabel Quintanilha, o autor trata dos limiares entre a realidade e a representação. Ao lermos seus escritos sobre o afresco pompeiano Aquiles renuncia a Briseida, aprendemos sobre certa condição do olhar. No comentário sobre Las hilanderas, de Velázquez, é colocada em questão uma possível ambiguidade entre o divino e o profano. Ao se debruçar sobre uma estatueta de traços femininos esculpida sete mil anos atrás, Agamben fala sobre a importância de entendermos o conceito de origem não como um ponto distante no passado, mas como a única via de acesso ao presente.

“A tarefa do pensamento”, escreve ele, “é arrancar os fenômenos da sua situação cronológica para restituí-los a essa dimensão de insurgência”. De modo que assim se sustente a inquietação causada pela distância temporal, ou seja, sem apaziguá-la por meio de uma consciência histórica que produz distanciamento confortável e se fazendo incapaz de enxergar a atualidade das obras do passado.

O pensamento, para Agamben, não pode ser apartado da forma. Ele jamais deixa de ser uma experiência de e com a linguagem. Por isso seu interesse na poesia e nas artes visuais. Por isso os comentários articulados com tamanho apuro. Se Studiolo não consta nas listas das obras fundamentais Giorgio Agamben, nem por isso deixa de ser uma leitura relevante para quem busca conhecer seus textos de teor estético e, claro, exercitar outras formas de olhar para a arte.

domingo, 29 de março de 2020

VER APESAR DE TUDO

Já li uma porção de coisas sobre o holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial, ou Shoah, em hebraico. Não porque sou aficionado pelo assunto, mas porque qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade e interesse histórico naturalmente se depara com livros, filmes, notícias, obras de arte, exposições, que de alguma maneira mantêm vivo aquele acontecimento. Há pouco li Cascas, misto de relato poético e ensaio produzido pelo filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman após sua visita aos campos de Birkenau, hoje parte do museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, onde colheu fotografias, impressões – de início intuitivas – e cascas de bétulas. Essas árvores são as poucas testemunhas remanescentes do genocídio perpetrado pelos nazistas naquele empreendimento sociopolítico que perseguiu judeus, entre diversos outros povos, culturas e ideologias menos falados e, assim, menos conhecidos hoje.

Fotografia feita por um avião de reconhecimento da Força Aérea Britânica em 23 de agosto de 1944, que veio a público apenas em 2004. A fumaça provém de um dos crematórios. Na época, os Aliados não compreenderam as instalações de Auschwitz-Birkenau porque eram inimagináveis, apesar das imagens.

Didi-Huberman comenta uma história já bastante escrita e bem estruturada, que justamente por isso vem até nós sem que estejamos procurando por ela. O que ele faz no livro, porém, é colocar em questão os modos como essa memória vai se transformando em história, em vez de apenas a reiterar tal como se costuma contá-la. Em especial ali, no museu erigido sobre o antigo campo de extermínio, onde o ser humano foi capaz de matar vinte e quatro mil dos seus semelhantes num único dia de 1944 e, algumas décadas depois, abrir uma loja de lembrancinhas especializada no tema.

O autor fala dessa cultura capaz de realizar ambas as coisas. “A questão toda está em saber de que gênero de cultura esse lugar de barbárie tornou-se o espaço público exemplar”, diz. Sua observação parte das três cascas de árvore colhidas na ocasião da visita – “Birkenau” significa “campo de bétulas” –, que até a Idade Média eram usadas para registrar textos e desenhos. Para reescrever a história, por exemplo, o museu substituiu os velhos arames farpados da época por novos, que de artefatos de barbárie passaram a se apresentar como produtos culturais. Didi-Huberman observa transformações similares no “paredão das execuções”, restaurado feito um simulacro do original, e nos galpões 13 a 21, que abrigavam prisioneiros, agora “pavilhões expositivos”, cada um dedicado a uma nacionalidade vitimada.

Apaga-se assim uma memória para fazer dela história, a qual é fundamentalmente uma criação humana. Nas palavras do autor: “todos os centros culturais – bibliotecas, salas de cinema, museus – podem construir uma memória de Auschwitz. Mas o que dizem quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para constituir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?”

Quando o fim da guerra era certo, os nazistas dedicaram todos os esforços à dita “solução final”, que pretendia exterminar o maior número possível de judeus. Com a impossibilidade de se fabricar suficiente Zyklon B, pesticida usado nas câmaras de gás para as execuções em massa, as vítimas eram atiradas ainda vivas nos fornos crematórios. Ler sobre isso me provoca uma sensação de abismo, um medo profundo porque real e possível, como um pesadelo inimaginável que se materializa. Volto à minha realidade deslocado, sem jamais poder recuperar o prumo ou conseguir olhar as pessoas com os olhos de antes.

“Isto é inimaginável, logo devo imaginá-lo apesar de tudo”, afirma Didi-Huberman num ato de resistência. Pois o “impasse da imaginação foi uma das grandes forças estratégicas – via mentiras e brutalidades – do sistema de extermínio nazista”. Com a aproximação do exército soviético, em 22 de janeiro de 1945 os administradores do campo dinamitaram os fornos para apagar as evidências do inferno, mostrando que sabiam da gravidade do que fizeram.

Daí o mérito desse novo ensaio sobre o holocausto que Didi-Huberman se propôs escrever. Como ele diz, “o fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios, soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a imaginar porque não há nada – ou muito pouco – a ver? Certamente não. Olhar as coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”. Pois é a partir dessa suposta invisibilidade que ele vai revendo e problematizando o papel dos museus, das curadorias, das imagens e livros; das maneiras, enfim, como produzimos discursos na história e, no limite, a subjetividade do presente. Porque “a memória não requer apenas nossa capacidade de fornecer lembranças circunstanciadas”. Escavar esses apagamentos do passado é uma dívida inegociável que herdamos.

De minha parte, penso em como aquela estratégia nazista de impasse da imaginação via mentiras e brutalidade persiste em nosso dia a dia, nas grandes e nas pequenas mídias, nas redes sociais, na publicidade, nos discursos oficiais, em moralismos, nos gestos a princípio inocentes feitos em nome de um suposto bem. Penso nas histórias outras que ainda não conseguiram se estruturar como a da Shoah, ao ponto de permearem o imaginário coletivo com tamanha força, e que, ainda assim, lutam bravamente por visibilidade. O holocausto negro, o indígena, o feminino, o dos perseguidos políticos, o dos miseráveis, cujos escombros estão postos diante dos nossos olhos, convocando-nos a escavá-los, e muitas vezes nos recusamos a ver, apesar de todos os que ali sucumbem sem a dignidade que merecem na morte e, claro, na vida.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

GEPPS & CPF SESC PROMOVEM CICLO DE ENCONTROS PARA DISCUTIR A EXPERIÊNCIA DA ERRÂNCIA NO CONTEMPORÂNEO

Outubro está cheio de alegrias. Uma delas, muito especial, é esse curso/evento que estou organizando desde o começo do ano junto com o GEPPS e em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

Os encontros do ciclo Linhas erráticas pretendem discutir formas contemporâneas de vida e de produção de subjetividade que se manifestam por meio de perambulações, desvios, aventuras, erros e recusas à domesticação.

O conceito, que se inspira no trabalho de Fernand Deligny com crianças e jovens “inadaptados”, se expande de maneiras variadas em mesas que derivam pela clínica, arte, coletivo, política, ética, filosofia, saúde, educação, entre as demais singularidades oferecidas pelos debatedores, trazendo à tona invenções e outros modos de existir, habitar, criar, cuidar e conviver.

Serão dois encontros, nos dias 29 e 30 de outubro e na companhia de muita gente bacana.
Clique aqui, confira a programação completa e faça sua inscrição!


Mesas de debate

29/10
14h às 16h
Experiências erráticas em Fernand Deligny e ressonâncias atuais
Com Mariana Louver Mendes e Marlon Miguel

16h15 às 18h15
Errâncias entre arte, estética e política
Com Eduardo A. A. Almeida e Dália Rosenthal

30/10
14h às 16h
Errâncias sismográficas: abalados, resistimos!
Com Gisele Dozono Asanuma e Juliano Pessanha

16h15 às 18h15
Criação à deriva: convivência e diferença em coletivos artísticos em São Paulo
Com Isabela Umbuzeiro Valent e Jayme Menezes

18h30 às 20h
Alinhavar jangadas - derivas acompanhadas
Com Eduardo A. A. Almeida, Gisele Do. Asanuma, Isabela U. Valent e Mariana L. Mendes

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

ESTAREI NO IV SEMINÁRIO DE ESTÉTICA E CRÍTICA DE ARTE, NA USP


O Seminário de Estética e Crítica de Arte é organizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Nesta quarta edição, falarei sobre "O caminhar na história da arte rumo a Paulo Nazareth: alguns pontos de parada e observação". A mesa se chama "Performance, corpo e cidade" e se realizará em 3/9, das 14h às 16h, na sala 104 A.

Para participar, basta chegar. Você encontra outras informações sobre o evento aqui: IV Seminário de Estética e Crítica de Arte

sábado, 22 de junho de 2019

EMOÇÃO ESTÉTICA


Edgar Morin entra pela plateia, não pelo palco, e de imediato começam os aplausos. O teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, está lotado. O intelectual francês completará noventa e oito anos de idade daqui vinte dias. Pessoas de várias gerações se levantam e o aplaudem de pé durante um longo tempo. Emocionado, ele acena de volta. Então a sua emoção contagia a todos.

Li Morin pela primeira vez durante a faculdade de comunicação. Dois livros seus, na época, foram os que mais me marcaram, e os tenho ainda hoje. Falam sobre cultura de massas no século XX, “espírito do tempo”, indústria cultural e as diversas crises socioculturais dos anos 1960 e 1970. Entre o mestrado e o doutorado, interessei-me por suas ideias sobre o pensamento complexo, em especial enquanto método de pesquisa. Li trechos de seus diários já publicados e estou curioso a respeito de A aventura do método, que deve sair ainda este ano. Tenho certeza de que a maioria do público presente nessa conferência oferecida por Morin no último 18 de junho tem também alguma relação intelectual e afetiva com a sua extensa obra, que soma mais de trinta livros sobre sociologia, epistemologia, educação, filosofia, entre outros assuntos relacionados com o conhecimento.

Após uma breve apresentação de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, Morin sobe ao palco. Tira o relógio do pulso e o deposita no atril. Fala de pé ao longo de quase uma hora, a princípio em português, depois num francês gesticulado, vivaz. Quase não recorre às anotações.

Seu argumento é um tanto simples: a emoção estética, conforme explica, pode ser experimentada por qualquer pessoa em situações não premeditadas, como ao contemplar uma paisagem ou encontrar-se com um conhecido. Não se trata de uma exclusividade das artes, mas de uma qualidade poética da vida. Ela também independe de cultura, etnia ou classe socioeconômica, sendo natural a todos.

As artes, por sua vez, suscitam tais emoções, que servem à sua comunicação, ao encantamento ou à inquietude. Segundo Morin, além do caráter afetivo, a emoção estética provinda das artes tem também uma força cognitiva. Isso significa que o contato com a literatura, a música, o teatro etc. pode resultar num conhecimento acerca da humanidade, do mundo e da vida em geral; um conhecimento específico que devemos valorizar tanto por sua singularidade quanto por sua potência.

Ao lermos um romance de Dostoievski, por exemplo, podemos conhecer a Rússia de sua época de maneira diversa – e não menos verdadeira – do que ao ler uma análise histórica de cunho científico. Ao ouvirmos um concerto de Schubert, é possível reviver os dramas do músico e de seu contexto. Ao assistirmos ao Marlon Brando em O poderoso chefão, é possível nos compadecer por um criminoso violento que é também um devotado pai de família, e assim apreender que as contradições e os paradoxos do ser humano são muito mais complexos do que os estereótipos, os preconceitos, as polarizações que empobrecem o pensamento e afastam as pessoas.

Com o mundo em constante compartimentação, faz-se necessário criar vínculos e estabelecer conexões. Porém as ditas “bolhas culturais” que habitamos – agrupamentos formados segundo familiaridades, afinidades ou interesses comuns – oferecem poucas surpresas ou situações inesperadas, além de nos isolarem da rica diversidade da vida, como se assim nos protegessem.

Em contrapartida, as artes tendem a nos colocar em contato com o diferente, o inusitado, o estranho, e com eles precisamos nos reaver. Acho bonito o sentido não literal desse termo, reaver, que tem menos o caráter de posse do que o de relação e implica um trabalho de lidar com o outro, vê-lo de novo e vê-lo com cuidado, e procurar maneiras de com ele fazer as pazes, gostando ou não, concordando ou divergindo, mas o respeitando, reconhecendo a legitimidade da sua diferença e assegurando o seu direito de ser como desejar. Daí a impossibilidade de separar estética e política.

Assim como a poesia advém do esforço de fazer as palavras abandonarem seus sentidos prosaicos para assumirem outros singulares, a experiência estética é essa força que nos arranca da banalidade e confere à nossa existência uma qualidade poética. Tamanho deslocamento pode ser tão maravilhoso quanto terrificante; não à toa as artes muitas vezes incomodam, ferem valores morais, desconstroem formas de ver, de pensar e de dizer. Lidar com elas é tão necessário quanto lidar com quaisquer emoções. Precisamos a todo o momento nos reaver com as artes. A experiência estética é, assim, um aprendizado constante. É também um aprendizado daquilo que só pode ser apreendido por meio da estética.

Edgar Morin sabe disso muito bem. Perto de completar um século de vida, continua a pesquisar, conhecer, dialogar e se abrir à música, à literatura, às artes visuais, à fotografia, ao cinema, ao teatro etc. Justamente por isso parece tão vivo enquanto palestra acerca dessa cultura, que chama de humanista porque apenas o homem é capaz de produzi-la e porque, com ela, pode-se ver além da própria humanidade.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

ROMPENDO FRONTEIRAS: ARTE, SOCIEDADE, CIÊNCIA E NATUREZA

O Museu de Arte Contemporânea da USP acaba de publicar o livro Rompendo fronteiras: arte, sociedade, ciência e natureza, organizado pelo professor Dr. Edson Leite.

Colaboro com dois capítulos:

1) Arte como profanação de ciência: Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão. Escrito com a professora Dra. Eliane Dias de Castro, o capítulo discute a possibilidade de a arte provocar transformações no pensamento científico ao mesmo tempo em que pode ser transformada por ele. Essa reflexão toma como base a pintura "Mapa de Lopo Homem II", da artista brasileira Adriana Varejão.

2) Inquietudes do contemporâneo: experimentações poéticas e políticas do sensível. Este escrito coletivo de Gisele D. Asanuma, Isabela U. Valent, Mariana L. Mendes, Eliane D. Castro e Arthur C. Amador se dedica a pensar metodologias e frentes de trabalho para responder aos tensionamentos entre arte, sociedade, política e produção de subjetividade atualmente. Isso é feito por meio da nossa experiência com o Grupo de Experimentações e Pesquisa das Poéticas e Políticas do Sensível.

http://www.pgeha2.webhostusp.sti.usp.br/livros/C_I_EHA_11_-_Rompendo_fronteiras_-_arte_sociedade_ciencia_e_natureza_-_2018.pdf O livro completo pode ser baixado gratuitamente aqui >> PGEHA/USP

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

A IMPOSSIBILIDADE DE DIZER

Ao ler o esboço de uma peça de teatro que eu escrevia, minha esposa fez o seguinte comentário: você é artista, deve saber o que está fazendo. Hoje preciso dizer que não é bem assim. A poesia habita justamente um não sabido que compõe o discurso. Não saber – e não poder enunciar –, de certo modo, é o que torna a arte interessante e a diferencia do panfleto. Por isso defendo que os teóricos e críticos sustentem a potência do não sabido e a impossibilidade de dizer sobre, em vez de pretenderem esclarecer os trabalhos de arte como se pudessem esgotá-los. O mesmo vale para outros campos das humanidades.

Num ensaio recente intitulado O que é o ato de criação?, Giorgio Agamben comenta a conferência homônima que Gilles Deleuze proferiu em 1987. Deleuze falou da arte como resistência. Agamben, por sua vez, esmiúça a ideia, querendo entender em que medida uma criação pode também resistir e qual seria a natureza dessa resistência.

Ele começa por não associar a resistência a uma força externa, mas a uma potência inerente ao próprio ato criador. Fazendo uma arqueologia da potência desde Aristóteles, como é seu costume, Agamben insiste que toda obra conserva uma inoperosidade na forma de uma potência que não se realiza, resiste e se opõe à expressão. Essa resistência impede que a potência criativa se esgote no ato da criação. Ao mesmo tempo ela expõe a própria potência e a forma criada, de maneira que possamos apreciá-las, contemplando-as, ou seja, observando-as atentamente e sem pressa. O filósofo explica: “a grande poesia não diz apenas aquilo que diz, mas também o fato de que está dizendo, a potência e a impotência de dizê-lo”. Ela diz a si mesma e o impossível de dizer que a faz poesia.

Em outras palavras, é como se algo permanecesse irrealizado durante o ato de criação da obra de arte, e que essa resistência à realização pusesse em xeque tanto o ato quanto a própria obra. De maneira que a obra de arte jamais esteja totalmente exposta, explícita ou acessível pelo olhar, pelo discurso e pelo pensamento do público e até mesmo do artista.

A poesia, por sua vez, seria uma operação na linguagem que desativa o hábito e torna inoperantes funções comunicativas e informativas, abrindo-as a um possível novo uso. É essa sua inoperosidade que desarticula modos de fazer já estabelecidos e abre espaço para alternativas, reinvenções, intervenções.

Isso que permanece não realizado durante a criação poética põe em questão uma política da arte. Ao desativar modelos, destitui governos do olhar, do dizer e do pensar numa operação política que não se distingue de certa operação estética. Nas palavras de Agamben, “política e arte não são tarefas nem simplesmente ‘obras’: elas designam a dimensão na qual as operações linguísticas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e sociais são desativadas e contempladas como tais”.

Sua filosofia me ajuda a sobreviver nestes tempos de certezas, verdades e absolutismos morais, sociais, históricos etc.; tempos em que um lado é correto apenas porque seu oposto está errado. Ela aponta a importância ética de assumir alguma incerteza na estética e na política, que as mantém vivas e passíveis de transformação. A sabedoria que extravasa todo conhecimento de causa está em perceber que algo inexplicável, indizível e invisível reside em todo discurso, inclusive no que se pretende esclarecedor. Como podemos exercitar tal impossibilidade de dizer? Eu começaria por profanar o sujeito que diz. Uma estratégia seria, por exemplo, escutar o outro. Podemos também destituir o “eu” desse ranço identitário que o quer determinar. Por fim, poderíamos experimentar dar voz a um outro, o que é o fundamento de todo ato de criação. Tal exercício de partilha do sensível pode, com sorte, abrir lugar a alguma sabedoria que mereça ser dita.

Quando a dureza política e institucional impõe sua vontade de ordem, a criação poética pode devolver o gesto e a potência à vida. Não existe saber algum na verdade imposta pelo grito. Como bem notou Georges Didi-Huberman, historiador da arte que se destaca entre os intelectuais contemporâneos, “a certeza não tem a ver com o saber. É na medida em que a certeza é absoluta que se tende a dizê-la alucinada”.

Estamos vivendo um momento em que se fala demais. Um palavrório que pretende dizer tudo e revelar tudo. Se a política brutal insiste nesse discurso iluminado e verdadeiro, é preciso contrabalanceá-la com o incerto, o ambíguo e o paradoxal que pode haver na criação poética. Que nos sugere não afirmar nada em absoluto senão a necessidade urgente de questionamentos. É o que a resistência do ato criador tem a nos ensinar.

*Sobre a imagem que ilustra o texto: trabalho da exposição A infinita história das coisas ou o fim da tragédia do um, organizada por Sofia Borges na 33ª Bienal de São Paulo (2018).

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

CONVITE PARA DEFESA DE TESE


 Eis que meu doutorado se aproxima do porto final, e a universidade pública estará aberta a todos que quiserem me acompanhar durante a defesa da tese intitulada "Profanação de uma imagem do mundo: Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão".

A banca se realizará na próxima quinta-feira, 4 de outubro, a partir das 14h no auditório do MAC USP Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1301).

Contaremos com a presença dos professores Drs. Celso Fernando Favaretto, Dália Rosenthal, Erika Alvarez Inforsato e Silvia Miranda Meira, além de minha orientadora profa. Dra. Eliane Dias de Castro. Que bons ventos soprem por nós!

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O SONHO IMPOSSÍVEL

Terminei na semana passada minha tese de doutorado em Teoria e Crítica de Arte. Naquela mesma noite, minha esposa perguntou: e agora, qual é o seu sonho? A princípio não tenho nenhum, respondi. Ela não acreditou e me contou uma série de sonhos seus. Para mim, eram desejos, dos quais também tenho vários. Os desejos são realizáveis. Por outro lado, penso no sonho como algo de natureza utópica e definitivamente impossível de realizar, sob pena de que o sonhador desperte no deserto do real. Na tese, influenciado pela filosofia de Alain Badiou, chamo isso de “ponto de impossível”.

O ponto de impossível do capitalismo é a igualdade, afirma Badiou. Ponto declarado como princípio embora, acaso realizado, acarrete na destruição do seu operador. O capitalismo jamais levará à igualdade social, uma vez que depende da desigualdade para continuar operante. Em outras palavras, o capitalismo continuará possível enquanto a igualdade social for impossível, embora sonhada, nem que seja apenas como discurso falacioso.

Pintura Suprematista (1915), de Kasimir Malevich
A mesma lógica, aplicada à história da arte, indicará como ponto de impossível o anacronismo. Georges Didi-Huberman tem se esforçado para tensionar as linhas do tempo, inspirado no legado de Aby Warburg, em especial no Atlas Mnemosyne. Ele chega mesmo a afirmar que só existe razão em pensar a história da arte, nos tempos atuais, como disciplina anacrônica. Entre as tensões e torções experimentadas pelo autor, notamos que a história continuará a exigir um fio de tempo e um espaço para suas narrativas. De fato, o século XX viu em diversas oportunidades declarações de fim da história da arte por conta de crises na historiografia, sem, entretanto, reinventar por completo os velhos métodos de narrar. Quando o anacronismo se realizar, não haverá história, mas outra coisa, possivelmente similar à literatura.

O ponto de impossível da política é o consenso, ao menos quando se pensa numa política apartada da barbárie. Na barbárie plena, o consenso é possível e serve de justificativa às violências; aliás, quase sempre é pelo consenso que se chega à barbárie. Por sua vez, a política depende do dissenso para existir enquanto lugar de trocas, de coletivização, de diferenciação. Qualquer contexto plenamente consensual é outra coisa que não política, ainda que esta pregue o consenso como comportamento de ordem, no limite até democrático. O consenso implicaria seu fim; a política sobrevive apenas na diferenciação.

Mais uma vez chegamos à arte, cujo ponto de impossível é a vida. Apesar de desejável, quando a arte abandonar sua elaboração poética e coincidir com a vida banal, deixará de existir. Ferreira Gullar usava o jargão de que a arte existe porque a vida não basta. De fato, quando a arte tentou enveredar pela funcionalidade, pela positividade ou pela objetividade, como em diversos aspectos da Bauhaus, por exemplo, tornou-se design, arquitetura, desenho industrial, comunicação. Quando se tornou ferramenta de regimes totalitários como o stalinista, o nazista ou o da china comunista de Mao Tsé-Tung, a arte tornou-se meio de comunicação que apenas reiterava ideias previamente estabelecidas pelo programa do governo.

Lygia Clark levou a arte à fronteira com a clínica, e sua Estruturação do Self confunde-se com metodologias terapêuticas. Joseph Beuys fez movimento semelhante na relação entre arte, educação e sociopolítica, misturando-se a associações de agricultores e criando modelos de universidade.

De alguma maneira, todos esses casos comprovam que o sonho modernista de estetização da vida nasceu fadado ao fracasso, ao menos no sentido de apontar um futuro para a arte. Seus resquícios no contemporâneo seguem o mesmo caminho. As artes comunitárias, por exemplo, ou mesmo as práticas artístico-terapêuticas tendem a fazer ruir o conceito europeu tradicional da arte. Não se trata de julgar o mérito de cada vertente, mas de constatar que o afastamento da estética na direção da vida comum desconfigura certo lugar da arte enquanto instituição, cujas consequências são ainda incertas.

De volta à pergunta de minha esposa, percebi que não tinha pensado a finalização da tese como realização de um sonho, mas de um desejo, e isso não me fazia menos feliz. Pelo contrário, eu me sentia pleno. O sonho, no caso, talvez fosse o conhecimento: como é impossível obtê-lo, a pesquisa não termina nunca, mesmo que tenha havido uma monografia, depois uma dissertação de mestrado e agora uma tese de doutorado, entre outras etapas da trajetória acadêmica.

Claro que cada um usa a palavra que preferir; longe de mim querer estragar os sonhos ou os desejos de ninguém, e muito menos determinar um ponto final sobre o assunto. Aliás, quanto mais estudo, mais tenho consciência do pouco que sei. Não digo isso apenas com objetivo de parodiar Sócrates, o qual “só sabia que nada sabia”, mas para afirmar que tal consciência nutre uma ética social e profissional.

De qualquer maneira, fico a pensar que o sonho precisa ter um ponto de impossível para que sua busca não cesse e a vida não perca o encanto com a sua realização. A busca é, afinal, a grande satisfação que jamais se satisfaz. É o sonho que mantém sua pulsação.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A POESIA COMO SINTOMA DO CONTEMPORÂNEO

No final do ano passado, tive o prazer de ouvir Carlito Azevedo recitar todo o Livro do Cão durante um debate sobre literatura e política. Trata-se de um longo poema do seu Livro das Postagens, lançado à época. Esbaforido, ele insistia:

O autor deveria estar aqui
mas é como se não fosse urgente
como se nada tivesse que ser dito
como se não estivessem batendo à porta
como se não estivesse batendo na nossa cara
como se não fosse urgente

O autor deveria estar ali, mas não compareceu. Irresponsável, enviou no seu lugar Carlito Azevedo, leitor. Um cão na iminência de ser devorado pela crise e sem consciência do perigo. A se justificar, inocentemente:

Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?

O real que se abate sobre nós, os cordeiros, é o invisível e o impossível que por acaso se realizam. Que, não por acaso, já eram sugeridos pela poesia. É por isso que alguns filósofos, ao investigarem o contemporâneo, vasculham poemas atrás de indícios. Giorgio Agamben recorre a A era, de Óssip Mandelstam. Alain Badiou recita As cinzas de Gramsci, de Pier Paolo Pasolini. E defende que a poesia e a matemática são as duas únicas atividades humanas realmente proféticas. Pois “todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real”.

Em sua palestra no 1º Seminário Online de Escrita Criativa, intitulada A poesia das coisas minúsculas, Tarso de Melo expôs a tese de que os grandes poetas são, de alguma maneira, desajustados em relação ao seu tempo. Cita, como exemplo, o mal estar de Drummond, “poeta da anotação”, a registrar em versos aqueles acontecimentos tão minúsculos que em geral passavam despercebidos aos demais. Acontecimentos não evidentes, que só ganhariam lugar no discurso tempos depois.

Outro exemplo de Tarso de Melo é Leonardo Fróes, cuja obra reaparece meio século depois e ganha atenção dos jovens. Por quê? Segundo o pesquisador, existe mesmo um deslocamento temporal do poeta com o seu leitor. Caberia aos interessados procurar nesse deslocamento – nessa falha ou lacuna – a intuição do poeta, que é um saber anterior à constatação da crítica. Intuir, nas palavras de Melo, é ver por meio do olhar minúsculo.

O que o poeta veria por meio desse seu olhar? Não as grandes obviedades, mas a potência invisível das virtualidades. Veria o sacrifício realizado onde, aparentemente, há apenas lenha, altar e faca, além das vítimas – ele próprio e todos nós.

A poesia seria, assim, uma espécie de sintoma do contemporâneo. Indício sensível do desconhecido ainda em vias de tomar forma. É justamente essa sensibilidade para o menor, no sentido deleuze-guattariano, que me interessa nas artes, sejam elas plásticas, visuais, literárias, musicais, dramáticas etc.

Eu completaria aquela ideia com outra, que vem se realizando sorrateiramente nas sombras da minha pesquisa de doutorado, e à qual devo atentar adiante: a ideia de que o termo “contemporâneo” não condiz com a maior parcela da arte que se realizou nas últimas décadas ou que se realiza hoje. Estas são produções atuais, num sentido cronológico e até estilístico, que talvez recebam rótulo apropriado em breve. Mas o contemporâneo não pode ser um estilo, não pode ser o que presentifica, muito menos o que evidencia as questões da atualidade, mas o que se desloca em relação ao próprio tempo e torna as questões obscuras, ambíguas, paradoxais.

Nesse sentido, eu simpatizo com Agamben, e aposto que contemporâneo é o que vem, ou seja, o que aponta para a condição futura, por ora apenas intuída, talvez um dia a ser constatada. Com uma ressalva: apesar da sua força profética, o contemporâneo não é o que induz – é o que dá condições para o acontecimento ser conforme o seu próprio desejo. É o que torna possível o virtualmente impossível. É o que realiza o real.

A forma virtual, intuitiva, é necessariamente poética. Seu sentido não está dado de antemão, mas em potência. E tal forma poética não se encontra somente no poema. Esse é o nosso desafio, enquanto espectadores e coautores do que vem: esmiuçar a vida em seus variados aspectos para quem sabe encontrar, na urgência do presente, as virtualidades que estão por vir. Não para constatá-las, evidenciá-las ou esclarecê-las; não para extirpar a sua poesia, transformando-as em discurso, mas para acolhê-las e para inventar condições de, por acaso, elas virem a ser.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

CONSCIÊNCIA DO CORPO

A apresentar o garoto Jorge Alberto Gomes, de 14 anos, que acendeu a pira olímpica na praça da Candelária, a repórter mencionou que ele “estuda atletismo” na Vila Olímpica da Mangueira. Achei bonita essa expressão: estudar atletismo. Porque é comum usar os verbos “treinar” e “fazer” quando falamos de esporte; enquanto “estudar” acaba associado a outras atividades de conhecimento, a maioria delas mais valorizadas, como se pudesse haver grau hierárquico nesse quesito. Pois existe um conhecimento que é próprio do esporte, que vai além do aprendizado técnico e da prática exaustiva, ou seja, vai além de treinar e fazer. É uma inteligência especial que se produz através do corpo – pelo desenvolvimento físico, pelo aguçamento da sensibilidade e pelo atravessamento do mundo no corpo. Uma inteligência tão difícil de localizar que por vezes acaba desconhecida, menosprezada e raramente experimentada nesta atualidade em que os corpos são quase sempre objetos de violência, suportes de cabeça ou prolongamento de máquinas. Onde o esporte, em geral, é considerado apenas instrumento de saúde, fábrica de beleza ou mero entretenimento.

Eu mesmo não sou nada esportista, sinto-me pouco afeito à prática e muito menos ao seu aperfeiçoamento. Minhas atividades físicas se resumem a caminhadas e bicicletadas eventuais, despretensiosas, que me fazem sair do escritório, habitar um pouco a cidade e chegar a um destino específico. Porém faz alguns anos que me aproximei das interfaces entre arte e clínica, que encontram recursos para a intervenção terapêutica nas atividades de sensibilização e de linguagem corporal. Isso me leva a acreditar que o esporte é um poderoso meio de expressão dessa humanidade encarnada, que não existe somente por causa da razão esclarecida, mas também porque está implicada num ser sensível, ou seja, num corpo que sente o mundo ao mesmo tempo em que age no mundo. Um ser que existe não apenas porque pensa logicamente, como afirmou Descartes, mas porque incorpora pensamentos, afetos e sensações para assim gerar uma existência singular, que percorre outras estradas na interioridade e exterioridade da vida, tanto no âmbito particular quando no coletivo.

O filósofo José Gil fala de uma “consciência do corpo” que se encontra além do simples reconhecimento de que o corpo existe, possui forma e pode sentir dor ou prazer. Seria a impregnação da consciência pelo corpo; uma instância de recuperação das forças do mundo e de devir as suas formas, intensidades e sentidos. Não falaríamos mais de separação do físico e do psíquico, como se corpo e mente fossem entidades alheias; carne e consciência seriam, em sua ambiguidade, manifestação de uma outra inteligência.

Segundo Gil, a percepção do mundo não provém do interior nem do exterior do corpo, mas desse lugar fronteiriço em que ambos se sobrepõem. Um conhecimento formado na ambiguidade do dentro e do fora, que exige um importante trabalho de abertura do corpo aos afetos. Em suas palavras, “é todo o corpo que se transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (...) Abrir o corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do em-redor do corpo próprio. (...) Um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem fim. (...) O espaço e o corpo-consciência são afetivos porque neles se formam turbilhões poderosos de vida”.

Como podemos nutrir esse espaço relacional ao redor de nós mesmos, de nossos corpos, de nossas vidas? Além da simples prática do esporte, devemos investir no seu estudo. De modo que seja possível apurar essa consciência do corpo e o abrir aos afetos que nos convocam o tempo inteiro. Estudar o esporte para que possamos, por meio da consciência que ele gera, experimentar os problemas do mundo numa outra perspectiva, com outros valores e sentidos.

Isso não significa transformar o esporte num objeto de análise acadêmica, como as faculdades de educação física ou mesmo a medicina e suas ramificações fazem há muito tempo. Significa perseguir e aguçar aquele conhecimento que só é possível através da atividade corporal enquanto linguagem; ou seja, da consciência, da sensibilização e da expressão que se desenvolvem através do corpo do esportista.

Nos últimos séculos a humanidade vem ignorando enfaticamente diversas instâncias de conhecimento em prol de uma única, hegemônica, que é a da razão, da lógica, das justificativas de ordem pragmática. Acho vital, para nossa sobrevivência diante da hostilidade capitalista que nos oprime cotidianamente – e que é vivida no corpo e pelo corpo –, que providenciemos lugar onde outras inteligências possam se desenvolver e onde elas se complementem. Onde possamos partilhar o que existe de sensível no mundo e, daí, colher uma sabedoria mais adensada e intensificada.

Costumo defender que a arte é um desses lugares de sobrevivência. Outro com certeza é o esporte. Mais do que a prática de ambos, devemos lutar pela consciência que eles podem aprimorar. Lutar para que a educação pelo esporte seja tão relevante quanto pela matemática, pela história, pela biologia etc. Uma sociedade com tamanha defasagem educacional como esta em que vivemos jamais será justa com os seus desejos e as suas potências. Por ora, como bem sabemos, ela só condiz com o próprio sistema que a oprime.

Quem sabe os jogos olímpicos, apesar de toda a problemática política, econômica e social que trouxeram ao Brasil, não provoquem também algum contágio em relação ao esporte? Que esse contágio seja grave o suficiente para irromperem regimes de consciência mais complexos, que deem conta de apreender a situação do país, unir as pessoas e transformar o sistema político-social de forma mais efetiva, onde os demais modos de consciência e de conhecimento têm falhado dia após dia, ato após ato.

domingo, 10 de julho de 2016

ESTADO DE CAOS

Um conforto perigoso habita a opinião benquista. Pois é cômodo dizer aquilo que os demais querem ouvir, é um alívio ser aplaudido por tamanho consenso; um prazer ainda maior do que ouvir do outro a ideia com a qual concordamos sem tirar nem pôr, com a qual compactuamos, ou seja, selamos um pacto. Obtemos, em ambos os casos, paz de espírito, confiança e tranquilidade na ordem geral das coisas; na qual, confortavelmente, nos enquadramos muito bem.

O que há de perigoso nisso? Sucumbir à regra. "Pois é da opinião que vem a desgraça dos homens", afirmam Deleuze e Guattari na conclusão do livro O que é a filosofia? Para eles, o termo "opinião" se refere àquelas ideias prontas que se encadeiam segundo um mínimo de regras constantes e nos fornecem o sentimento de proteção, semelhança, contiguidade, causalidade e ordem.

A contrapartida seria o caos: o inconstante, o incerto, o desvio, o dissenso, aquilo que não se deixa determinar pelas regras nem pela moral e que produz embates com o instituído. O estado de caos provoca insegurança, conflitos e desordem geral.

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
O que pode ser positivo. Porque é no caos que reside a potência transformadora; é somente daquele desconhecido que pode surgir o novo. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos. Não para nos afogar nele, mas para que possamos traçar novos planos de imanência.

O artista mergulha no caos à procura de variedades; ele sensibiliza o caos para que dali nasça um ser sensível, para que possamos experimentar novas sensações, novas formas, novas possibilidades de existência.

"Será preciso sempre outros artistas para operar as necessárias destruições", dizem aqueles filósofos. Porque o artista enfrenta o caos e apressa o desregramento, querendo produzir uma sensação que desafia toda opinião pronta, todo clichê – até que a própria destruição vire regra e sua potência de arte esmaeça. Afinal, a arte deve se manter em movimento, continuar sempre a se reinventar. Para assim se manter viva.

A arte viva provoca inquietação, ainda que sutil. Por mais encantadora que seja, por mais agradável e benquista, a arte viva não é mera opinião – ela opera, justamente, um desgaste das regras, das instituições, das formas de existência enrijecidas. Enquanto que, por outro lado, a arte livre de conflitos perde sua conexão com o caos e se cristaliza num pastiche.

Ignorar o caos leva invariavelmente às atitudes fascistas. Que implicam negar a vivacidade, a potência e a diferença do outro. De maneira a impor a ele como regra a própria opinião, os próprios modos de ver, pensar e fazer do fascista, como se fossem "os corretos", como se não pudesse haver outros. Nesse sentido, o fascismo é a impossibilidade da vida comunitária, pois nega a existência dos demais seres.

O mito fundador desse termo remete à velha Itália de Mussolini, quase um século atrás, porém seu uso permanece em alta. Sim, existe esse outro perigo que nos contagia e que habita boa parte das opiniões sobre o fascismo atual: a institucionalização do fascista como um personagem, meio Cunha meio Bolsonaro, que deve ser cassado/caçado a todo custo.

Esse estereótipo, que se encontra sempre no outro, acaba por atrair atenção para si e por ocultar o fascista que nos habita e nos constitui. Que parece inofensivo, apesar da crueldade de suas ideias. Que não se percebe como fascista porque olha apenas para fora. Um comportamento perigoso, comum e banalizado, que Foucault já apontava no prefácio de O anti-Édipo, outro livro de Deleuze e Guattari.

Nesse texto, Foucault sugere um exercício que cabe a nós ininterruptamente, como verdadeiro esforço para o conviver social: atentar, identificar e banir todas as formas de fascismo, não somente as colossais, que nos envolvem e nos esmagam, mas também – e principalmente – as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. O fascismo que ronda nossos espíritos e nossa conduta, que nos faz gostar do poder, que está incrustado na cultura ao ponto de parecer normal, como uma simples ordem geral das coisas.

Como não agir como fascista, mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário?, pergunta o filósofo. Como livrar do fascismo nosso discurso e nossas atitudes, nosso coração e nossos prazeres? Como lutar para que os outros sejam como desejam ser, e não conforme nós acreditamos que devem ser?

Abrindo as portas ao diálogo, acolhendo o diferente, livrando-se da conduta moralista, polarizada entre o bem e o mal, o certo e o errado, o real e o falso. Evitando desqualificar ou repudiar movimentos sociais sem conhecê-los de perto, sem se deixar afetar por suas causas. Deixando de reproduzir os modelos que se quer combater e as suas violências. Preferindo o positivo e o múltiplo ao invés da falta e do uniforme. Liberando a ação política da paranoia totalizante. Lutando com alegria.

O medo constitui uma das mais antigas formas de manipulação. Um povo com medo aceita se submeter às promessas de segurança do governo que anulam direitos e jamais se cumprem por completo. Um povo com medo vive sujeitado a um estado policial, acreditando que somente assim terá paz.

Precisamos vencer o conforto da ordem e mergulhar no caos. Abandonar a lógica sistêmica, os números sem sujeito, os projetos organizados administrativamente, que nunca darão conta de compreender o que é vivo e se transforma a todo instante. Porque o vivo escapa das regras, ao ponto de ser ingenuidade querer enquadrá-lo nos formulários todos com que sonha a nossa vã burocracia. Precisamos mergulhar no caos e traçar, a partir dali, nossas intenções de futuro. Precisamos inventar, poeticamente, o país que queremos ser. É pelo estado de caos, sobretudo, que nos veremos livres deste atual caos de Estado.