Boa parte da obra de Angelo Venosa se apresenta em camadas. Quando tratamos de pintura, não é incomum pensar nas camadas de tinta que se sobrepõem para criar efeitos visuais. Porém, logo no início de sua carreira, esse artista optou por trabalhar com objetos, os quais, por convenção, chamaremos de esculturas, embora as técnicas que lhes dão forma sejam diferentes dos tradicionais entalhe e modelagem. E o que vemos é que suas esculturas são, em grande número, criadas a partir da junção de camadas de matéria. Algumas delas são visíveis: Angelo acumula superfícies planas estreitas de modo a construir um corpo substancioso, mais ou menos como fazemos quando empilhamos folhas de papel numa resma. Outras esculturas suas, todavia, têm camadas estruturais ocultadas debaixo de uma pele, como ele próprio diz ao rever peças da década de 1980. Elas podem ser acessadas em seu site. São produzidas como um corpo animal em que primeiro existem os ossos, depois a carne, depois a pele. Não vemos tudo isso que as constitui, mas está lá, tornando possível a visualidade da obra.
A questão estrutural é uma chave de leitura importante na arte de Angelo Venosa. Seu interesse nela é inegável. Desde os primeiros trabalhos, existe uma verdadeira engenharia de hastes e dobradiças sob as superfícies de tecido e gesso. Algo ali da cenografia aprendida com o pai, talvez? Cujo resultado ora lembra cadeias montanhosas, ora longos tentáculos negros; são assim difíceis de localizar num sentido mais exato, em especial porque lhes faltam títulos. Inclusive, raras são as peças intituladas pelo artista, que alegando certa dificuldade nisso acaba por não encerrar com palavras certos entendimentos que são da ordem da imagem, da matéria, do sensível. Entendimentos que não cabem em razões discursivas. Pois Angelo “sente desejo de forma, não de representação”, explica.
Aquela engenharia de que falávamos aponta também para a engenhosidade processual da sua criação, cujos métodos se desenvolvem junto com cada trabalho e, de maneira surpreendente, pouco se repetem, apesar de as camadas serem uma constante. Aliás, essas camadas talvez sejam materializações da sua maneira de pensar e de produzir conhecimento.
Amílcar de Castro, outro grande artista brasileiro, explorou poucos procedimentos ao longo de sua trajetória – apenas três, segundo o crítico Rodrigo Naves, que de maneira resumida seriam: cortar e dobrar; cortar e deslocar; e movimentos ininterruptos de pincel. Amílcar trabalhou basicamente com aço corten e tinta preta sobre tela ou papel. Com esses recursos limitados, criou uma obra que talvez só não seja reconhecida mundialmente como uma das mais importantes por questões geográficas, administrativas e, claro, financeiras, que o impactaram no incipiente mercado nacional do século passado. Sem me prolongar demais nisso, quero explicar que citei Amílcar de Castro como contraponto à imensa variedade de formas, dimensões e técnicas de Angelo Venosa. Variedade também de materiais nelas envolvida: sal, piche, bronze, chumbo, ossos, madeira, acrílico, sisal, vidro, tecido, tinta, aço etc. A lista é longa. Segundo o artista, as coisas têm muitas possibilidades de ser. E eu me pergunto: como então definir uma forma para o trabalho e, com ele pronto, permitir de continue a ser múltiplo?
“O grande barato é o caminho”, disse Angelo durante sua visita virtual ao grupo de discussão de arte contemporânea conduzido por Germana Monte-Mór, do qual tenho participado com muito prazer. Com isso, ele se referia aos desafios do próprio fazer artístico, que tanto o instigam. E à beleza poética do descobrimento e da invenção de soluções para os problemas que a obra apresenta. Mesmo que nos últimos anos tenha utilizado recursos digitais e impressoras 3D para desenvolver seus objetos, ainda é a perseguição da ideia durante o processo de criação que lhe interessa. Para isso, não basta ter a ideia e depois executá-la: tudo se faz consecutivamente. Seu objetivo não é a escultura; não é a ela que Angelo se dirige, ao menos não de forma tão consciente. Seu objetivo é a execução em si; o objeto artístico acaba por ser a consequência dessa busca pressentida, não premeditada. Um ponto sutil que faz toda a diferença.
Em suas palavras, “é seguir pelo cheiro algo que não se conhece muito bem”. Isso, aliado à sua curiosidade natural, o faz explorar um universo de possibilidades plásticas. Não tenho dúvidas de que Angelo produziu, junto com sua coleção de objetos, um riquíssimo estudo de meios, formas e matérias. Precisou aprender a lidar com tudo aquilo para realizar seus trabalhos artísticos. Afinal, recortar vidro é diferente de moldar aço, pregar madeira, engessar tecidos, fixar dentes em cera etc. Para cada ação é necessária uma dimensão de conhecimento e de experiência técnica, artesanal e conceitual.
Sem titubear, dou a isso o nome de pesquisa. Mas Angelo Venosa tem uma questão com o termo, que ele evita, argumentando: “eu me atiro sem muita clareza e vou fazendo arte. Um sujeito se afogando está fazendo pesquisa? Não, está tentando sobreviver”. Apesar da força dessa expressão, fiquei intrigado, para não dizer descrente. Não cabe aos artistas pesquisar? Angelo prefere deixar o termo com os cientistas. E essa “deixa” me sugeriu uma forma de compreendê-lo. Pois me parece que, assim como evita títulos para não localizar com precisão os significados dos seus objetos, ele prefere não se referir ao próprio processo de investigação como pesquisa para evitar que vejamos o conhecimento artístico tal qual o científico, e as descobertas da arte tais quais as da ciência. Pois, enquanto esta última se desenvolve por meios racionalizados que visam estabelecer uma ordem universal geral e necessária, a arte – ao menos a arte de Angelo Venosa – se faz por deambulações, acasos, erros, além de arriscada experiência e rigorosa dedicação, que acabam por estabelecer um objeto singular.