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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

COMO FAZER AMOR NOS TEMPOS DA CÓLERA?

Saiba mais no site da editora Quelônio

Com o perdão da paródia, essa pergunta foi uma das que me ocorreram enquanto lia Fazer amor no século XX, de Clarice Dall’Agnol, editado no fim de 2023 pela Quelônio.

O livro é na verdade uma plaquete com 44 páginas e 33 poemas. Obra que, já de início, chama atenção pela coragem. Afinal, a humanidade tomou caminhos tão bizarros – guerras, ameaças nucleares, pobreza, extremismos políticos etc. – que falar de amor agora é seguir na contramão. Ou, no mínimo, um gesto anacrônico. E logo esse assunto tão enraizado na história da literatura!

É bonito porque encontramos ali amores variados, que escapam do sentimentalismo pasteurizado comum em romances “água com açúcar”, filmes, músicas, reflexões de redes sociais etc. São amores alegres, dramáticos, inquietantes, voluptuosos, perturbadores, dolorosos, motivadores, sutis, cativantes, poderosos, que vão alinhavando diferenças e aproximações. E que ganham forma na companhia de outros temas, como o mar, o sul, o corpo, a memória, as amizades, o ofício da poetisa.

Clarice produziu um livro tocante. Que traz ainda a qualidade de ter a medida exata – falar demais sobre o amor pode ser um perigo! Assim, também paro por aqui, deixando o convite a quem quiser experimentar a leitura.

Passo a palavra à autora, que foi muito gentil em responder às perguntas a seguir.
 
Por que fazer amor – e falar de amor – no século XXI?
E por que não fazer? Ou falar? Penso que mesmo que muito se tenha falado e escrito sobre o amor ao longo da história universal, ainda assim, não foi o suficiente, ou não estaríamos vivendo uma imensa (e coletiva!) crise existencial, emocional, de valores, de intenções, de finalidades. Nossa geração teme amar, porque teme também o desfazimento do amar. Evitamos amar, para não sentir tanto, e, assim, não sofrer decepções. Sempre costumo dizer que “amo até a última gota” (e essa frase também já foi morar em meus versos): sinto em demasia, e justo porque o ato de amar (e igualmente o de deixar de amar, ou de ser amada) são alimentos para minha poesia. “Porque demais sinto/muito me derramo em palavras”, digo em meu poema “À Flor da Pele”. Não tenho medo nenhum de amar (ou de escrever sobre o amor), e acredito que transmutar esse meu “não medo” do amor em poesia pode, de algum modo, convidar quem me lê a experimentar mais intensamente as variadas formas de amor que se apresentam nestes tempos tão fluidos e complexos em que vivemos, principalmente no mundo pós-pandêmico. Duas de minhas maiores influências poéticas, Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar, que fizeram poesia confessional como poucas, ensinaram-me a me libertar de toda e qualquer amarra em prol de um constante resgate do que em mim mais recolhido (porém, pulsante) está. Precisamos seguir amando sem fronteiras, para nunca deixar de escrever sobre amar, e sobre o amor, porque, ao final, é sempre ele que desata os mais intricados nós. E desata-nos, desvenda-nos.
 
Seu livro evoca amores diversos – de juventude, de memória, de mãe, de amigos, platônico, vividos ou observados, entre outros – sem, contudo, recair em lugares-comuns. Qual é o seu segredo para reinventar o amor em poesia?
Conforta-me ouvir que meus poemas sobre o amor não soam como lugares-comuns. Não que isso tenha sido uma preocupação consciente ao longo de meu processo de escrita desses poemas, porém, reconheço que não é tarefa fácil fugir de clichês quando se fala de amor em poesia. Enquanto escrevo esta resposta, neste exato momento, penso que talvez o segredo para essa reinvenção do amor em poesia, sem que meus versos se tornem simplórios - mas que sigam sendo sempre singelos, porque, como leitora desde a infância de meu conterrâneo, o mestre Mario Quintana, penso que é na simplicidade que reside o mais belo e profundo do fazer poético – o segredo é justo livrar-me de qualquer censor interno que possa ceifar o que há em mim de mais genuinamente confessional. Se eu não puder ouvir minha voz poética mais livre e autêntica, não serei mais capaz de escrever poesia. Tudo o que me amarra me impede de criar.
 
Algumas das dedicatórias que acompanham os poemas trazem homenagens a mulheres (“an amazing and smart girl-woman” ou “a mais incrível das mulheres”, por exemplo). O amor é um poder – e talvez um território – feminino?
Adorei essa frase! Daria um baita poema. Arrisco-me a dizer que o amor sempre foi um poder (e, sim, um território feminino!), porém, fiquei estarrecida ao ler recentemente em um ensaio escrito por Virginia Woolf (cuja vida e obra fazem parte de minha pesquisa de Doutorado), que, nos primórdios da literatura universal, as mulheres não faziam poesia, porque o patriarcado não lhes atribuía nenhuma capacidade em qualquer tipo de sensibilidade (que incluía o “saber” amar, ou sobre ele versar, veja que absurdo...!). A poesia, sendo considerada arte extremamente sofisticada e sublime, só cabia, infelizmente, a alguns poucos “vocacionados”, todos do sexo masculino. Foi apenas de modo muitíssimo lento que as mulheres (e por óbvio, também as artistas) foram adentrando os territórios absolutamente dominados pela sociedade patriarcal em várias áreas, o que incluía a literatura e a poesia. Não afirmo aqui, de modo algum, que o amor seja (hoje) poder e território exclusivo das mulheres (seja para vivê-lo, ou escrevê-lo), contudo, a partir do domínio gradual do feminino sobre a arte e a liberdade de amar, pode-se dizer que nós mulheres tomamos por completo as rédeas sobre nossos sentimentos, nossos corpos e nossos desejos, de um modo extremamente corajoso, assertivo e contundente, jamais experimentado pela sociedade, historicamente; porém, sem perder a sensatez, o lirismo e a ternura. E isso é irreversível (ainda bem!).

Sei que você tem uma produção de décadas, mas só agora está lançando seu primeiro livro solo. Como foi esse processo de escrita, maturação, seleção e publicação?
Sim, escrevo em realidade desde muito jovem, e publico em meios virtuais desde 2003, porém, posso dizer que a coragem de lançar meu primeiro livro “no papel” veio somente no ano passado, em 2023.

Os 33 poemas de meu “Fazer Amor” foram selecionados dentre minha produção poética do final de 2021, quando a pandemia já iniciava a dar sinais de melhora, até julho de 2023, quando enviei o original para a editora. Os poemas já tinham sido publicados no coletivo cultural virtual do qual faço parte desde 2005, o PáginaDois. Inicialmente, não havia pensado em unir os poemas pelo “fio condutor” do amor e seus desdobramentos, porém, aos poucos, comecei a perceber que, sim, mais do que o amor, o “amar” estava ali naqueles poemas, sob suas mais variadas formas, sob as mais diversas experiências, minhas, e das pessoas que me rodeiam. Em realidade, eles estão em uma ordem cronológica, mas decrescente (de julho de 2023 a novembro de 2021).

Surgiu-me então a oportunidade incrível de publicar pela editora Quelônio, que admiro desde seu início no mercado editorial, com essa publicação artesanal belíssima, da qual tive o prazer de participar de todo o processo, desde as primeiras conversas com o editor, Bruno Zeni, que foi maravilhoso, passando por um primoroso e cuidadoso trabalho de preparação dos originais, escolha de tipos móveis, layout, cores de capa e costura, pelas mãos lindas e criativas da designer gráfica Silvia Nastari, até culminar no livro prontinho para publicação. Meu livro é parte de uma coleção de outros sete títulos, de autoria de seis escritoras e um escritor, meus parceiros nessa empreitada inesquecível que durou 5 sábados em 2023, nas dependências da tipografia da Quelônio. Bem, amei o resultado, ficou lindíssimo! Agradeço muito ao querido amigo Eduardo Almeida pela perfeita review que fez do livro, e também ao coletivo Discórdia pelo interesse em meus versos, e pelas instigantes perguntas. Foi um prazer respondê-las! 


quinta-feira, 27 de julho de 2023

IVAN NERY CARDOSO SOBE UM DEGRAU NA LITERATURA COM "CÃES NOTURNOS"

Confira a resenha do livro e, na sequência, uma entrevista com o autor.


“O que tem o último degrau? É onde a fila vai dar, oras! O homem de chapéu parece confuso. Sobem mais quatro pessoas. Não, não, o último degrau fica lá em cima. É claro que não fica!, você protesta. Ele se vira para o jovem com espinhas atrás dele: nós não viemos lá do último degrau, lá em cima? O jovem concorda, diz que sim e faz joinha com as mãos. Lá embaixo deve ser o primeiro degrau.”
Trecho do conto “O último degrau”

Cães noturnos é o primeiro livro solo do paulistano Ivan Nery Cardoso. Nele estão reunidos 20 contos, divididos em duas partes de 10. São em geral textos breves, com uma média de 3 ou 4 páginas e algumas exceções. Embora os temas sejam variados – como um bacanal no Paraíso, brincadeiras de crianças, arte no apocalipse atômico, amor programado com inteligência artificial, turismo em Marte, lobisomens e afinação de piano, para citar alguns –, em comum eles apresentam certo estranhamento que flerta com o fantástico, ainda que nem sempre se trate disso exatamente, ou nem sempre isso se dê nos moldes de um Julio Cortázar ou um Murilo Rubião, por exemplo.

Pois Ivan manipula também elementos de outros gêneros, outras referências, outros interesses literários: o horror, como no conto que dá nome ao livro, ou em “Noite dos loucos”; certo viés explicitamente político, como no caso da comunidade incendiada de “Pompeia”; ficção científica em “Blogueirinha” e “Em busca da flor elétrica”; e assim por diante.

O fantástico, tal como se conhece, também pode ser visto aqui e ali, como no conto “Sentimento oceânico”, em que um ser amorfo habita as entranhas do protagonista; em “O pote”, recipiente capaz de preservar as últimas palavras de um morto; ou nos homenzinhos e mulherezinhas responsáveis por fazer soarem as notas de “O piano”. Destaca-se, ainda, “O último degrau”, em que o non sense, o comportamento protocolar e o convívio social urbano se encontram na mesma fila, onde pessoas aguardam com alguma impaciência por algo que desconhecem, numa trama que lembra tanto Kafka quanto aqueles dois autores mencionados anteriormente.

Se essa miscelânea por vezes parece irregular, há características que aproximam os contos, tais como a escrita convidativa de Ivan, generoso com o leitor, permitindo a ele que usufrua das histórias sem dificuldades estilísticas, formais, linguísticas. Há também uma sexualidade que atravessa a maioria dos textos. E uma profanação de temas sacros – o destino da alma cristã, por exemplo – e tabus morais como o amor homoafetivo ou a traição no matrimônio.

Ivan Nery Cardoso nos oferece um universo de possibilidades narrativas, mostrando-se criativo e habilidoso na condução do leitor através de seus enredos incomuns, o que é sempre um desafio. O livro se mostra, assim, uma estreia promissora, que deixa vontade de saber como o autor seguirá ascendendo na literatura. Os caminhos estão aí.



1. No prefácio de Cães noturnos, Nelson de Oliveira afirma que “onde não há estranhamento não há arte”. De fato, seus textos evocam esse sentimento, que se traduz de maneiras variadas ao longo das histórias. O estranhamento é um recurso literário para você?

Definitivamente, sim! Só me atraem, verdadeiramente, as histórias que se pautam pelo estranhamento que seus mundos, suas tramas e suas personagens causam em nós. Não sou muito chegado ao chamado “realismo” na literatura que leio e que produzo, preferindo obras que não tentam recriar e oferecer respostas aos problemas e situações do nosso cotidiano, mas, sim, onde as personagens se encontram em um estado de confusão com a realidade (ou a irrealidade) ao seu redor, nos levando junto com eles. Também não gosto muito de contos que se fecham de forma redonda, com respostas a todas as questões abertas ao longo da narrativa. Prefiro histórias com finais abertos, que criam um espaço para os leitores teorizarem, imaginarem, colocarem um pouco de si ali dentro. Especialmente nos contos de Cães noturnos, quis escrever histórias que mexessem com as expectativas dos leitores, os levassem a lugares estranhos, não familiares (podemos pensar no conceito do Inquietante, de Freud), e os largassem lá (pense, por exemplo, no final de “Sementes”), sem uma resposta definitiva. Esse recurso do estranhamento os leva a terminar a história nas suas mentes, e, nesses finais inventados, espero que os leitores possam encontrar algo dentro de si para levarem de volta às suas realidades.

2. Seu livro traz um apanhado bastante heterogêneo de temas. Se à primeira vista isso pode sugerir certa fragilidade, como se os textos não se encontrassem, é também uma amostra consistente de sua criatividade. Como você vê esse conjunto reunido em um único volume? Como foi escrevê-los e selecioná-los?

A escrita desses contos se deu de forma bastante difusa, geralmente durante o bloqueio criativo que experimentei na escrita de outros projetos (que seguem não finalizados). Muitos deles surgiram em oficinas de escrita, enquanto outros vieram à tona em momentos muito improváveis, após uma amalgamação de referências em algum canto do meu inconsciente. A seleção é que foi a parte mais curiosa, para mim. Já estava tentando organizar um livro de contos há muito tempo, e acabei separando-os em duas obras: uma de contos mais longos, mais “sérios” e “profundos”, e uma de contos mais curtos, debochados, mais “descompromissados”, digamos assim. Um dia, percebi que os contos dos dois livros brincavam com uma mesma ideia de falta de sentido experienciada pelas personagens. Além disso, os contos dos dois livros eram, na verdade, versões dos mesmos assuntos, e cada história de um deles possuía uma contraparte no outro. A partir disso, comecei a montar a ordem do livro que viria a ser o Cães noturnos, mas que, naquela época, possuía outro nome. Selecionei 20 contos que, no fim, exploravam 10 temas diferentes, e essa foi uma das partes mais divertidas da montagem do livro, pois descobri muito sobre o meu processo criativo.

3. O livro se divide em duas metades, cada uma com 10 contos. Mas a leitura se sucede sem grande solavanco entre elas. Isso já constava em seu projeto original ou foi uma decisão posterior, talvez já durante o trabalho de edição?

A ordenação dos contos foi o que transformou o Cães noturnos no livro que ele é, e isso veio do processo que descrevi na resposta à pergunta anterior. O que fiz, no livro, foi separar os contos em duas partes que atuam como versões espelhadas uma da outra. Isso pode ficar mais claro no caso do primeiro e do último conto, que funcionam como uma pergunta e uma resposta, mas pode ser observado em todos os outros: o segundo se relaciona com o penúltimo, o terceiro como antepenúltimo, e assim por diante, até o momento em que uma termina e a outra começa. Acho que isso pode contribuir para essa sensação fluida de leitura que você comentou, pois há um fio condutor que leva os leitores do começo até o fim do livro, fechando um círculo. Ainda não tenho relatos de pessoas que tenham lido os contos em outra ordem, então não sei se isso afeta a experiência de leitura. Durante o processo de edição houve um trabalho mais no texto, e não tanto na ordem dos contos, apesar de eu ter tirado um conto que não estava muito amadurecido e colocado “O último degrau” no lugar, pois o julgava mais pertinente à obra como um todo.

4. Há uma sexualidade eminente na maioria dos contos de Cães noturnos, e chamam a atenção os relacionamentos homoafetivos, apresentados sem que seja esse o conflito do conto, o que me parece um feito importante sobre a presença do assunto na literatura. Quer dizer, os homossexuais são personagens comuns, vivendo aventuras que não têm necessariamente a ver com a sua sexualidade. Você pode comentar essa escolha?

Apesar de trabalhar com o estranhamento nas minhas histórias, eu não queria que a sexualidade fosse um fator contribuinte para essa sensação, mas sim, um assunto normalizado ao longo do livro. As personagens são quem são e se relacionam como se relacionam. Se isso afeta suas narrativas de alguma forma, não é por conta dos gêneros aos quais são atraídos, mas por conta de seus próprios conflitos internos e de como lidam com eles. O que eu desejo que cause um estranhamento nos leitores é a situação que as personagens estão vivendo, a realidade ao seu redor, seja ela convidativa ou não.

terça-feira, 30 de maio de 2023

OS FILHOS DA PÁTRIA ARRASADA

Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a pátria que os pariu.

“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.”
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)

A disputa entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho


Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?

Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.

Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.

Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.

No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.

1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.

2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.

3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.

4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.


O livro:
Br2466 ou a pátria que os pariu
Autor: Nélio Silzantov
Editora: Penalux
Ano: 2022
Clique para saber mais

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

EM CAMPINAS OU EM CARTAGO, A UNIVERSALIDADE É UMA ABSTRAÇÃO

Na entrevista a seguir, o escritor Fábio Mariano fala sobre sua novela Habsburgo, que apresenta uma trama de relações entre o próximo e o distante.

Habsburgo (Editora Patuá, 2019), de Fábio Mariano, é uma história de relações entre humanos, como muitas. Porém, diferente da maioria, traz como panos de fundo a vida universitária e o mercado de arte. Vemos os personagens Carlos e Coca Munhoz se conhecerem quando ainda são estudantes e desenvolverem uma amizade permeada por conflitos, mal-entendidos e mútua admiração. Coca, agenciado pelo companheiro, acaba por se tornar um artista plástico de carreira internacional, e o círculo de pessoas ao seu redor deixa a trama cada vez mais complexa. 

Fábio Mariano usa recursos narrativos para acentuar isso. Desde o flashback – praticamente a história toda é contada por Carlos durante o encontro com uma amiga num café – ao anacronismo e à sobreposição de espaços – Brasil e República Tcheca se confundem, assim como épocas distintas, de modo que Chopin, Campinas, pizzas e pieroguis, entre outras referências culturais se misturam, criando a estranha sensação de que algo se deslocou no tempo e no espaço.

Presos nessa rede, os personagens buscam formas de escapar. Quando nos damos conta, fomos capturados também, e seguimos com o livro aberto até que as páginas se esgotem.

Clique aqui para acessar o livro no site da editora Patuá


1. Em Habsburgo, Campinas e Cartago são coincidentes. Ouve-se Chopin como uma espécie de hit do momento, há um sentimento de que tudo foi realocado no tempo e no espaço. Identificamos algo familiar naquilo que parece estranho, tais como hábitos estrangeiros, receitas culinárias, nomes de lugares etc. Esse recurso indica certa universalidade das relações humanas, assim como de afinidades culturais, trânsitos, atravessamentos e influências em um mundo “globalizado”? Você teve que pesquisar referências para enriquecer o livro?

Eduardo, antes de mais nada, queria agradecer pelo convite e pela leitura atenta e cuidadosa do livro, que se revela nas perguntas complexas e interessantes que você coloca. Vou começar respondendo à questão da sobreposição entre Cartago e Campinas, porque Cartago é o meu universo desde o primeiro livro, O gelo dos destroieres, e atravessa os contos esparsos que publiquei, e também o terceiro livro, Ruído branco. Meu projeto literário sempre teve a ver com a criação dessa cidade, desse universo ficcional que dialogasse com Campinas, com esse paradoxo que é uma cidade “grande do interior”, a capital frustrada, o lugar onde as coisas abrem e depois fecham, onde existem sempre a noção de um potencial não realizado, como se fosse uma maldição. Ao mesmo tempo, Campinas é uma cidade em que, se você procurar, encontra coisas muito únicas, muito particulares. Eu me lembro, quando estudava russo, de procurar gramáticas nos sebos e encontrar uma gramática do russo em espanhol. Aquilo tem uma história, sabe, alguém que era falante nativo de espanhol e estava aprendendo russo, ou que era professor de russo e tinha alunos que falavam espanhol, existe uma história única naquilo. É uma cidade com uma universidade enorme, cheia de pessoas de todos os lados que vieram parar aqui, que ficaram. Eu nasci em São Paulo e vim para cá, e cresci sempre cercado de pessoas que não eram daqui; nesse sentido é mesmo uma cidade, um entrecruzamento de rotas onde as pessoas vão ficando. Por isso, em parte, Cartago é atravessada por pessoas de diferentes lugares – porque essas pessoas fundam restaurantes, abrem lojas, se empregam no serviço público, a vida inteira eu estive rodeado dessas pessoas, que vinham de outro lugar. Quanto às referências, acho que é importante dizer que esse livro nasce de uma pesquisa muito específica sobre as relações entre professor e aluno e, ao mesmo tempo, sobre o gênero novela. Antes de escrevê-lo, eu cursei uma disciplina na universidade que era justamente sobre a relação professor-aluno na literatura, e aquilo me marcou. Coincidência ou não, vários dos autores eram nascidos no antigo império austro-húngaro, o império dos Habsburgo. Eu sou fascinado por esse império justamente por ele ter sido, numa época de nacionalismos extremados, um império multinacional. Essa diversidade faz com que os pontos de vista diferentes que existem ali sejam muito enriquecedores. Acho que é o Eric Hobsbawm que fala (mas posso estar enganado nessa referência) que Sarajevo abre e fecha o século XX, e o estouro da primeira guerra mundial, ali, é de fato o fim de muita coisa, e isso me fascinava e fascina ainda. Então, ao mesmo tempo em que existiu uma pesquisa muito grande sobre o império, e aí sobre as filiações, as diferentes nacionalidades que o compunham e os diferentes interesses que o envolviam, todos eles pincelados no livro, há um interesse meu de longa data pelas produções culturais dele que é anterior. Eu escrevi o livro quase todo à mão, no primeiro rascunho, ouvindo o quarteto de cordas do Janácek “Sonata a Kreutzer”, que eu tinha ouvido ao vivo num espaço cultural aqui de Campinas uns anos antes e que tinha me deixado obcecado. Então, nesse sentido específico das referências culturais, eu não pesquisei diretamente para o livro – elas foram se encaixando naturalmente, em função de uma pesquisa anterior e mais extensa sobre o império dos Habsburgo.

2. A história aborda certos aspectos da produção, da circulação e do comércio de arte, e assim ajuda a desmistificar um tema que ainda hoje carrega certa aura. Você tem familiaridade com o assunto? De onde vem esse interesse e o que o levou a incluí-lo em Habsburgo?

A origem desse livro é um conto fracassado. O Coca Munhoz aparece, pela primeira vez, em O gelo dos destroieres, numa cena que é contada de um ponto de vista que não é o dele (é como se o conto fosse o negativo fotográfico dessa novela). E desde então eu tentava escrever um conto sobre o Coca, que teve uns quatro rascunhos, mas que não dava certo. Foi na disciplina que mencionei, sobre a relação professor-aluno, que a coisa se encaixou na minha cabeça; foi ali que eu achei uma forma. Ainda assim, eu escrevi quatro começos diferentes, em terceira pessoa primeiro, depois em primeira com o Coca, até achar finalmente a voz do Carlos. Porque isso para mim era importante – não falar desse mundo da arte com a propriedade de quem o viveu. Escolher o Carlos como narrador coloca a distância do espectador; por mais que seja um crítico, ele nunca consegue de fato adentrar o processo de criação. Eu pessoalmente não conheço nada do comércio de arte, então também é algo que fui indagando e pesquisando, mas não pelos detalhes, e sim para poder ambientar essa história. Eu queria trabalhar com um artista plástico porque, na verdade, é a arte mais distante de mim, e é uma das minhas grandes frustrações. Eu já tentei, e eu não consigo desenhar, pintar, esculpir, nada; não consigo ter a mínima habilidade em nada disso. Então, o processo criativo, que para mim na literatura é muito claro, na música faz sentido, já que eu toco instrumentos e já compus, mas nas artes visuais é um mistério total. Se você não domina a técnica, como é que você faz para saber as suas potencialidades de criação, as suas possibilidades, o que você consegue dizer e fazer? Então, a escolha do Carlos como narrador e o fato de ela ter destravado essa história tem a ver com conseguir achar um ponto de vista para falar que não fosse de um profundo conhecedor. Agora, quanto à dinâmica do mercado, a questão do assédio, os segredos, as informações privilegiadas, para mim isso é a marca de qualquer mercado, e esse glamour que recobre é uma máscara que, de fato, mistifica. Isso acaba dando uma espécie de validação, de salvo-conduto, para que pessoas reconhecidas como “gênios” tenham licença para ter comportamentos abusivos, violentos, destrutivos, o que é um absurdo. Por isso, também, eu quis explorar um pouco as ramificações desses comportamentos, os impactos, as marcas que não passam.

3. O mesmo vale para o ambiente universitário, tanto em relação ao ensino quando às pesquisas científicas. Sei que você tem uma afinidade particular com isso. De que maneira sua experiência pessoal atravessou o enredo do livro?

Uma das maneiras de entender esse livro, para mim, é uma grande homenagem à universidade onde me formei, a Unicamp, uma universidade que representa tudo o que eu quero e valorizo no ensino superior – um ensino público, gratuito, de qualidade e que se torne cada vez mais democrático e acessível. Algo que está em risco no Brasil há um bom tempo, e que temos que lutar para manter. De certa maneira, a vida do Carlos é tão atrelada a dois polos, o Coca e a universidade, que ele só narra isso. É como se nada mais existisse na vida dele – família, antecedentes, nada. É como se tudo começasse e terminasse na universidade. A Unicamp mudou a minha vida, e eu sou completamente ligado a ela – hoje, inclusive, profissionalmente, já que sou professor num dos colégios técnicos dela e faço o doutorado lá. Mas acho que, mais que tudo, o que eu procurei recriar ali foi o sentimento de estar na universidade, de atravessá-la, porque esse sentimento é algo que não encontrei na literatura brasileira ainda. A descrição das paisagens do distrito universitário e da própria universidade não é gratuita – ela é, também, uma representação e um diálogo com o que aconteceu com a Unicamp e o distrito da cidade onde ela fica, Barão Geraldo, entre 2007 e 2017, que eram minhas datas de referência naquele momento, e das descrições e histórias de um pouco antes. Mas na ficção a gente cria, transforma, faz alquimia com as referências, e há ali também pitadas de outros campi que eu conheci: a Unesp de Franca, a USP Pinheiros, a Uni Duisburg-Essen, onde estudei na Alemanha, e a Universidade do Mississippi, nos EUA. É engraçado que a relação com o livro é invertida – hoje, meu doutorado é sobre o academic novel americano, os romances que se passam na universidade e têm como personagens principais os docentes. Quando escrevi Habsburgo, eu ainda não fazia esse doutorado; em certo sentido, foi o livro que me levou ao doutorado e à pesquisa que faço hoje. O livro atravessou a minha experiência depois de minha experiência ter atravessado o livro. 

4. A história de Habsburgo parte da amizade do protagonista Carlos e de seu amigo artista Coca Munhoz, que se conhecem durante a graduação, e segue até o momento em que ambos têm carreiras consolidadas. Ao longo desse tempo, novos personagens aparecem e deixam tudo mais complicado. São abordados temas como as relações entre professor e aluno, amizades que se desfazem, jogo de interesses, assédios de vários tipos, contatos internacionais, passado e presente, vivos e mortos, enfim, apresenta-se uma circularidade da qual não se escapa e que aponta para algo maior, como a própria história da humanidade, que de alguma maneira jamais deixa de se repetir. Você tinha essa pretensão ao escrever o livro?

Com certeza. Se por um lado é um livro que tenta recriar um ambiente específico e um sentimento específico dentro de determinadas estruturas, pensar a partir da universidade e da trajetória de uma carreira docente, ele é também um livro que aponta, sempre, para algo que extrapola aquele ambiente. A gente costuma se referir a essas questões como universais, mas elas só acontecem dentro de determinadas configurações, o universal é sempre uma abstração. As amizades só acontecem dentro de uma certa configuração – a universidade, o bairro, a rua, as cartas, as redes sociais, e isso muda, cria especificidades, possibilidades diferentes. Mas para mim essas estruturas serviam justamente para que eu pudesse explorar questões, para que eu pudesse olhar para a humanidade. O título e a sinopse do livro não combinam muito – mas os detalhes todos do livro apontam para o título, e para um momento específico, para o fim do império dos Habsburgo, o momento de crise, o momento no qual as contradições dentro daquela panela de pressão que o era território austro-húngaro explodiram. Ali, não foi só um império que se desfez, foi uma configuração do mundo. Então, o que eu queria era explorar essas complexidades, não numa chave alegórica, mas de diálogo mesmo com as referências, uma espécie de montagem entre o livro e suas referências para provocar o leitor a fazer uma aproximação que chega a parecer um convite indevido, mas que teima, insiste, reaparece. Esses temas, a fundo, são a espinha dorsal do livro, o que não é dizer que o enredo é menos importante, porque é o enredo que permite a relação entre todos os temas, mas é um pouco como o André Malraux fala sobre o Faulkner: parece que ele cria primeiro as situações para depois imaginar os personagens nelas. Eu tinha esses temas todos em mim, mas precisava de um enredo e de uma voz, até que encontrei o Carlos.

5. A novela Habsburgo é seu segundo livro (o primeiro foi O gelo dos destroieres, de contos, publicado em 2018). Depois você publicou Ruído branco, também de contos, em 2021. Todos os três pela editora Patuá. Está trabalhando em novos projetos atualmente? O que vem por aí?

A história do Ruído branco é curiosa. Ele foi publicado numa parceria entre a Patuá e a Ofícios Terrestres, editora independente aqui de Campinas, do Gabriel Morais Medeiros, que é um baita poeta e um amigo de muitos e muitos anos. O livro foi contemplado pelo ProAC de 2019, e era para ter saído em 2020; ele até saiu, mas o projeto envolvia uma turnê de lançamentos pelo interior de São Paulo, e mais várias ações que tiveram que ser remanejadas por conta da pandemia. Acho que eu não consegui escrever sobre como a pandemia afetou o cotidiano de um personagem em parte porque ela afetou o meu projeto literário daquele momento – e aí, é estranho, mas de uma certa forma acho que a minha energia para pensar a relação pandemia-literatura ficou confinada nessa reconfiguração do projeto. E quem me apontou uma saída para isso foi justamente o Gabriel, quando me ofereceu a possibilidade de traduzir um poeta alemão chamado Paul Boldt. Saiu uma plaquete no ano passado, com quatro poemas, que integrou a coleção de plaquetes da Ofícios Terrestres, e em breve (estamos calculando para setembro ou outubro) deve sair a versão que tem 21 dos 84 poemas deixados pelo Boldt (é a primeira tradução dele no Brasil, eu espero que outros tradutores e estudiosos se interessem e mergulhem, traduzam, retraduzam!). Além disso, tenho um projeto de contos para o ano que vem, um projeto que vai se materializar e que é uma parceria com outros dois escritores que admiro muito. E eu ainda tenho outros projetos que vão avançando, mas a passos mais lentos; a verdade é que eu comecei a escrever os contos de O gelo dos destroieres lá em 2012, como um estudo para o ambiente e possíveis personagens de um romance. E o caderno de anotações para esse romance se desdobrou, se transformou em outros projetos, mas o núcleo dele também continua ativo. O que posso dizer com certeza é que, seja em que formato for, Cartago vai continuar sendo o cenário da minha ficção. E que vêm mais histórias de Cartago por aí!

terça-feira, 16 de novembro de 2021

A RAZÃO DE BEATRIZ MILHAZES

O diamante (2002), de Beatriz Milhazes

Me surpreendo quando Beatriz Milhazes fala sobre a importância da razão em seu trabalho artístico, que sempre me pareceu fundamentalmente sensível. “Existe uma geometria por trás, embora minha pintura não possa se resumir a ela”, explica. Esse fascínio pelo aspecto racional tem origem em seu primeiro emprego como professora num colégio Montessori, que a ajudou a desenvolver o raciocínio sobre o próprio fazer. A ponto de ela afirmar que seu trabalho trata, sobretudo, de processos. E o que seriam eles? Técnicas, como por exemplo a de monotransfer, que desenvolveu pesquisando materiais e maneiras de aplicar a tinta – na prática, são monotipias feitas com tinta acrílica numa espécie de filme plástico, que Beatriz depois gruda na tela, construindo a imagem sem esboços preparatórios.

Outro dos seus processos de criação seria os desafios que ela se propõe. “A cada período, quero acrescentar novos elementos e preciso, assim, lidar com sua presença na imagem”, diz. Rendas, flores, arabescos, vestígios barrocos, crochês, folhagens, retalhos, frutas. Pergunto se ela tem a preocupação de desenvolver uma “visualidade brasileira”, arriscando afirmar uma identidade nacional. Beatriz gosta muito de Tarsila do Amaral e da nossa arte popular, que estão entre as suas principais referências, junto com o colorido de Matisse e o pensamento sistemático de Mondrian. Ela é também uma das nossas artistas mais conhecidas e valorizadas no exterior, o que sem dúvida traz indagações sobre a sua terra natal. “Minha origem me torna profundamente relacionada com este lugar”, comenta; e conclui que “não adianta aplicar aqui um aprendizado estrangeiro porque ele sempre será de certo modo incompatível; essa é a lição deixada por nossos modernistas”.

Beatriz Milhazes produz uma visualidade autêntica, que escapa dos estereótipos ao mesmo tempo em que valoriza o que é próprio da nossa cultura. Sem receio de se misturar ao tradicional e ao decorativo, ela atualiza os elementos que busca nesses territórios. “Através da arte decorativa é possível contar uma história da humanidade”, justifica. “O trabalho plástico obriga o artista a se haver com essa história, a elaborar um pensamento e a inventar com isso algo seu”.

Suas cores vêm dos tecidos do carnaval brasileiro, assim como o movimento e a alegria. Em 1995, quando a artista deixou de usar uma cola de tom ocre – por sugestão de técnicos do museu norte-americano onde expunha –, suas pinturas ganharam uma vivacidade contagiante. “A cor tem relação com a vida”, e com essa crença Beatriz estabelece um vínculo especial entre as pinturas e a realidade nossa de cada dia. Está aí aquela sensibilidade que extravasa a geometria e que sem dúvida dialoga com o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, com a Roda dos Prazeres de Lygia Pape, com os Objetos Relacionais de Lygia Clark, artistas de geração anterior que também partiram de uma racionalidade – a concretista, no caso – e foram além.

Benguelé (2020), de Beatriz Milhazes

Nossos olhos ficam encantados diante de suas pinturas. Existe nelas uma beleza, mas também um movimento incessante, rodopios, reviravoltas; um encantamento mágico, difícil de localizar, tamanha a sua complexidade. Nada é simples e muito menos pacífico. “Quero uma obra que ofereça uma possibilidade de vertigem”, explica ela. “Uma estridência, o contraste das disputas”. Em suas obras há embates por espaços, intensidades, atenção; tensionamento próprio daquilo que é vivo e que não se deixa calar.

“Até mesmo o meio cultural pode ser fascista em relação a ideias e fazeres. Liberdade é fundamental em todos os lugares”, afirma a artista, que voltou às origens de docente ao oferecer atividades para crianças como parte do programa educativo de sua última exposição no MASP. Oportunidade de defender a liberdade experimentada desde a infância, quando desenhava muito. Mais tarde, decepcionada com a faculdade de jornalismo, contou com o incentivo da mãe, professora de História da Arte, ao se inscrever num curso de verão da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro.

Revendo sua trajetória, ela destaca a importância do aprendizado com o educador britânico Charles Watson. “Achei desafiante porque não entendia nada do que ele falava”. Essa confissão diz muito sobre a ousadia de sua personalidade e sua obra, cujo ponto de virada aconteceu no Salão Nacional da Funarte, em 1983. A ocasião lhe rendeu um convite para participar, ainda muito jovem, da famosa exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada no ano seguinte.

Atualmente, ganhando mercados na Ásia depois de se consolidar nas Américas e na Europa, a artista tem repensado as narrativas que acompanham sua obra pictórica. “Os chineses, por exemplo, têm como referência outra história da arte, não sabem o que se passou até chegar a minha geração”, explica. “Eles enxergam meu trabalho daqui para frente”.

De todo modo, Beatriz se interessa por algo capaz de sensibilizar qualquer cultura: o tracejar humano, a manufatura, o rastro de quem produz objetos estéticos. É isso que se propõe investigar. Apesar de todos os elementos figurativos que apresenta, ela se considera uma artista abstrata. “O pensamento é abstrato”, diz, mais uma vez se referindo à implicação geométrica que estrutura suas composições. Passados meses de elaboração, a pintura ganha camadas, e o espectador dificilmente consegue identificar nelas algum resquício da racionalidade que a originou. E tudo bem, não é necessário demonstrar, “o trabalho de arte visual deve se sustentar sem discursos”.

Quero saber dos títulos, que são curiosos. “Eles vêm por último e são muito importantes. Devem abrir as possibilidades de apreensão”. Não à toa, Beatriz dedica a eles um tanto de criatividade, assim como ao restante de sua obra. Criatividade, sensibilidade e, quem diria, alguma razão.

terça-feira, 25 de maio de 2021

UM ANIMAL QUE FALA (E ÀS VEZES OUVE)

Veja mais sobre o livro no site da editora Moinhos

Quais são os limites da linguagem humana? Ainda é possível acessar a animalidade que nos habita? Quanto conhecemos sobre os animais e como a escrita de ficção pode contribuir nisso? O escritor e crítico Fernando Sousa Andrade me convidou para falar sobre O belo e a besta, livro composto por pequenos contos, poemas e ilustrações. Reproduzo a seguir essa ótima conversa, publicada originalmente no site Literatura & Fechadura.

1. Ao entrar num parque, temos regiões, seções, placas, sinalizações para os caminhos. Quais são eles em O Belo e a besta?
O livro propõe esse passeio por uma espécie de jardim zoológico. Mas várias lógicas se invertem, inclusive a do percurso pré-determinado. Os caminhos, as regiões do mapa, as sinalizações estão todas colocadas para o visitante se perder e, com sorte, vivenciar uma experiência diferente do espetáculo convencional. Por meio dessa errância, meu desejo era que o leitor perdesse inclusive algumas noções da própria humanidade e pudesse se reencontrar com certa animalidade sua. Assim, tentei criar meios de desfazer a ideia do “eu aqui e um outro acolá” que temos no zoológico, de modo que o leitor pudesse estranhar a si mesmo, talvez encontrar algum outro ser dentro desse “eu”. Isso feito com humor, às vezes bom, outras vezes nem tanto, num “zooilógico”.

2. Na sua escrita, o poder da sugestão é muito grande. Como foi esmiuçar ideias sobre animalidade sem, no entanto, fechar qualquer tipo de conclusão ou desfecho?
Eu tentei desconstruir algumas ideias pré-concebidas que vão sendo embutidas em nós desde pequenos, que nos formam e nos conformam a respeito da animalidade. São ideias sobre a personalidade de animais, por exemplo, como dizer que a cobra é traiçoeira, a raposa é esperta, a coruja é sábia etc. Boa parte delas estão postas desde as antigas fábulas gregas, de milênios atrás. Há outras ideias mais recentes, com a de o cachorro ser amigo do homem enquanto o aedes aegypti é inimigo, a natureza ser algo exterior a nós, enfim, essas concepções que só falam sobre nós mesmos e sobre como projetamos nossa humanidade nos outros animais. Fui tateando isso, tentando me libertar no sentido conceitual e na linguagem, que também pré-determina os nossos entendimentos. Na medida em que o leitor consegue escapar também, os significados ficam suspensos e, assim, o desfecho permanece aberto.

3. A linguagem parece andar no meio desta coexistência entre bichos e gentes. Temos frases que você coleta na loja de souvenires do parque que já estão no senso comum da vida cotidiana. Você acha que linguagem entre bichos e humanos é tão normativa a ponto de criar uma genealogia da vida em comum, aqui pensando nos animais domésticos? Disserte um pouco.
A linguagem muitas vezes é entendida como o grande abismo entre humanos e outros animais. O que parece libertário nessa capacidade de falar é, em certa medida, uma prisão. Quer dizer, não são aqueles animais que se encontraram limitados a um mundo sem a linguagem falada dos humanos; nós é que acabamos por determinar a maior parte da nossa experiência aos signos linguísticos, às redes de sentido semântico, àquilo que pode ser racionalizado e verbalizado. O mundo é muito maior e mais complexo do que isso; uma grande dimensão da vida simplesmente não cabe em palavras. Contudo, raras vezes nos permitimos escapar dos limites do discurso e vivenciar algo que os outros animais têm a todo instante, pois somos educados a permanecer sãos e salvos nesse terreno da comunicação, da lógica, do pensamento esclarecido. Esse é um ponto que aparece sugerido em alguns textos de O belo e a besta, não como tese, mas como provocação, como piada. Outro ponto é a loja de suvenires do parque, que você mencionou. Ali estão colecionadas uma série de expressões que mostram como os animais fazem parte da nossa língua: pé de cabra, espírito de porco, bico do corvo, conversa para boi dormir, bode expiatório etc. Foi divertido lembrar delas, que por sua vez mostram a complexidade do português, rico em associações e imaginários, capaz de ir muito além do sentido imediato. Temos aí uma espécie de paradoxo que me interessava manter e atiçar, em vez de propor qualquer resolução.

4. Por que os animais se prestam também ao palavrão, ao efeito pejorativo de valor? De onde vem esta relação entre bichos e seu valor para uma ação humana?
Os animais do livro dizem palavrões porque são personagens inventados por um humano que deseja falar com outros humanos. No fim, são sempre criações feitas à nossa imagem e semelhança, e por mais desconstruídas que se queira, elas ainda estão a escancarar nossa incapacidade de acessar grande parte da animalidade que habita em nós. Essa incapacidade, creio, também podemos chamar de humanidade. Sem querer que humanidade seja pior ou melhor do que animalidade. Ambas coexistem à sua maneira. E hoje me parece que a humanidade é mesmo uma pequena parcela de tudo o que nossa animalidade pode vir a ser.

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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

[live] UTOPIAS: COMO IMAGINAR NOVOS MUSEUS?

Eu e minhas colegas do GEPPS receberemos o museólogo mineiro André Leandro Silva para uma conversa aberta com o tema Utopias: como imaginar novos museus?



André é autor de uma pesquisa sobre o trabalho artístico “A nova crítica”, de Frederico Morais, que propôs algumas utopias para o museu de arte pós-moderno.

Nesta conversa, queremos levantar pistas daquela produção para pensar: qual é o papel da utopia num museu? Como imaginar novos formatos e relações entre instituição, acervo e público? Como ativar a potência criativa e a crítica sensível dos museus a fim de rever suas formas de captura e ampliar acessos?


André Leandro Silva é bacharel em museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto e Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi eleito Conselheiro Municipal de Cultura em Belo Horizonte. Tem se dedicado a pensar a relação entre museus e acervos, considerando os agenciamentos provocados pelos acervos e as idealizações de museu neles encontradas.

segunda-feira, 30 de março de 2020

VÍRGULAS FORA DO LUGAR, SENTIDOS FORA DE CENTRO

Logaritmosentido (editora Penalux, 2019), de Fernando Andrade, é composto por textos curtos, com uma ou duas páginas, a maioria deles em prosa. São, entretanto, exigentes, vão se deixando decifrar aos poucos e, para isso, pedem para ser lidos e relidos, buscando-se sentidos por meio de uma lógica que talvez não exista. Eles apresentam uma operação claramente linguística; um desafio ao leitor. Percebi, vez ou outra, que me debruçava sobre o livro como se lesse um caça-palavras. À procura de quê? Fiquei intrigado com inúmeras questões pontuais, mas para a entrevista a seguir mantive um plano mais geral, de modo que não nos prolongássemos demais e pudéssemos apresentar, a quem ainda não leu, uma primeira visão da obra.

1) Desde o título está anunciado o tensionamento entre a lógica matemática e o sentido, talvez entre a racionalidade e a emoção. Nos textos do livro, por vezes uma explicação de tom científico põe em jogo a própria ciência por trás das explicações. Como você entende essa relação entre a ciência e a literatura?

Na verdade tento colocar em jogo a racionalidade de uma sentença (tese) que às vezes chamo-a de nucleada. Nos meus livros de poesia, também, tento trabalhar a noção de núcleos que detém verdades ontológicas, certezas definitivas. Meu jogo com a matemática vem desta durabilidade infinita dos conceitos fechados (nucleados) ou binários. Portanto meu deleite com a ciência é partir do sentido de suas exposições, teses, para através do jogo lúdico das palavras na linguagem, deslizar a imanência do signo decifrável, criar uma interface de comunicação não unilateral. Quando ludico a palavra do conto Mark onde o próprio destino do personagem é sua língua, crio um efeito potencial, exponencial, de saber até onde os sentidos podem ir na frente de uma narrativa polissêmica.

2) Os títulos das seções que compõem o livro poderiam ser os de uma tese: Sentido exponencial, Infância e normatividade, Corpo poético, Teatralizantes, Ensaio, Paródicos, Gêneros. Mas o conteúdo que os segue não quer provar nada, apenas degustar certo apuro linguístico em cenas de enredo enxuto. Essas seções, curtas, com cerca de dois ou três textos cada, dão ao livro uma estrutura singular. Por que optou por essa forma?

Trabalho sempre com seções nos livros. Na primeira parte, os sentidos se desdobram em vórtices, passam pela palavra ideia e potencializam significâncias como a pedra do conto Petrificante (pedra de crack, pedra preciosa). Tinha alguns contos com teor de fatos sobre a infância e via que eles passavam por alguma função de nomear-normatizar. Aí fui colocando temas. Claro que na maioria das vezes o conteúdo do livro desnormatiza-se de classificações e rótulos. Mas não queria fazer a linha de costura do livro inteiramente solta sem um fio de caminho. Por exemplo o conto-poema Colher de chá colher de sopa poderia entrar em duas seções, tanto Infância quanto a própria seção Gêneros; aliás, ele fala e é da questão entre prosa e poesia, da questão do gênero biológico masculino e feminino.

3) A pontuação, o jogo de palavras, a alternância de narradores, a sonoridade e o retorno a elementos dos próprios textos, entre outros recursos típicos da poesia, produzem certo estranhamento da língua — e dos sentidos — convencionais. Como se você inventasse outra língua ou farreasse com esta nossa, estranhando-a, querendo-a incomum. Buscando, talvez, um “sentido exponencial”, como diz o título da primeira seção. Como este livro se relaciona com os seus anteriores, todos, até então, de poesia?

Acho que este último se relaciona muito com meu anterior de poemas, pois ambos são divididos em seções, parecidas. A perpetuação da espécie (editora Penalux) também tem Infância e gêneros, e nos dois pude trabalhar a questão do hibridismo de gêneros, formatando o meu texto entre a prosa e a poesia. Uma psicanalista do Sul (Porto Alegre), ao ler A perpetuação da espécie, comentou num texto dirigido a mim que ela via vários pequenos romances dentro da condução dos poemas, como se dentro de um subtexto eu falasse ou contasse um tipo de enredo de um homem e sua história de casamento/separação. Já em outros mais antigos há esta brincadeira com o som das palavras, sua grafia, resvalando para polissemia dos sentidos.

4) Há uma experimentação marcante ao longo do Logaritmosentido, com torções e provocações sofisticadas, que exigem do leitor o desejo de vivenciar algo diferente, apreço pela forma e por narrações desconstruídas, que às vezes partem de um ponto desconhecido e nada revelam, sustentando o mistério. Aliás, existe mesmo em alguns dos seus logaritmos essa espécie de problema sem solução, cujo sentido falta ou falha? Ou será que, em vez de sentido, que está mais próximo das sensações e dos sentimentos, deveríamos dizer que quem falta são os significados?

Não há nos contos uma solução para uma investigação sobre a linguagem. Até pela minha dificuldade com coisas fechadas e binárias, tento ir criando status de suspenses e pequenos enfrentamentos linguísticos para dosar forma e conteúdo, mostrando que ao utilizar bem as palavras e seus sentidos, até ocultos, podemos aumentar a rede de interpretações ou signos sobre uma arte literária. Trump e seu trumpete é o olhar semiológico do signo com sons próximos, parecidos, que faz aproximar mundos distintos do jazz ao da política; faz Trump, que é conservador, pois nunca deixo de referencializar ele no conto, até crio um verbete para isso, ser um trompetista de jazz e morar no Rio, na Lapa. Talvez a significação esteja no olhar do leitor que olha para um texto que se move, se pluraliza, busca o outro na sua referência tacanha.

5) Há no livro uma variedade de temas como humor, sonhos, erotismo, política, religião, entre outros. Há também citações mais ou menos explícitas a outros livros, personalidades, produtos culturais. Enquanto lia, voltaram-me os Cronópios, de Julio Cortázar, e o surrealismo de Boris Vian, por exemplo. Daí aquele livro curtinho começou a se desdobrar, como se eu abrisse um origami para conhecer sua estrutura, e assim ele se alongou no tempo e no espaço, também se adensou — como a pedra que afunda no rio, naquele continho “Atire a primeira pedra”, que mais parece um provérbio chinês. Como é possível juntar isso tudo numa obra com somente 82 páginas?

Este olhar quase de editor não tive, risos. Foi acontecendo pelas valises de conteúdo que ia depositando no fundo das páginas. A escrita é um pouco inconsciente, levamos talvez uma ordem de séries, objetos, deslizes, imitações, até porque estes contos foram escritos não para um livro direto e único. Foram traçados por temas e motes no Clube da Leitura de que participo desde 2013, aqui no Rio, e cujo exercício é de ler motes que levamos e escrever sobre o mote escolhido como referência da noite. Depois vem a escrita de até duas páginas de um conto levemente inspirado no mote. Estas narrativas, portanto, foram bailadas neste percurso de 7 anos a maioria delas, dos 18 contos, 14 são do Clube da Leitura.

quinta-feira, 12 de março de 2020

ENTRE VISTAS: EDUARDO A. A. ALMEIDA E DIANTE DOS MEUS OLHOS

A entrevista abaixo foi concedida à escritora Renata Py e publicada originalmente em sua página no Medium. Você pode adquirir seu exemplar do romance Diante dos meus olhos na loja oficial da editora Reformatório, clicando aqui.



Eduardo, o seu romance apresenta uma trama psicológica entre pai e filho, com uma série de acontecimentos inusitados em uma viagem entre eles. O fato de eles terem passado aqueles momentos na vila militar me pareceu decisivo na relação, em muitos aspectos. Uma situação-limite que envolve lembranças, intimidade e até sobrevivência. Comente um pouco sobre isso.

A vila atua como uma catalizadora de emoções, trazendo à tona memórias, expectativas, traumas, desentendimentos, frustrações, enfim, todas essas experiências compartilhadas e de alguma maneira mal resolvidas entre o pai e o filho. Tudo que aguardava há tempos num estado de latência encontra na antiga vila o motivo para acontecer. O local se apresenta também como uma espécie de encruzilhada entre o passado e o futuro; é, portanto, decisivo em muitos sentidos para os dois personagens. Um mapa feito para que tudo se perca.

Como se deu a ideia de usar uma antiga vila militar?

A vila surgiu na medida em que eu criava o passado dos personagens e precisei de um local essencialmente estabelecido conforme a ordem. Era importante pelas contradições que produziria nas três gerações daquela família que se relacionariam com ela. O curioso é que eu, pretensamente, pensei ter inventado tudo aquilo. Foi durante uma conversa casual com um completo desconhecido que descobri que, de fato, aquele tipo de vila militar não apenas existiu como ainda resiste no Brasil, com as devidas adaptações trazidas pelo tempo. E que os conflitos entre os moradores não são tão diferentes do que imaginei para os personagens do livro.

Após a viagem, a relação deles ficou aparentemente definida, como se a partir daqueles acontecimentos eles não precisassem mais cumprir o protocolo da relação pai e filho, a ponto de o narrador só voltar ao encontro do pai em seu enterro. Você acha que, com a idade e obrigações da vida adulta, essa distância é mais comum do que imaginamos?

A tal viagem marcou uma passagem. Daí a importância de, no final, eles cruzarem o portal da vila, que funciona como um símbolo. A vida dos personagens mudou a partir daí, os conflitos ganharam outras formas e uma nova situação se criou. Eles continuaram a manter alguma relação, eu imagino, mas ela já foge da história que o livro pretende contar. Não acredito que o mesmo aconteça o tempo todo por aí, mas a vida adulta exige também uma passagem e um abandono dos pais para que o novo adulto encontre o seu lugar. Existe um distanciamento, uma transformação, uma necessidade de redesenhar as relações.

O livro nos prende, do começo ao fim, numa atmosfera psicológica muito interessante, incluindo acontecimentos que muitas vezes nos fazem perguntar se são meros devaneios ou realidades pra lá de inusitadas. Você acha que, quando se trata de memória, ela muitas vezes pode nos criar peças?

Desde o começo, me interessava questionar isso que a memória estabelece como uma espécie de fundação para o sujeito, quer dizer, como uma base firme sobre a qual podemos construir os nossos mundinhos particulares e coletivos. Não à toa a incerteza está presente o tempo todo na narrativa, não se pode acreditar sequer no que os olhos apresentam como real. Para mim, o passado é tão vivo quanto o presente e se modifica a todo instante. É fundamental preservar essa sua qualidade, de maneira que possamos sempre nos reinventar. Um passado cristalizado já não serve para nada, a não ser para sustentar dogmas, preconceitos, conservadorismos ingênuos e perigosos. Entrar no jogo impreciso da memória e deixar-se ludibriar é uma força, não uma fraqueza, como muitas vezes somos levados a crer.

Interessante o narrador, o filho, ter uma personalidade tão racional e ambientada no sistema externo. Geralmente, talvez por questões de geração, é o contrário que acontece. Por que você optou pelo filho ser o mais “conservador” da história?

Acho importante que a literatura ofereça outras perspectivas sobre as coisas e as pessoas. Um pai conservador com um filho revolucionário é um paradigma da humanidade. São também estereótipos por demais confortáveis para o escritor e para o leitor. Já basta disso em nosso dia a dia, nas rotulagens que predominam em nosso embate com o outro. A literatura tem aí uma potência crítica de mostrar que o conservador tem algo de revolucionário e o revolucionário verdadeiro, por sua vez, está a todo instante lutando com os seus próprios conservadorismos, entre tantos outros matizes que formam a complexidade do ser humano e que vão muito além dessa questão binária. Ainda que o personagem do filho, no romance, pareça mais conservador, ele não está satisfeito com isso, fica reafirmando-se como se precisasse se certificar de que as coisas permanecem no lugar, quando na verdade está vivendo uma revolução pessoal. Com o pai acontece o mesmo, mas num sentido inverso. E ambos precisam lidar com esses conflitos, pois são diferentes e ao mesmo tempo parecidos. Isso é literatura e é também a vida; elas extravasam a simplória polarização que hoje parece tão à flor da pele.

Sem querer dar spoiler, você pode comentar sobre os negativos que o pai achou na vila quando aparentemente encontrou um amigo fotógrafo?

Os negativos são mais um exemplo da imagem que não dá conta de apresentar a realidade. São a prova fatual de que os fatos são tendenciosos, manipuláveis, parciais. Essa cena é quase um resumo do romance, pois materializa as questões que antes talvez parecessem por demais metafísicas.

Os acrobatas encontrados na vila me pareceram personagens de Beckett, de tão inusitados, mas que, ao mesmo tempo, poderiam ser perfeitamente reais. Fale sobre eles. 

Sim, personagens de Beckett, sem dúvida. São esse tipo fantástico que, de tão real, faz com que a realidade se torne fantasiosa. Eles são contorcionistas, na verdade, justamente porque trazem essas torções e distorções na percepção dos personagens; têm uma função direta e outra parabólica.

O filho demonstra em muitos momentos uma frieza prática em relação a determinadas situações. Ele poderia ser quase um psicopata?

O filho tem um pragmatismo alimentado por uma subjetividade produtivista, muito parecido com o que vemos a todo instante no outro lado do balcão, em pé conosco no metrô, na propaganda de cursinho de vestibular. Hoje mesmo vi uma dessas notícias rápidas e desnecessárias que nos são lançadas até enquanto subimos cinco andares de elevador, como se todo o tempo precisássemos ser impactados, como se diz no meio marqueteiro. Ela falava sobre o prejuízo financeiro na Europa, que já não recebe turistas chineses por conta do coronavírus. Quer dizer, não bastasse a especulação, a espetacularização e a exploração engendradas com essa doença, lemos sobre um índice econômico que, no final, está associado a pânico, mortes, comoção social, sensibilidades das mais diversas, e que no entanto sequer nos afetam, exceto por nos colocar no mesmo buraco midiático. Acho um tanto perigoso esse tipo de diagnóstico das psiques. Se a frieza faz do filho um quase psicopata, vivemos todos num manicômio chamado civilização.

Uma das cenas que mais me despertaram curiosidade foi o encontro do narrador com a velha senhora. Você poderia falar mais sobre o impacto daquele encontro na vida dele? 

A velha senhora não é bem uma personagem, é uma entidade, como gosto de dizer. Está ali para evocar o tempo e as diferentes elaborações que ele exige; é quem alarga as noções do personagem, permitindo a ele novas possibilidades existenciais.

Eduardo, parabéns pelo livro. Extremamente intrigante e envolvente. Queremos saber sobre os novos projetos. Muito obrigada pela entrevista. Me despeço com uma última pergunta. Tem uma frase no livro que diz: “Aquelas lembranças pertenciam a ele. Eu teria me livrado delas na primeira oportunidade, só que não há mais como devolvê-las; nem como ignorá-las”. Você acha que a gente carrega o peso do passado dos nossos antepassados no nosso DNA ou realmente isso só seria possível se fosse vivenciado de alguma maneira, como foi o caso dos personagens de “Diante dos meus olhos”?

Somos ensinados a viver de determinado modo, a reproduzir maneiras e a programar inclusive as descobertas mais revolucionárias. Carregamos o passado como uma bagagem cultural que media nossas relações com todas as coisas. As plaquinhas de identificação, na vila, evocam essa mediação — de maneira alusiva, claro, mas elas põem em questão essa necessidade de legendar, proteger, explicar tudo com as palavras já conhecidas que nos foram ensinadas. Não acredito que seja possível fazer tábula rasa, nem devemos, mas é nossa tarefa colocar em questão essas formas que nos são dadas prontas, e nisso me parece que a literatura e as artes em geral são grandes aliadas. Somos, afinal, muito bem domesticados. Meu próximo livro, que deve sair no próximo semestre, investiga essa domesticação de maneira inusitada, num viés da animalidade e com um formato completamente diferente do romance: são textos curtos, humorados, que vêm provocar atrito entre a ideia de beleza e o abismo da nossa realidade diante da natureza.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO (PARTE 2)

Há pouco mais de um ano, José Nunes me convidou para falar sobre meu processo criativo, entre outros assuntos relacionados ao ofício.

Seu projeto, intitulado Como eu escrevo, tem agora um desdobramento: novas perguntas com o objetivo de compartilhar ideias e contribuir com os desafios de quem se põe a lidar com as palavras.

Deixo abaixo a segunda rodada de perguntas que respondi, publicadas originalmente junto com as anteriores na página do projeto: comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida

Ficou com curiosidade de ler os livros que menciono? Clique nos títulos para saber mais: Testemunho ocular (contos) e Diante dos meus olhos (romance).

Foto: Edi Rocha

11. Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Normalmente o projeto se forma a partir do que estou escrevendo, não é premeditado. Experimento formatos sem grandes pretensões, anoto ideias, escrevo alguns parágrafos. Um dia olho para aquele amontoado de coisas e percebo uma linha condutora, um interesse em comum, talvez. Foi o caso do Testemunho ocular, livro publicado em 2018 pela Lamparina Luminosa: eu tinha alguns contos e percebi que havia em todos eles uma inquietação de natureza similar. Comecei a retomar textos antigos, engavetados, e aquela inquietação também aparecia neles de uma maneira ou de outra sem que eu tivesse me dado conta disso até então. O conceito do livro surgiu daí. Para dar a forma que pretendia, acabei por editar alguns textos, escrever outros e criar um projeto editorial. Não gosto de pensar em meus livros como meras coletâneas; é preciso haver uma amarração, um conceito, um ponto central que possibilite outras camadas interpretativas.

O caso do Diante dos meus olhos, publicado no fim de 2019 pela Reformatório, não foi muito diferente. Comecei por tomar notas de um sonho, ainda de madrugada, porque eu não podia voltar a dormir e correr o risco de esquecê-lo. Na manhã seguinte, ainda sem saber bem a razão, percebi que a ideia tinha um potencial a ser explorado. Escrevi um pouco mais, o texto foi criando corpo, passou de uma cena curta a um conto longo. E não parava, era incontrolável. Segui nesse ritmo por bastante tempo, até ter em mãos um pequeno romance. Ele foi publicado dez anos depois do primeiro esboço.

Em meio a esses processos mais "espontâneos", por assim dizer, o difícil não escrever a primeira nem a última frase, mas identificá-las para que, entre elas, exista um projeto literário.

12. Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Eu não diria que prefiro assim, mas vários projetos acontecem ao mesmo tempo, é uma maluquice. Tenho trabalhado em tempo integral num escritório, escrevendo textos para outras pessoas e empresas. Também atuo como revisor e preparador de textos. Minhas criações pessoais muitas vezes são resolvidas na hora do almoço, no metrô, nos minutos em que minha filha dorme e eu consigo permanecer acordado, nas brechas dos finais de semana, entre os compromissos familiares e os afazeres de casa. Tenho escrito pouca literatura de ficção. Inclusive porque uma série de outras tarefas me convocam a todo instante, requisitando prioridade: as atividades do coletivo Discórdia (encontros, feiras, rodas de leitura e debate, cursos etc.) e do GEPPS - Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível, minha coluna no jornal Correio Popular, aulas, oficinas, pareceres, palestras, compromissos da academia (ainda tenho para resolver várias reminiscências do doutorado, que defendi em 2018). A literatura de ficção vai forçando espaço em meio a esse entulho todo, é uma sobrevivente. Fico muito agradecido por ela não desistir de mim. Mas, para ser mais concreto, organizo minha semana anotando as tarefas e compromissos numa agendinha de bolso, de papel mesmo. A meta é chegar até a página seguinte, de preferência ileso.

13. O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?

Não é que eu tenha de uma hora para outra decidido me dedicar à escrita, quer dizer, isso jamais ocorreu de forma tão dramática. Mas eu me lembro da primeira vez em que me assumi escritor, e nem faz tanto tempo assim. Foi há uns cinco ou seis anos, durante um curso sobre práticas artísticas comunitárias no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Eu deveria me apresentar para a turma e disse: meu nome é Eduardo, sou escritor. Uma amiga estava junto e, quando a aula terminou, veio falar comigo. Escritor é? Que vitória! Eu ainda gaguejava um tanto. Escrevia profissionalmente há mais ou menos quinze anos, mas até então me intitulava publicitário, redator, pesquisador. Nessa ocasião, eu tinha deixado a publicidade de lado, precisava assumir um "eu" que de fato me desse orgulho. Ainda assim demorei para dizer "escritor" em bom tom. Houve um dia, eu estava num cartório fazendo sabe-se lá o que, e o atendente preenchia um formulário. Ele perguntou: profissão? E eu disse. Ele tirou os olhos do papel e quis saber: é sério? Balancei a cabeça, afirmando que sim. Esse sujeito virou para os colegas e falou bem alto: gente, tem um escritor aqui! Foi bizarro, ninguém deu a mínima, mas o atendente estava animado. Imagino que tivesse os escritores em boa conta. Talvez seja esse o tipo de coisa que me motiva: produzir algum estranhamento no banal. Como dizia Michel Foucault, os textos são formas de inscrição no mundo. São meios de existência. Escrevo por muitos motivos, alguns ainda indiscerníveis, mas com certeza uma motivação é produzir essa inscrição que inquieta, que abre uma fenda na normalidade e chama atenção para algo que sempre esteve ali, mas nunca foi olhado por aquele ângulo. Escritores me motivam, artistas visuais, o teatro, filósofos, entre vários outros agentes do conhecimento que me provocam a pensar diferente, profanar verdades, manter a curiosidade viva.

14. Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Não me sinto muito à vontade com a ideia de ter um estilo próprio. Tenho, sim, interesses que vão se destacando pela recorrência. O maior deles talvez seja a questão da visualidade, já que o mundo que existe para cada um de nós quase sempre se resume naquilo que vemos, que se põe diante dos nossos olhos. E ele é tão ficcional quanto qualquer outro: são convenções, contextos culturais, perspectivas sociopolíticas etc. que produzem entendimentos sobre o mundo, no limite, inventados. A realidade é simplesmente imaginada. Daí eu acreditar que algumas imagens inusitadas, operando num sentido de deseducação do olhar, têm força estética e política capaz de produzir deslocamentos e sugerir outros pontos de vista. São capazes de dar a ver o que sempre esteve ali e até então não podíamos encarar. Isso não é um estilo propriamente dito. Na realidade, isso só acontece por meio de muitos atravessamentos, diferenciações, vertigens. Alguns escritores me ajudaram a trilhar esse caminho, sem dúvida. Mais do eles, foram livros específicos que me marcaram. O som e a fúria, de William Faulkner. O estrangeiro, de Albert Camus. A espuma dos dias, de Boris Vian. Bestiário, As armas secretas e Histórias de cronópios e de famas, do Cortázar. As cidades invisíveis, do Calvino. Na colônia penal, de Franz Kafka. Os contos de Murilo Rubião. Para fugir dos clássicos, cito ainda Pássaros na boca, de Samanta Schweblin. Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas. Li há pouco o Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, recém-Nobel de Literatura, e de fato é incrível, eu gostaria de escrever um pouco como ela, com toda aquela empatia, profundidade psicológica e riqueza de detalhes. E não foram apenas esses autores e livros, claro. Além de outros ficcionistas há todos aqueles da filosofia, das artes, da estética. Eu poderia continuar por muitas linhas.

15. Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?

As cidades invisíveis, de Italo Calvino, é um dos livros mais lindos que já li. Existe nele tanta poesia que transborda em aspectos sociais, políticos, afetivos. É daquelas leituras imprescindíveis. Sempre que o retomo é com um prazer singular, como se lesse um texto sagrado, capaz de falar por meio de simbologias com qualquer pessoa em qualquer lugar e em qualquer época.

O som e a fúria, de William Faulkner, foi um livro que me exigiu um grande esforço, e assim conquistou um lugar muito especial em minha bibliografia. Ele tem inúmeras camadas, preciosidades, lições de literatura. Mas o destaque fica com a capacidade de o autor "outrar-se", como costumo dizer na tentativa de explicar essa maneira como ele escreve numa espécie de devir outro (retardado, pobre, mulher, negro etc.). É sem dúvida uma obra de mestre.

Fiquei tentado a recomendar outro daqueles clássicos que citei na resposta anterior, mas acho importante lermos contemporâneos nossos que apresentam problemáticas urgentes. Nesse quesito, todos precisamos ler os poemas de Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, que usa um humor perspicaz para criar versos arrebatadores sobre feminilidade, condição da mulher, intolerância, entre vários outras questões. Seu livro é uma lindeza, impossível parar de ler e de, com ele, repensar toda essa realidade que construímos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA

O escritor Fernando Sousa Andrade me convidou para uma linda entrevista sobre meu romance Diante dos meus olhos (Editora Reformatório, 2019). Ela acaba de ser publicada na revista portuguesa InComunidade. Você também pode ler aqui:


Diante dos meus olhos tem tantas camadas, como pinceladas de tinta sobre um plano branco, e elas parecem que se mexem, sugerindo nuances novas e paletas policromáticas. Você levou três anos para fazer uma primeira versão, é isso? Como era seu trabalho de escrita ou reescrita durante esse tempo? É um romance em que o leitor imerge na história completamente. Como foi lapidá-lo?

Preciso dizer que você fez uma leitura muito especial do meu livro, que transparece na qualidade das perguntas. Fico lisonjeado e agradecido. Diante dos meus olhos foi sendo criado mais ou menos como você descreveu sua sensação de lê-lo: com pinceladas. Começou com um conto de quatro páginas, escrito na madrugada, logo que despertei de um sonho. Ali estavam esboçados o que viria a ser a vila militar onde a trama se passa e um ou dois personagens. Essa história continuou viva, pedindo para ser contada, e aos poucos desenvolvi o enredo. O conto curto passou a ser um conto longo, que depois ganhou corpo de romance. Cresceu demais, sofreu cortes; ao todo foram onze versões do livro realizadas durante uma década. Apesar disso, o enredo não teve mudanças drásticas, foi apenas se adensando no que diz respeito à psicologia dos personagens e aos pormenores da viagem que realizam. Com o processo pude conhecer melhor aquelas pessoas, o que me interessava na história, quais conflitos se apresentavam, qual deveria ser a linguagem e a forma mais adequadas para a narração. Eu queria obter essas nuances que não se deixam enrijecer nem capturar; que fossem complexas, ambíguas, paradoxais como o ser humano é e precisa ser compreendido — para além dos rótulos, das caixinhas, dos maniqueísmos etc. Parece que deu certo, pois outros leitores também me devolveram impressões semelhantes às suas, dizendo que ora sentiam apreço pelo pai e pelo filho, ora tinham raiva. Ainda assim eu não sabia bem o que tinha em mãos, muito menos o que fazer com o texto. Só tive coragem de buscar vias de publicá-lo quando ganhou menções honrosas no Programa Nascente USP 2015 e no Prêmio Sesc de Literatura em 2016, vários anos após o primeiro rascunho. Em 2019, o projeto foi selecionado num edital de publicação de livros promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Só então pôde chegar aos leitores.

2) Seu romance parece conter muitas pulsões que se veem na prática psicanalítica. O próprio enredo lida com projeções, relações entre o real e a fantasia, medos, luto. O narrador é carregado de afeto pelo pai, mas há sentidos ambivalentes no seu “narrar o pai”. A relação dos personagens parece colocar o romance numa espécie de suspensão, pois narrar é lembrar, mesmo que você escreva a partir do branco total (do esquecimento). E seu romance é tão alusivo à memória! Fale um pouco disso.

A memória é o tema principal do livro. E ela vem carregada de contradições entre as histórias de vida dos personagens, em especial a memória do filho, que narra o pai segundo o seu ponto de vista, a sua experiência, as suas angústias em relação a ele. O pai não tem direito de resposta; os papeis se invertem e ele acaba por se tornar uma espécie de criatura do filho. No fim das contas, não é assim que fazemos a história da humanidade, com os filhos narrando os pais, ou melhor, com as pessoas de hoje falando daquelas que já se foram? Mas há um paradoxo aí: fomos criados, educados, influenciados por nossos antepassados, que assim, por meio de nós, também conduzem a narrativa. No fundo, as questões que se colocavam para mim ao longo da escrita diziam respeito a como criamos essa realidade, que parece tão concreta, embora não seja mais do que uma invenção dentro de um contexto cultural. Os personagens tensionam esse fio, uma vez que a história se faz de memórias, e as memórias deles são elaborações de acontecimentos recentes ou muito antigos coexistindo meio misturados, indiscerníveis, que lutam para ter razão. A psicanálise atravessou o processo de criação do livro mais de uma vez. Tive meu primeiro contato com ela enquanto fazia as pesquisas para o mestrado em Estética e História da Arte, que coincidiram com a escrita de uma das versões iniciais do Diante dos meus olhos. Eu me debruçava sobre a Estruturação do self, trabalho derradeiro da artista brasileira Lygia Clark, ao qual ela dedicou seus últimos dez anos de vida e que se propunha como uma espécie de intervenção poético-terapêutica, por assim dizer. É um trabalho complexo, criado numa ambiguidade entre a arte e a clínica. Para me aproximar dele precisei conhecer um pouco da teoria psicanalítica, que é encantadora. Não parei mais. Li um tanto de Freud, Jung, Winnicott. Algo de Melanie Klein também, na medida em que a pesquisa requisitava. Em 2014 dei início ao doutorado, e por mais que relutasse tive que encarar alguns temas de Lacan, que me ajudaram a pensar essa relação entre real e ficção. Embora o livro não tenha um viés psicanalítico proposital, imaginei que essas aproximações logo surgiriam.

3) (Des)importar-se com a figura do pai, sua ação perene na vida, seu apego às imagens de uma infância na vila militar me fazem pensar como somos ainda uma projeção de quando fomos meninos, no caso do pai e filho. E como se no filho houvesse essas libações do corpo guardado e projetado à adultice. Isso é muito difícil de ser trabalhado no personagem-narrador?

O filho quer se diferenciar do pai para encontrar a si mesmo. Essa é uma questão-chave da existência humana, que tentamos explicar das maneiras mais diversas, entre elas a psicanalítica. Mas em um momento importante do romance o filho se dá conta de que, por mais que drene o sangue do pai de suas veias, seu corpo produzirá mais daquele mesmo sangue. Quer dizer, é uma desconexão impossível. Não importa o seu esforço em negá-lo e se afastar, o pai permanecerá seu ponto de referência; eles ainda estarão em relação. Eu queria que esse paradoxo e essa ambiguidade ajudassem a vermos as relações humanas de maneira mais complexa, mutante, impossível de determinar. Ao mesmo tempo acompanho meus amigos de infância envelhecendo e ficando cada vez mais parecidos com seus pais, os quais conheci com a idade que temos hoje. Essas histórias similares às do livro se contam a todo instante ao meu redor. Imagino que o leitor tenha aí um ponto em comum com o que se passa no Diante dos meus olhos.

4) A cena da velha na janela com a panela de pressão me chamou muito a atenção. O filho fica sozinho e há toda uma projeção cinematográfica sem o contato do pai, que se ausenta. Fale um pouco dessa cena.

Essa foi uma das primeiras cenas que imaginei, embora esteja mais perto do final do livro. Para mim, ela é uma espécie de contraponto à aparição anterior da velha — na janela da escola –, como se o público na plateia do teatro atravessasse o palco e chegasse às coxias. Na história da arte, até a irrupção do Modernismo, dizia-se que as pinturas são janelas para o mundo, ou seja, através delas é possível conhecer paisagens, objetos, gestos etc. No livro, a meu ver, essa cena que você mencionou sintetiza todo o embate entre real e ilusão vivenciado pelo personagem. É quando o problema se apresenta de fato, pois até então vinha apenas se sugerindo. E é o problema que ele carregará adiante. A panela de pressão marca essa ideia de tempo, e seus vapores tornam o ambiente nebuloso; mas apesar dessas evidências ela ainda é um mistério também para mim. Gostaria de saber o que está cozinhando, o que vai amolecendo em seu interior, desfazendo-se, talvez.

5) Eu tive certa visualização do seu romance com um filme chamado o Show de Truman. Passou pela sua cabeça esse filme enquanto estava escrevendo?

Esse filme foi bem marcante quando era mais jovem. Ajudou-me a pôr em crise meus afazeres de redator publicitário, que mal tinham se iniciado. Não me lembro de ter pensado nele, especificamente, enquanto escrevia o Diante dos meus olhos, mas sem dúvida a aproximação é plausível. Show de Truman também fala de desconstruir uma ilusão ao dar-se conta de que a realidade é criada como os cenários de um estúdio de cinema, embora naquele caso se trate de um espetáculo. Lembro-me de que, no filme, o personagem habita um reality show levado ao limite: o mundo acompanha cada etapa de sua vida, vivida desde o nascimento numa cidade cenográfica onde todos são atores. No final, quando percebe essa sua condição, ele abandona o espetáculo e se lança “no mundo real”. O que fico me perguntando, e isso sim tem a ver com meu livro, é: que mundo é este? Tem mesmo algo de real? Como se pode confiar?

6) Se fosse dar esse seu romance a alguém próximo e pedir um texto com comentários, quem você escolheria?

Tive o privilégio de receber algumas cartas de amigos que leram o livro e quiseram me escrever, algumas muito bonitas, escritas à mão, repletas de afeto. Uma delas me foi dada pela artista e terapeuta ocupacional Gisele D. Asanuma, que levou o livro para uma viagem e, enquanto lia, escreveu sobre as relações que estabelecia com os arredores, com as situações que encontrava pelo caminho, com reminiscências do passado, como se fosse se perdendo por aí com a ajuda desse mapa que escrevi justamente com esse propósito. Não sei se pediria a alguém para escrever sobre suas impressões de leitura porque um livro pode acessar lugares muito sensíveis, e o pedido talvez se tornasse invasivo. Mas sem dúvida um dos maiores prazeres em escrever é poder ouvir, depois, como cada leitor se deixou afetar pelo que leu. Essa troca é uma experiência incrível, que mexe bastante comigo, porque marca um momento em que o livro deixa de ser meu e ganha vida.

7) Diante dos meus olhos tem uma relação muito imagética com o cinema. A quem você entregaria seu livro para uma filmagem?

Eu tenho acompanhado pouco o cinema, o que é uma pena. Imagino que muitos diretores compartilhem comigo das mesmas questões sobre realidade e ilusão, uma vez que boa parte delas provém da força das imagens. Já tive oportunidade de ouvir Wim Wenders falar sobre o tema, acredito que o livro poderia interessá-lo, mas com certeza há outros cineastas talentosos que saberiam lidar com as indagações apresentadas ali a respeito do olhar, das memórias, das narrativas. Acredito também que, quando o livro muda de linguagem, torna-se uma nova obra, e tenho mais curiosidade para saber em que o transformariam do que desejo de controlar essa transformação. Prefiro que o cineasta trabalhe como preferir em seu campo de criação. O meu continua a ser a literatura.

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