[…] O segundo livro é Museu de Arte Efêmera, de Eduardo A. A. Almeida, lançado esse ano pela Laranja Original. Em seu subtítulo, o livro se apresenta como “um tríptico”, e, de fato, as três histórias que o compõem carregam um efeito de serem partes de um todo, mesmo que independentes uma da outra.
Aqui, Eduardo A. A. Almeida escolheu a fragmentação como forma, e construiu suas histórias em cima disso. Um de seus personagens encapsula bem o procedimento que parece ter sido adotado nesses ótimos contos:
“Não peço uma grande narrativa
mas um apanhado de detritos
rastros e restos menores, com alguma sensibilidade
e um traço de ética.”
(p. 124)
Luminescências, o conto que abre esse tríptico já nos ambienta na tônica de seu Museu de Arte Efêmera. A história nos é apresentada em capítulos curtos, contendo cenas capturadas por câmeras de segurança e projetadas em monitores. Cada cena é um curto episódio que se inicia de forma comum, mas que sempre descamba para o absurdo. Em um dos monitores, acompanhamos um homem de óculos escuros que, deitado em um divã, narra para diferentes psicólogos um mesmo episódio da infância, mas, a cada vez, altera algum detalhe (ou alguns detalhes). Em outro, uma mulher percorre as ruas de uma cidade completamente nua, segurando apenas uma bolsa preta. E, no terceiro, um homem tenta pedir comida em um restaurante que parece não ter comida alguma. As três histórias, apesar de inicialmente separadas, são ancoradas, cada uma, em elementos que ganham importância a cada vez que reaparecem, mas, aos poucos, vemos como até esse sentido que criamos em nossa cabeça não resiste ao absurdo que o conto toma, nos forçando, ao final, a repensar tudo o que foi lido até ali.
De forma semelhante, Eterno retorno, segundo conto do livro, usa a fragmentação para criar a ideia de um tempo circular, onde tudo o que já aconteceu acontecerá de novo, e de novo, e de novo. Também separado em capítulos curtos, vemos a narrativa de um analista de seguros que, ironicamente, se vê envolvido em um acidente de carro fatal, e acorda no que parece ser uma outra dimensão (ou não). Os capítulos se dividem nesse antes e depois, mas sem seguir a ordem cronológica, reforçando, pela nova ordem temporal criada na organização do autor, a inevitabilidade do acontecido ao mostrar como não há nada que possa ser feito, nem antes, nem depois.
Fechando, o conto que dá título ao livro une os elementos de tudo o que apareceu até aqui para, de fato, nos apresentar o Museu de Arte Efêmera, prédio onde Lethe (rio da mitologia grega que apaga a memória de quem bebe de suas águas) e Zakhor (palavra em iídiche para “lembrar”) escutam as tragédias das vidas de seus visitantes e tentam convencê-los a esquecê-las para sempre e se livrarem da culpa, ou a lembrarem delas, para que não se repitam. Aqui, Eduardo A. A. Almeida usa muitos recursos do teatro e da poesia, conferindo a esse conto uma aura de tragédia grega, onde os destinos são inevitáveis, mas a vontade humana de querer mudar o passado é sempre maior, deixando um gosto agridoce na boca e aquela dorzinha do desejo não realizado. […]
Alan dos Santos — Aproveita o espaço dessa primeira pergunta para se apresentar aos leitores do site. Você já publicou por editoras importantes como Laranja Original, Reformatório e Moinhos. Três importantes editoras para o contexto de publicação da literatura brasileira contemporânea e latino-americana. Quantos livros você já publicou?
Eduardo A. A. Almeida — O Museu de Arte Efêmera é meu sexto livro, lançado agora em julho de 2024 pela Laranja Original. É formado por três histórias longas, atravessadas pela questão da memória, e cuja forma traz elementos da dramaturgia, da prosa e da poesia, bem híbrida mesmo. Antes dele eu publiquei um livro de poemas chamado Sutilezas, fins, que saiu por uma pequena editora do Espírito Santo, a Pedregulho. O belo e a bestaé um livro mais experimental, de textos curtos que tratam das proximidades e diferenças entre humanos e outros animais. É um livro engraçado e horrível ao mesmo tempo. Esse foi publicado pela Moinhos. O anterior é o meu único romance até agora — uma novela, na verdade –, de título Diante dos meus olhos, que ganhou Menção Honrosa no Prêmio Sesc e no Nascente USP, foi selecionado num edital de publicação da cidade de São Paulo e chegou aos leitores pela editora Reformatório. Meu segundo livro, já que estamos indo de trás para frente, foi o Testemunho ocular, de contos, poemas e outros textos mais livres, que venceu o concurso da extinta Lamparina Luminosa e atualmente está fora de catálogo. Esse acabou bastante afetado pela pandemia, infelizmente, que prejudicou a sua circulação. Pretendo, em breve, lançar uma segunda edição para que ele fique acessível de novo. Para encerrar, minha primeira publicação solo foi um conto, que saiu numa edição artesanal limitada pela Cultura & Barbárie, chamado Por que a Lua brilha. Foi minha estreia propriamente dita, ainda que antes eu tivesse participado de coletâneas em livros e revistas.
Mas você perguntou também sobre mim, e o que posso dizer, a título de apresentação pessoal, é que trabalho com escrita em diversos âmbitos, em especial a comunicação e a literatura. Além de escrever, assessoro autores e editores em seus projetos de criação artística ou literária. Dou aulas de escrita criativa. Fiz parte do Núcleo de Dramaturgia do SESI, do Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas e desde 2016 componho o coletivo de criação literária Discórdia. Atualmente, colaboro com o portal LiteraturaBr. E tenho uma formação acadêmica na área das artes visuais, que marca meus interesses de pesquisa e minha obra literária, basta ver alguns dos títulos dos meus livros que acabei de citar para perceber que a questão da arte, da imagem e da visualidade está posta desde ali. Se alguém se interessar, encontrará mais informações sobre mim no site www.lerparacrer.com.br, na plataforma Medium e no meu blog www.artefazparte.com. Fica aqui o convite.
Alan — Vamos explorar o Museu de Arte Efêmera (Laranja Original), seu livro mais recente e que tive a oportunidade e o prazer de ler. O livro reúne três contos que exploram a questão da memória e criam uma tensão entre a lembrança (registro, memória etc.) e o esquecimento. De fato, a questão da memória é importante para as três histórias. No primeiro dos contos, um homem refaz sua infância, modificando-a a cada relato no divã; no segundo conto, realizamos uma reflexão profunda sobre destino e escolha: estamos fadados a realizar um plano previamente estabelecido por algo ou alguém ou temos liberdade para agir? No auge dessa tensão, acompanhamos o processo de esquecimento de si de um dos personagens principais; por fim, o último dos contos personifica o embate entre memória e esquecimento confrontando Zakhor e Lethe, um saber judaico ligado à preservação da memória e o rio grego do esquecimento. Como se deu a composição das narrativas e foi intencional estabelecer a memória como o ponto de unidade do livro?
Eduardo — Você fez uma leitura muito perspicaz, o que me deixa pleno de alegria. A questão da memória atravessa as três histórias, mas não foi intencional. Na realidade, antes de ser livro, eu havia criado três dramaturgias autônomas, escritas durante minha passagem pelo Núcleo de Dramaturgia do SESI. Isso foi em 2018. Quatro ou cinco anos depois é que retomei aqueles textos e me dei conta de que tinham algo em comum, que poderia conectá-los se eu os dispusesse juntos. Foi quando surgiu a ideia do livro. Mas eu não queria reunir os textos como estavam, pois tinham sido escritos em outra situação e com outro propósito. Comecei a retrabalhá-los, com especial cuidado em relação à linguagem. Eu queria transformar dramaturgias em contos longos, mas isso não é tão simples assim, há ideias em teatro que não funcionam tal e qual na prosa, há rubricas e atos que não se tornam narrações e capítulos simplesmente porque o autor assim o deseja, então me vi tomado por um embate complexo. O resultado é híbrido, ou ambíguo; algo entre a dramaturgia, a prosa e a poesia. Mas a inquietude original se preservou nesses novos formatos, o que me deixou satisfeito. E se no tema temos um ponto comum, que é a memória, na forma acredito que haja outro, que é a questão da montagem. Quer dizer, os três contos têm uma influência grande do pensamento de Aby Waburg, que conheço por intermédio do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman, e que trata de produzir estranhamentos por meio da aproximação de elementos diferentes. Sem querer complicar demais, eu explicaria assim: em vez de uma narrativa linear, convencional, coesa, me interessava desenvolver cenas breves que, postas juntas, pudessem criar atritos, conexões inesperadas, perturbações. As histórias poderiam ser contadas de muitas maneiras. Escolhi propor uma experiência de leitura mais provocativa. De certo modo, é mesmo como caminhar por um museu e olhar cada objeto exposto em sua singularidade, e então começar a criar associações entre eles, algo que vai acontecendo de maneira consecutiva, sem que se possa controlar.
Alan — Eu não conhecia o conceito de Zakhor. Poderia falar um pouquinho sobre ele ou sobre como você chegou a ele?
Eduardo — Fui atrás de Zakhor porque, mais do que uma personagem, eu precisava de uma espécie de entidade capaz de representar a cultura, a sabedoria, a ancestralidade, a tradição. Em algum momento da pesquisa, me deparei com esse termo, que se traduz como uma ordem: “lembra-te”. Uma palavra que, segundo Paul Ricoer, por muito tempo ocupou o lugar da história científica na tradição judaica. Zakhor produziu, assim, a oposição que eu queria em relação a Lethe, o rio que os gregos mortos atravessavam e que apagava as suas memórias da vida anterior. Veja que curioso: memória, cultura, sabedoria, ancestralidade, tradição, são todos termos femininos, e assim caracterizei Zakhor como uma entidade feminina. Enquanto o esquecimento, Lethe, é masculino. Não estou dizendo que são homens e mulheres, mas masculinidades e feminilidades apresentando suas diferenças num embate que remonta às tragédias clássicas. O Museu de Arte Efêmera é um livro em que a força do feminino está bastante presente. Mas isso, assim como a ideia de Zakhor, foi se construindo um pouco por vontade própria, não é que eu tenha previsto ou agido de maneira proposital. São frutos do processo criativo.
Alan — Todo o livro faz um forte flerte com a dramaturgia, especialmente a primeira das três histórias: “Luminescências”. No final do conto há orientações de como montar a exposição. Como foi costurada a relação com a dramaturgia? Salvo engano, já ouvi você dizer que a origem das histórias remete justamente à uma experiência vinda do teatro. Se for isso mesmo, gostaria de saber então como foi a transição para a literatura e mais especificamente para a forma do conto. Qual foi o seu maior desafio na lapidação do texto? No final das contas, é muito diferente escrever uma peça e um conto?
Eduardo — Foi isso mesmo, os três contos eram inicialmente dramaturgias, eu quando percebi que elas poderiam produzir conexões interessantes publicadas num único volume, a solução que encontrei foi transpor a linguagem do teatro para a da prosa. Mas isso não é um processo automático, quer dizer, não se trata de mudar aqui e ali e pronto. Existem dinâmicas, recursos, propósitos específicos de cada gênero, e que precisaram ser reinventados. Algumas transformações foram bem graves. O primeiro conto, que você citou, resultou num texto completamente diferente do original. Mas o mais importante, a meu ver, é que ambos carregam o mesmo propósito. Talvez em literatura isso seja mais difícil de perceber, mas se pensarmos em termos de, digamos, pintura e fotografia, a discrepância das linguagens é evidente. Você pode pintar uma cena que a princípio tinha sido fotografada, mas ela será construída com tela, pincel, texturas, pigmentos, gestos corporais. E vice-versa. Minhas dramaturgias continham naturalmente rubricas, que são uma espécie de paratexto cuja função é situar o leitor, indicar ações dos atores, fornecer informações que não cabem na fala, entre outras funções. De algum modo, essas rubricas assumem um papel semelhante ao do narrador em terceira pessoa da prosa. Então, esse é um caminho de transposição entre as linguagens. “Luminescências”, ainda como dramaturgia, se pautava numa dinâmica de apagar e acender as luzes do palco — boa parte da peça se passaria na escuridão. Como levar isso para o conto? Não havia o menor cabimento sugerir que o leitor fechasse os olhos e continuasse a ler. No meio do caminho, me ocorreu a ideia das câmeras de segurança. Com elas, eu consegui reproduzir na prosa a dinâmica de cenas breves que tinha previsto para o palco. E, por sua vez, isso das câmeras seria bem desafiador de apresentar num palco, pois trata de ver a cena acontecer por intermédio de um aparelho eletrônico e de um recorte, que é o enquadramento da gravação. Esses são alguns exemplos das muitas diferenças entre a dramaturgia e a prosa. Há também a questão da recepção, quer dizer, a prosa se dirige a um leitor com livro na mão e leitura solitária, enquanto a dramaturgia se dirige a uma produção teatral e a uma interpretação do texto que será apreciada coletivamente. Isso, por si só, já é capaz de mudar muita coisa. Mas há também semelhanças. Porque, no fim, estamos falando de palavras sobre o papel, palavras lidas de maneira silenciosa ou em voz alta, palavras que vão ressoar num outro, desconhecido do autor. Talvez seja esse o grande fato da literatura, o seu ponto de irredutibilidade.
Alan — Minha formação é em filosofia, e mais especificamente em filosofia contemporânea. Digo isso para ressaltar que gosto muito do contraste entre as noções de unidade e diferença, preferindo quase sempre a força da diferença. O conto “Luminescências” brinca com essas duas noções. Acompanhamos a história através de câmeras de monitoramento. Contudo, a cronologia não é sequencial, exata ou linear. Daí a aposta na diferença. Há câmeras e monitores diferentes, todos fora de ordem. Li pela primeira vez seguindo a proposta estética caótica do conto. Fui totalmente capturado pela trama. E apesar do gosto pela diferença, fui aguçado pela busca da unidade. Refiz a leitura, dessa vez por monitores e por câmeras, organizando uma ordem lógica, refazendo o percurso proposto pelo livro num jogo de idas e vindas, e creio mesmo ter identificado uma coesão na narrativa. Você esperava que os leitores fizessem de fato esse exercício de busca por unidade ou por coerência — essa nossa tola obsessão? Você concorda que o seu texto faz uma aposta radical na diferença? Em suma, como foi pensada a narrativa desse conto? Ressalto que essa foi a minha história favorita.
Eduardo — Me parece natural que, você sendo um filósofo, sua leitura do livro seja orientada por questões filosóficas, ou pelo menos atravessada por elas, e tenho muita curiosidade para ouvi-la mais a fundo. Mas é claro que, não sendo eu um filósofo, meu processo de escrita acaba seguindo outro caminho, embora em diversos pontos ele e o seu se encontrem. Digo isso porque, por exemplo, quando decidi embaralhar as três narrativas do primeiro conto, que estão ali representadas como monitores A, B e C, eu não pensava no conceito de diferença, e sim em privilegiar cada “cena”, ou cada acontecimento. Para dizer de maneira mais simples, eu abri mão de uma narrativa linear convencional porque queria que o leitor apreciasse cada imagem em si mesma, e que só depois buscasse conexões entre elas. Assim, nós temos nesse conto três narrativas, cada uma delas com um número variado de episódios, que são de fato numerados. Isso possibilita que o leitor faça o mesmo que você: ao fim do conto, retorne ao início e siga um percurso “cronológico”. Nas “notas para a montagem da exposição”, como você notou, esse convite está posto claramente. Com um aviso: “convém alertar o espectador de que essa mudança acarretará em uma experiência estética diferente”. No fim, é disse que se trata, de sugerir uma experiência estética diferente, e nesse ponto eu concordo plenamente com você, foi uma aposta radical na diferença, aqui obtida por meio da estrutura do conto. Existe uma coesão, é verdade. Mas ela me interessava menos e ficou em segundo plano. A força do conto vem de outro lugar, na minha opinião. E eu nem acho que nossa obsessão pela unidade é tola, porque é o que traz sentido para a vida, o que nos organiza e dá condições de seguir em frente. Mas a vida não pode se resumir a isso. E acredito que a literatura tem o potencial de produzir aí uma fissura, uma inquietação, enfim, dar uma bagunçada no que se pretende muito correto.
Alan — É perceptível a influência do pensamento de Nietzsche ao longo do livro. O próprio Nietzsche escreveu um livro sobre a importância da história e do esquecimento para a vida humana. O segundo conto recebeu por título “Eterno Retorno”, um dos mais belos conceitos de Nietzsche, e destaca também a voz profética do super-homem. O terceiro conto traz a força trágica do pensamento de Nietzsche e reforça a tensão entre memória e esquecimento adicionando o elemento do ressentimento perante o acontecido, no caso do conto, a perda de uma filha. Eu estou vendo Nietzsche em tudo ou seu livro busca mesmo esse diálogo de forma consciente e premeditada?
Eduardo — Bom, você já tinha descoberto que sou leitor de Deleuze e Derrida, e agora de Nietzsche. Mas meu interesse por esses filósofos tem muito mais de curiosidade pela maneira como eles transformaram a maneira de produzir pensamento do que um procedimento metodológico propriamente dito. Vamos colocar assim: sou um leitor descompromissado no que diz respeito à filosofia. Vou me apropriando dos conceitos tanto quanto das histórias que ouço ou de acontecimentos que testemunho, tudo se torna recurso para a escrita literária. Sempre achei linda a declaração de Lygia Clark de que “engravidava pelos ouvidos”, também ela querendo escapar de uma determinação intelectualizada da sua obra. Ela admitia ler e se encantar com o conhecimento advindo de outras áreas, mas aquilo em suas mãos se transformava em outra coisa, era matéria-prima para a criação artística. O eterno retorno, no caso desse meu conto, é um pouco isso também: uma referência, uma chave de leitura, um conceito que me marcou. E não é algo recente: li o Zaratustra na faculdade, vinte anos atrás, com minha cabeça de pós-adolescência. Depois até quis retomá-lo para desenvolver o conto, mas achei que acabaria por tentar aplicar na literatura as “ideias em filosofia”, como diz Deleuze em seu artigo sobre o ato de criação. Isso estaria fadado ao fracasso, então não voltei a Nietzsche. Deixei apenas que minhas impressões de décadas antes continuassem a ecoar. A bem da verdade é que as primeiras versões dessa história datam mais ou menos daquela época, então a influência esteve mesmo presente com maior intensidade. Com isso tudo, quero dizer que você está vendo Nietzsche no livro inteiro, e não tiro a sua razão. Mas não se trata de uma ação tão consciente assim e muito menos premeditada, com exceção da menção ao super-homem. Acredito que alguns autores são tão marcantes em nossa formação que não conseguimos deixá-los jamais.
Alan — Aproveitando o gancho, quais são as suas influências literárias? Quais autores e autoras te influenciam no processo de escrita? De onde vêm a sua verve experimental?
Eduardo — Embora eu leia um pouco de tudo, a vertente fantástica da literatura cria diálogos mais fortes com a minha obra. Gosto muito de Julio Cortázar, Italo Calvino, Murilo Rubião, esses clássicos. Mais recentes, me identifico com o que fazem a Samanta Schweblin, a Veronica Stigger, o Gonçalo M. Tavares. Porque são autores que extrapolam o convencional e ampliam as possibilidades da forma. Seus livros nunca são previsíveis. Experimentam, provocam, surpreendem, incomodam, nos deixam meio atônitos, questionando os limites da literatura e o que um livro pode proporcionar. E todos eles contistas, ainda que não exclusivamente. Não é por acaso. Esse é um formato que permite muitas aberturas, seja em relação à forma, à linguagem, às subversões.
Alan — Sempre gosto de pedir: poderia citar três livros que você leu recentemente e que te marcaram?
Eduardo — O livro dos lobos, do Rubens Figueiredo.Encontrei ali contos repletos de estranhamento e um profundo silêncio. Não conhecia esse lado ficcionista do Rubens, que também exerce um trabalho importante como tradutor e ensaísta.
Flecha, de Matilde Campilho. Um livro difícil de definir, formado por um apanhado de imagens e histórias breves que misturam fatos, ficção, perspectivas narrativas. Lindo demais.
O museu do silêncio, da Yoko Ogawa. Gosto muito da literatura japonesa e do trabalho da editora Estação Liberdade. Este é um romance contemporâneo que também fala da memória, dos rastros que deixamos, da efemeridade.
Alan — Por fim, sinta-se à vontade para comentar qualquer outro aspecto do livro que porventura eu não tenha te perguntado.
Eduardo — Eu preciso lhe dizer que foi um prazer imenso responder a perguntas tão interessadas e generosas. Elas me fizeram ver o meu próprio livro com outros olhos. Só posso expressar minha gratidão. E se tem algum aspecto que ainda cabe comentar talvez seja a escolha por reunir três textos e chamá-los de “tríptico”, termo tradicionalmente usado no campo da história da arte para se referir a retábulos de altar, muito populares na Idade Média. Suas imagens quase sempre têm em comum uma linha narrativa, uma moral, um personagem. Meu percurso pela pós-graduação se deu sempre no campo das artes visuais, e diversos dos meus escritos trazem questões oriundas das pesquisas que realizei ali. Os diálogos entre a literatura e as artes visuais me interessam especialmente. Veja esse meu livro mais recente: desde o título já nos deparamos com um museu de arte. Mas a reunião de três narrativas longas também é recorrente na literatura. Temos a edição dos Três contos de Flaubert, talvez a primeira que me chamou a atenção para isso. Mais recentes, temos Sul, da Veronica Stigger, e Sebastopol, do Emilio Fraia. Com certeza há muitos outros que eu poderia citar aqui. Mas eu só queria mesmo dizer que houve nessa escolha uma intenção, e ela me ajudou a explorar o meu interesse pelas artes e pelas imagens, o que veio bem a calhar.
* Esta entrevista foi conduzida pelo filósofo e psicanalista Alan dos Santos e publicada originalmente no site Deus Ateu.
Ontem me comportei mal no universo. Vivi o dia inteiro sem indagar nada, sem estranhar nada. […] O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco, e eu o tomei somente para uso habitual.
Trecho do poema Desatenção, de Wisława Szymborska
Ando às voltas com o espanto. Esse sentimento, que é também uma espécie de acontecimento, ganhou sabor especial por conta do meu livro mais recente, Museu de Arte Efêmera (editora Laranja Original). Com tal palavra a me assombrar, e a obra em processo, dei-me conta de que escrevo para provocar espanto. No leitor, sem dúvida, porque acredito nessa literatura que apresenta um desconhecido, evoca a sensação de estranhamento, desnaturaliza o banalizado, em vez de apenas reiterar o que já se sabe. E escrevo para eu também me espantar.
Espanto-me com a narrativa que se vai criando à revelia dos meus planos, como se me usasse para adquirir vida própria. Emociono-me com meus personagens, sofro com os seus conflitos. Rio da piada que não esperava escrever. Surpreendo-me com usos da linguagem que não me diria capaz de desenvolver até o momento em que a vejo no papel, com a tinta ainda por secar. Acredito na arte que surge desse inusitado.
“O escritor é aquele que se espanta com as coisas, desde as mais triviais às mais extraordinária”, afirma Noemi Jaffe no livro Escrita em movimento. E completa: “ele dificilmente permite que as coisas se banalizem, já que quase tudo é matéria de escrita”.
Também fico feliz ao ler Wisława Szymborska falar sobre o espantoso na poesia. “Na qual se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e sobre ela nenhuma nuvem. Nenhum dia e depois dele nenhuma noite. E acima de tudo nenhuma existência do que quer que seja neste mundo”.
Ao receber o Prêmio Nobel em 1996, a poetiza comentou a importância do “não saber” em sua obra. O que faz da escrita não um instrumento da verdade, mas da busca. A escrita como perseguição daquilo que demanda ser escrito, e que todavia é arisco. Escrever como meio de se fazer perguntas e tentar respostas necessariamente insuficientes.
O artista das letras não deve escrever para defender uma ideia, penso eu, mas para se atirar no desconhecido. Tenho sempre comigo a fotografia em que Yves Klein pula do alto de um muro. Salto no vazio, diz o título. Onde cairá? Caso sobreviva, em quais condições se reerguerá? Com sorte, trará desse lugar estranho – o vazio – um punhado de matérias-primas, a princípio desconexas, que desse seu desencontro serão capazes de sugerir algo ainda não dito, ou sequer imaginado. Espantoso?
Para Szymborska, a inspiração nasce de um incessante “não sei”. E isso não é privilégio dos poetas ou dos artistas em geral. Segundo ela, “existem médicos, pedagogos, jardineiros e centenas de outros profissionais assim. Seu trabalho pode ser uma constante aventura desde que consigam ver nele sempre novos desafios. Apesar das dificuldades e fracassos, sua curiosidade não arrefece. A cada problema resolvido segue-se um enxame de novas perguntas. […] Todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto”.
A tradutora Regina Przybycien destaca, por exemplo, o interesse de Szymborska por outras áreas do conhecimento além da poesia, entre elas as ciências. Vivia em busca de oportunidades para espantar-se. “Achava que a poesia não nasce de conversas com poetas ou sobre poesia, daí sua amizade com matemáticos, físicos, geólogos, os quais podiam lhe revelar algo interessante e indicar leituras”.
É uma ideia que me atrai de maneira particular, dado o meu interesse pelas artes visuais, que inevitavelmente atravessa meu trabalho de escrita. Já se percebe no título deste mais recente, que remete a um museu, e que na folha de rosto se define como tríptico – formato tradicional de pintura, comum nos retábulos medievais, em que três peças criam um conjunto, associando-se em geral por compartilharem um tema ou um significado.
Os três contos que compõem o acervo do Museu de Arte Efêmera são atravessados pela questão da memória. A memória como forma de elaborar a vida, como marca traumática, como resistência diante do esquecimento. Eles apresentam estrutura fragmentária, inspiração dramática – eram, inicialmente, peças de teatro, que transcrevi para o formato de prosa – e jogos de imagens e sensações. Procuram mostrar como nossas histórias pessoais podem ser ao mesmo tempo frágeis e poderosas.
É meu livro mais ousado, em especial no que diz respeito à linguagem. Os textos tiveram suas primeiras versões em 2018. Quando os reli, passado um período de sedimentação, me espantei, percebendo-me leitor de mim mesmo, e o que melhor conhece minhas habilidades e lacunas de escritor. Espantei-me com o embaralhamento das vozes, que abre a narrativa para outras possibilidades. Com o enredo não premeditado, com o tanto de vivência pessoal alimentando a vitalidade das personagens. E em especial com a busca por respostas que percorre os textos e os conecta.
No conto Luminescências, um sujeito reinventa certo acontecimento de sua infância a cada vez que o relata, buscando entender como aquilo ainda o determina. Após um acidente de carro que vitima sua namorada, o protagonista de Eterno retorno deve se reaver com o destino. Por fim, em Museu de Arte Efêmera de Lethe, o fato de ninguém se lembrar da criança afogada no rio faz outras tragédias virem à tona, assim como a indiferença de suas testemunhas.
Sigo ansioso por descobrir se os leitores sentirão também o espanto que me acometeu durante a redação. Não idêntico, claro. Mas algum ímpeto poético que abra uma fenda nos absurdos corriqueiros já tomados como certos. Um deslocamento na direção do desconhecido. Uma respiração retesada. Um incômodo. Se isso acontecer, o trabalho terá cumprido o seu propósito.
Não faz muito tempo, comecei a organizar com maior rigor as minhas leituras, refletindo sobre os assuntos do meu interesse, traçando planos e tomando notas, seja para depois escrever resenhas ou como forma de estudo. Em 2022, li um total de 53 livros. Número que só decorei porque, coincidentemente, no ano seguinte li a mesma exata quantia. Isso dá uma média de pouco mais de quatro livros por mês, ou um por semana. Mas em janeiro de 2024 eu li um único livro. Em fevereiro também. E tudo bem. Porque estou tentando ler melhor.
Eu já vinha pensando em exercitar uma leitura mais analítica, embora essa ideia só tenha se apresentado com clareza por causa do livro Para ler como um escritor (editora Zahar), em que a estadunidense Francine Prose explica como a leitura atenta a fez uma leitora melhor qualificada e, por consequência, uma escritora mais habilidosa.
“Leio minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor”, diz a autora, que também dá aulas de escrita. Para ela, “todos nós começamos como leitores atentos. […] É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros que lemos foram escritos”.
Essa consciência do ritmo, da dicção, do tom, da maneira como as frases são construídas e como a informação é transmitida, como o escritor estrutura a trama, cria personagens, menciona detalhes e desenvolve diálogos, entre outros pormenores, requer um carinho especial do leitor com a forma do texto. E não pode haver nada mais importante. Pois é a forma que diferencia uma narrativa literária de um relato qualquer.
A apreciação estética de um texto literário convoca o leitor a usufruir com maior profundidade da escrita como arte. Mais do que a disposição para entender a história contada, ela trata do como se conta, de quais recursos estilísticos foram empregados, quais foram as escolhas do escritor e, claro, as suas consequências na leitura. Ler com esse prazer pela linguagem é semelhante a ouvir uma música com atenção às notas e arranjos da sua execução.
Francine Prose enumera ainda outras camadas que essa leitura suscita. Como os casos em que as revelações cruciais de uma trama estão nos interstícios, ou seja, estão apenas sugeridas nos não ditos, nos espaços entre as palavras. Podemos pensar também em como as frases se ordenam para enfatizar um sentido interpretativo. Ou como mudanças de parágrafo indicam deslocamentos nos pontos de vista da narrativa. Como os diálogos trazem implícitas as intenções dos personagens ou a parcialidade do narrador. Por qual motivo nos identificamos, ou não, com eles. Como os detalhes situam um personagem em seu ambiente, ou como um gesto sutil é capaz de apresentar algo fundamental da sua subjetividade. Quem conduz a narrativa. Com quem fala. Quais são os tempos verbais. Como se estabelecem as relações entre um personagem e outro. Como a linguagem parece adequada a determinado contexto. Como o autor usa os estranhamentos para revelar novas perspectivas sobre algo tornado banal. Ou, ainda, como a gramática é empregada, como as normas são subvertidas, como outro usos da língua são inventados para dar conta de um propósito narrativo.
Acontece que isso tudo implica uma leitura exigente. Que demanda, em primeiro lugar, atenção. E em segundo lugar requer lentidão. Requer maior preocupação com a qualidade do que com a quantidade. Além de um olhar treinado.
Francine Prose fala sobre ler de perto, como quando nos aproximamos de uma pintura de Rembrandt para observar suas pinceladas. Claro, afinal, as palavras são matéria-prima para o escritor, assim como as tintas para o pintor, ou as notas musicais para o compositor. Seguindo com as comparações, a autora cita o russo Isaac Bábel, para quem a linha é tão importante na prosa quanto na gravura.
E mesmo ensinando escrita há décadas, Francine Prose vê a atividade com desconfiança, claramente dando preferência à maneira como se formou, ou seja, lendo com entusiasmo, com empenho, com olhar crítico. Para ela, oficina de escrita e leitura atenta são práticas complementares. Que todavia operam em sentidos opostos: enquanto a primeira, assim como os manuais de estilo, expõe o lado “negativo”, ou seja, o que não se deve fazer, a segunda reúne modelos positivos, destacando o brilhantismo de certos profissionais da área.
E se você não tem pretensões de aprender o ofício, ainda assim é possível se aperfeiçoar como leitor. Em ambos os casos, ler muito não significa, necessariamente, ler bem. Não tenho dúvidas de que se pode argumentar ainda que tudo depende do propósito que leva cada pessoa a buscar um livro. Porque há tantos os aficionados pela arte das letras quanto aqueles que não querem mais do que um passatempo tranquilo. A depender da ocasião, um mesmo leitor pode ser A ou B, não há motivo para fronteiras rígidas.
Para ler como um escritor traz, no final, uma entrevista com a autora. E em meio às respostas dela se encontra a seguinte provocação, que destaco como última reflexão para todos nós: “Há escritores que seriam mais lidos – e, inversamente, escritores que nunca seriam lidos – se as pessoas realmente observassem quão bem ou quão mal eles escreviam. Na maioria dos casos, eu preferiria ler algo que está lindamente escrito e não aborda grandes temas a ler algo aparentemente mais denso que não tenha um tipo de uso novo ou revigorante da linguagem”.
Dia desses, um colega de trabalho alegou ter horror a livros de contos por causa da ansiedade que as histórias curtas lhe provocam. Não foi a primeira vez que ouvi algo semelhante. Lembro-me bem de quando uma amiga escritora confessou sua preferência por romances porque, quando ela “começa a se envolver com a trama dos contos, a história acaba”. Até mesmo Mário de Andrade afirmou certa vez que “o livro de contos fatiga muito mais que o romance. […] A leitura de vários contos seguidos nos obriga a todo um esforço pleno de apresentação, recriação e rápido esquecimento de um exército de personagens, às vezes abandonados com saudade”.
Sou um caso suspeito, mas tenho cada vez mais preguiça de romances. Não necessariamente pela extensão, mas pelo “formatão” convencional que pouquíssimos escritores subvertem. Em minhas aulas, costumo fazer um paralelo com a pintura: a ilusão perspectiva, a luz e sombra, a marca da pincelada, as cores realistas, tudo isso está dado e pronto para ser reproduzido como tantas vezes já se fez. Como reinventar essa tradição?
Há quem me contradiga, explicando que grandes experimentações romanescas correm o risco de provocar estafa mental ao longo de tantas páginas. Talvez, talvez. Existem exemplos excelentes que derrubam essa tese, embora sejam exceções, admito. Além do mais, estamos falando em oferecer uma nova experiência de leitura ou repetir o que já se conhece? Precisamos fazer escolhas assim a cada novo arquivo que abrimos no computador.
Mesmo encontrando mais ousadia nos contos, nossos leitores têm preferência pelo romance, como mostra a pesquisa Retratos da leitura no Brasil. De modo geral, os contos perdem em todos os perfis de público. Resultado que se vê também nas prateleiras das livrarias e nos catálogos das editoras, onde a oferta de um gênero é bem maior que a do outro. Situação dada e estabelecida, apesar da ponderação de especialistas no setor, como a do editor Cide Piquet, para quem “alguns dos melhores momentos da literatura brasileira passam pelos contos de Machado de Assis e Guimarães Rosa”.
E o que falar do microconto? Porque se há contos de dez, vinte, cinquenta páginas, há também de dez, vinte, cinquenta palavras. Esses quase não aparecem em livros. Uma exceção é o Universos breves: antologia do microconto de língua espanhola, publicado no Brasil pela editora Cobogó em 2022.
Algumas hipóteses sobre a menor adesão aos contos – e em especial aos microcontos – surgiram quando terminei a leitura dessa obra. E estão relacionadas ao que já vínhamos observando:
1) É mais difícil se envolver com tramas e personagens tão breves.
2) O experimentalismo não é para qualquer leitor.
3) Os microcontos, de modo geral, não passam de uma simples ideia.
Esta última foi a que mais me pegou. Em especial porque, em vez do livro completo de um escritor, li uma coletânea que apresenta 39 autores diferentes, com cinco textos cada. Uma miscelânea e tanto.
Digo por experiência própria: meu livro O belo e a besta, embora não tenha somente contos, reúne textos curtos que, a meu ver, encontram seu pleno potencial no conjunto. Lê-los isoladamente não é a mesma coisa. Um deles, por exemplo, é uma lista de expressões populares cujos termos se associam ao mundo animal. Uma lista. Que naquele contexto ganha outros sentidos. Tanto que não entendo esse livro como uma coletânea, mas um projeto cuja coerência e interesse surgem enquanto o leitor percorre as páginas e cria conexões entre as cenas.
Não sei se cada microconto no Universos breves vem de um livro como o meu. Suponho que não. E isso significa que, de fato, aqueles textos não conseguem nos levar para muito além das suas poucas linhas. Podem se constituir de uma frase de efeito, uma tirada bem ou mal-humorada, um lampejo, um jogo de significados. Cuja graça também fica, assim, limitada.
E por que isso acontece? Notei que microcontos tendem a prescindir de elementos fundamentais da narrativa, seja personagem, tempo, espaço, narrador ou, na maioria das vezes, enredo. Se tais elementos são chamados de fundamentais, é porque fazem falta quando ausentes, em especial pela identificação que criam – ou não – com quem lê. Aliás, abrindo mão disso, será que ainda podem ser chamados de contos?
Vou deixar o debate aberto. Chamo atenção apenas para que, sem poderem desenvolver profundidade psicológica, microcontos apresentam personagens que mais parecem figuras manipuladas, submetidas ao desejo do autor. Sem conflitos complexos, suas histórias rumam para o chiste ou o arroubo de linguagem. E assim por diante.
A consequência é que os microcontos, em geral, são fracos se comparados ao prazer estético proporcionado pela literatura mais convencional. Naquela mesma matéria, Piquet cita o fato de muita gente afirmar que “um romance, e não um livro de contos, marcou e foi fundamental em sua vida”. Improvável que microcontos ganhem essa relevância. Mas será que querem? Ou sua pretensão é mesmo descontrair, acender uma faísca, quem sabe apontar algo inusitado?
Ainda assim, penso que microcontos poderiam resultar em uma experiência das mais radicais, e estaria aí um desafio aos escritores: superar a condição de argumento não desenvolvido, ou de jogo de palavras com fim em si mesmo.
Outro ponto interessante nisso tudo são os meios de circulação que o formato encontra. Pois, se os livros são raros, as redes sociais estão repletas desses textículos. Veja o exemplo das Histórias bermudas, perfil que Nathalie Lourenço e Rafael Zoehler mantêm no Instagram. Há inúmeros mais.
Mesmo tendo sua força na economia dos meios narrativos, é sempre um desafio dizer se o conto – ou microconto – está na medida certa. E, se a brevidade destes tem seus problemas, muito pior é ser professor de escrita de contos e ouvir que um leitor não está nem aí para ficção que não seja romance.
No caso daquele colega de trabalho – que acabou provocando este artigo, veja bem –, o que fiz foi enviar uma lista de livraços de contos para ele conhecer. Fiz por vontade própria, sem que me fosse solicitado. A conversa se encerrou assim. Vamos ver se a amizade terá próximos capítulos.
Os significados das palavras costumam ser um dos principais interesses de todo escritor. Contudo, com o passar dos anos fui sendo convocado a pensar também numa espécie de caminho inverso, quer dizer, naquilo que as palavras não alcançam. Seus limites. Suas falhas. Ou lacunas.
Encontrei eco para esse pensamento num pequeno ensaio chamado Lições nas trevas, do italiano Giorgio Agamben, que compõe seu livro Quando a casa queima (publicado no Brasil pela editora Âyiné).
O filósofo afirma que o profeta se dirige às trevas de seu tempo, e para isso deve se deixar investir por elas, abrindo mão da própria lucidez. Em seguida, aproxima-o do poeta, e por consequência sugere um ponto comum entre as palavras proféticas e as poéticas.
O autor já havia desenvolvido esse conceito de trevas ao menos em outro texto, bastante conhecido, cujo título pergunta: O que é o contemporâneo? Pois elas, as trevas, representam para ele uma potência do que pode vir a ser, e que à sua maneira já está em nosso tempo, nos limites da definição; qualidade do que é obscuro, portanto do que ainda não conseguimos perceber com clareza.
Ao transportar esse conceito para o âmbito da palavra, Agamben fala de um significado não racionalizado, mas de algum modo percebido; espécie de sentido que precede a possível compreensão. Poderíamos, a partir daí, seguir com a ideia de que o profeta detém a capacidade de perceber no presente algo que ainda não está evidente, “prevendo o futuro”. O mesmo valeria para o poeta e os artistas em geral. Mas não é esse caminho que interessa agora; vamos nos ater à questão das palavras em si.
Porque a palavra profética, cujo significado está sempre por vir, teria um caráter insurgente em relação à gramática e aos nomes, ao léxico e à sintaxe, oferecendo acesso a outra experiência da linguagem. Para enfatizar esse atributo, Agamben diz inclusive que tal palavra é, de certo modo, ilegível. Enquanto sua insurgência, ou nova experiência pela palavra, é a própria obra da poesia.
Parece complicado? Mas existe nisso um ponto muito simples, com o qual é fácil concordar: pela poesia nós podemos escapar dos significados imediatos e, assim, experimentar outras possibilidades das palavras.
Aliás, é importante assinalar que poesia, nesse caso, não se resume à forma versificada: vale também para a prosa e qualquer outro tipo de texto que proporcione ao leitor uma experiência estética. A poesia seria, digamos assim, o recurso criativo que permite vencer os limites das palavras, deslocando a experiência de leitura para longe da pretensa exatidão delas; ela está nesse deslocamento entre a norma e a insurgência, sugere Agamben. E o escritor espera, claro, que algo virtuoso aconteça em tal movimento.
Eu voltei a essas ideias quando li o conto Réveillon, de Rafael Gallo, que abre seu primeiro livro, Réveillon e outros dias (editora Record). Mais para o fim da história, o protagonista – jovem adulto e surdo – diz que, às vezes, gostaria que seu pai fosse surdo também, porque isso não deixaria as falas o distraírem da linguagem mais profunda. Essa vontade se dissipa quando o filho observa o velho gesticular para se comunicar com ele. “Sempre tivemos um idioma que falava por intermédio de tudo: de nossas mãos, olhares, palavras, todo o corpo. Todos os nossos gestos tinham o mesmo valor, e acho que isso nos fez compreender um ao outro quase inteiramente”, reflete.
Para o surdo, os gestos feitos com o corpo levariam a uma compreensão mais complexa do outro, ou seja, possibilitariam ir além do que as palavras dizem por si mesmas. O “fundo por trás da palavra”, explica o narrador do conto. Ou o que o protagonista definia como a linguagem mais profunda do mundo: “o idioma que, liberto das cercanias das palavras, se define apenas por ele mesmo e seus nomes impronunciáveis”.
Enquanto Agamben trata de um sentido que antecede o significado das palavras, o personagem no conto de Gallo busca um jeito de extravasá-lo. Preocupações que, no meu entender, também deveriam ser de todos os que têm na palavra o seu ofício. Afinal, se no dia a dia “escrever bem” é dominar os significantes e significados para assim produzir textos muito claros, a “arte de escrever” é outra coisa: diz respeito a elaborar o que há de impreciso nas palavras para, no que se esconde atrás delas, ou em suas trevas, permitir que o texto leve cada leitor a uma experiência singular.
Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.
Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.
Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?
Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?
Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.
Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.
Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.
Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.
Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.
Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.
Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.
A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.
Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.
Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?
Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.