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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

QUEM VEM LÁ?


Criei o blog Arte Faz Parte para compartilhar na internet os textos que saíam na minha coluna, no caderno de cultura do Correio Popular. Isso faz quase 15 anos! Naquela época, o jornal era impresso, e somente os leitores do interior de São Paulo tinham acesso. Fiz o blog para meus amigos poderem ler também. 

Gostei de experimentar este formato, acabei publicando uma porção de outras coisas aqui, e o blog teve fases diversas (algumas mais maduras, outras meio embaraçosas). Nunca me preocupei com estabelecer diretrizes, ser coerente, responder a alguma expectativa de público. Não me lembro de já ter excluído publicações que agora considero irrelevantes. Até hoje, não sei quem o acessa e quem lê. 

Mantenho este espaço para ter um histórico do meu trabalho, para jogar garrafas no oceano, para eventualmente alguém encontrar um meio de me contatar. E, com alguma frequência, essas garrafas retornam. Pode ser um comentário, uma marcação em redes sociais, um sinal de fumaça 

Hoje, para minha surpresa, recebo um e-mail informando que o blog foi acessado 800 vezes em apenas um mês, a partir de pesquisas feitas no Google.

Não sei se isso é muito ou se é pouco, de acordo com parâmetros assim ou assados. Fato é que fiquei feliz por saber que reuni, neste espaço virtual, com passos de tartaruga, um conteúdo que ainda gera interesse.

Com o nascimento do meu segundo filho, no final de 2021, o blog passou um ano estagnado, assim como minha produção artística em geral. Mas o menino já está quase andando, e pretendo dar mais atenção ao Arte Faz Parte em 2023. Afinal, em breve o blog fará 18 anos e começará a responder por seus próprios atos. Vou curti-lo enquanto posso.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O QUE É A SUA OBRA DE ARTE?


Onde e como foi feita? Quanto tempo levou? Por que foram usados esses materiais, por que a técnica? A quem ela se destina? Por onde circula, onde está exposta? Do que ela trata; quais questões a mobilizam e quais ela agencia? Dialoga com alguém, apresenta referências específicas? Como ela se enquadra na sua trajetória artística? Já se falou algo a respeito disso tudo? 

No livro O que é um artista?, a escritora e socióloga Sarah Thornton entrevista “33 artistas em 3 atos”, conforme explica o título original em inglês, se traduzido ao pé da letra. No geral, são pessoas internacionalmente famosas e muito valorizadas pelo mercado, com vendas na casa dos milhões de dólares, alguns deles batendo centenas de milhões.

Evidente que se trata de um mundo bastante particular, que o livro faz parecer ainda mais restrito, como se existissem apenas aqueles artistas e que eles estivessem em todo lugar. Seja América, Europa ou Ásia, sejam as galerias de Manhattan, a Bienal de Veneza ou leilões em Dubai, Sarah encontra sempre os mesmos nomes, que encerram o escopo de sua pesquisa. E lá está ela, buscando definir a “persona” de cada artista, ou seja, a imagem e o discurso que o acompanham e que antecipam significados de seus trabalhos.

Sarah se interessa, especialmente, por isso que a celebridade artística tem de personalidade pública: um construto em larga medida ficcional e poderoso. De acordo com sua tese, “artistas não fazem apenas arte. Artistas criam e preservam mitos que tornam suas obras influentes”.

Um tanto generalista, sem dúvida. Inclusive, sabemos que uma parcela ínfima de artistas se sustenta apenas com a venda das próprias obras. Também no mundo da arte a desigualdade econômica é brutal. É preciso levar isso em consideração para ler os relatos do livro sem se iludir.

Sarah fez suas entrevistas em cafés, palestras, galerias, museus e nos estúdios ou residências dos seus interlocutores, entre outros locais. Seja em grandes eventos ou em situações intimistas, chama a atenção a maneira articulada como eles falam sobre a própria obra. Um discurso na maioria das vezes bem afinado, que se incorpora aos trabalhos e compõe a tal persona do artista. Concordando ou não com essas narrativas, sua persuasão é fascinante. Na medida em que respondem àquelas perguntas com que iniciei este texto, fui me dando conta de como elas qualificam a obra e o seu autor. Inclusive discursos “óbvios como o de Jeff Koons”, que fazem Sarah se “sentir na presença de um ator interpretando o artista”.

Cerca de três anos atrás, tive a oportunidade de entrevistar a brasileira Adriana Varejão, que não consta no sumário de Sarah Thornton, embora pudesse constar. Sua generosidade rendeu uma conversa de duas horas, durante a qual divagamos juntos, buscando esmiuçar e significar seus trabalhos. Eu havia me preparado para a ocasião, lendo quase todos os catálogos e entrevistas com a artista disponíveis. Ainda assim, foi um desafio fazer a conversa descolar daquela narrativa já conhecida a seu respeito, que não apenas insinua uma identidade para Adriana como também estabelece um lugar de conforto. Isso porque sua obra se encontra um tanto apresentada, ao ponto em que o discurso ameaça a todo instante sobrepassá-la.

Tomo esse exemplo pessoal para tentar compreender o que acontece com a tese de Sarah Thorton – cujos relatos são, além de tudo, habilmente interrelacionados, como se afinal lêssemos uma só história feita de capítulos sequenciais. Ainda sobre a persona, a autora explica: “não é fácil defender esse tipo de autoridade, mas é essencial para um artista que deseja obter sucesso”.

O sucesso a que ela se refere está diretamente associado à aceitação do mercado, todavia não se restringe àqueles poucos artistas milionários. Ao que me parece, saber falar sobre a própria obra é importante para todo o escalão, no sentido de que facilita seu conhecimento, aceitação e circulação. Entre outros benefícios.

A verdade é que esse quesito me pegou em cheio. Não produzo arte visual, mas literatura, e a ideia serve para ambas, assim como para o cinema, o teatro, a música etc. Fato é: ainda sinto uma dificuldade considerável de falar sobre meus trabalhos, articular as questões que me instigam, ajudar o público a se localizar. Estaria aí uma fraqueza? Afinal, se eu não consigo falar claramente sobre meus livros, como esperar que os leitores falem?

Ai Weiwei trata de liberdade de expressão; Damien Hirst, da linguagem do dinheiro; Andrea Fraser, das instituições artísticas; e assim por diante. Francis Alÿs, Cindy Sherman, Marina Abramovic, Gabriel Orozco e Beatriz Milhazes, entre os demais citados por Sarah Thornton, têm uma habilidade impressionante de colocar suas produções em palavras.

Ainda que essas narrativas tenham sido desenvolvidas com ajuda de diversos colaboradores, não podemos negar que existe aí também um exercício importante para o próprio artista: aprender a apresentar seus motivos, seus caminhos, sua intuição e sensibilidade; tudo isso em que acredita e que persegue esteticamente pela via da criação. Colocar em palavras formas de expressão por vezes indizíveis, que talvez habitem outro lugar que não o da razão e falem outra língua. Gerar empatia e abrir possibilidades de diálogo. 

Com um detalhe fundamental: falar da obra de modo a não esclarecer as questões nela implicadas, o que extinguiria toda a sua vitalidade, mas sim pretendendo enunciá-las. Ou seja, de modo que esse discurso possa compor a obra sem determiná-la. Um desafio do qual dificilmente se escapa, ao menos segundo a perspectiva de Sarah Thornton. De minha parte, adoraria saber o que pensa você, que chegou até este ponto dito final – e que por sorte nunca é.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ACREDITAR NO LIVRO


Quando estive pela primeira vez em Buenos Aires, o número de livrarias me surpreendeu: era como se houvesse uma a cada quarteirão, mais ou menos como drogarias em São Paulo. Não eram “megastores”, pelo contrário, eram comércios pequenos, alguns com charmosas estantes de madeira pesada, outros apenas empoeirados, a venderem livros novos e usados. A língua espanhola permite o trânsito de títulos editados em países diversos. Xeretar aquelas prateleiras foi uma experiência cultural inesquecível. Diante da situação crítica que nosso mercado livreiro vive nos dias atuais, retomo a viagem de mais de uma década em busca de alguma explicação.

Não tenho dúvidas de que a tendência global às grandes redes comerciais nos levará a um buraco negro. Isso vale para o livro e para todos os demais ramos. Ao valorizarmos padronizações de marca, ficamos reféns de empresas que engolem a concorrência, dominam setores, extinguem singularidades e, em períodos de queda, fazem tudo desabar com elas.

Não tenho condição de analisar tecnicamente os pedidos de recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, ou mesmo o encerramento das atividades da multinacional Fnac. Sei lá que tipo de lambança administrativa levou cada uma delas à beira do precipício. Como ávido consumidor de livros, entretanto, tenho cá meus palpites, válidos em especial para as duas últimas: o maior erro delas foi não acreditarem no livro. E talvez tenham cobiçado mais do que o nosso potencial pode oferecer.

Se o brasileiro em geral lê pouco, isso não significa que nosso mercado editorial é enxuto. Somos mais de duzentos milhões. Se uma parcela discreta dessa população lê, ainda é um público consumidor maior do que países inteiros. O Uruguai não atinge quatro milhões de habitantes, e eu me lembro bem das livrarias de Montevidéu. Eram numerosas e pequenas como as argentinas. Se o Chile tem mais pessoas, proporcionalmente deve ter mais livrarias também.

Trabalhei durante dez anos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde havia uma Fnac enorme. O setor de livros tomava metade do prédio. Eu passava meu horário de almoço lá. Encontrei mil maravilhas entre as lombadas à mostra. Com o tempo, porém, os best sellers ocasionais começaram a predominar, até que eles próprios perderam espaço para videogames, camisetas, bonecos, cafeteiras, computadores e assim por diante. Meus desejos de leitor eram cada vez menos contemplados. Quando o mercado editorial encolheu, a Fnac o abandonou sem pestanejar. E eu a abandonei em seguida.

O leitor fiel, que compra livros como arroz e feijão, aos poucos deixou de frequentar as livrarias que perderam a fé nos seus principais produtos. Sempre me pareceu perigoso preferir pilhas de livros do youtuber da vez à obra completa de José Saramago, para citar um exemplo entre inúmeros outros. Porque o famosinho só pagará as contas deste mês. Quem pagará as do mês seguinte? Perto da Fnac havia a Cultura do Shopping Villa Lobos. Uma loja especialíssima, com corredores labirínticos onde adorava me perder. Lembro-me de buscar uma nova tradução de Foucault e o vendedor não apenas saber qual era, mas já a tinha lido e podia comentá-la – enquanto numa Saraiva me fariam careta e digitariam no terminal de busca: fucô. O atendimento da Cultura também era capaz de acolher e incentivar leitores principiantes, indo além de somente efetuar vendas. Frequentar livraria desse tipo era uma experiência estética por si só.

As lojas que apostaram nos leitores e nos livros, e que talvez tenham evitado extravagâncias capitalísticas, mantiveram a saúde em dia. A carioca Travessa, no auge da crise, abre loja em São Paulo e em Lisboa. A Martins Fontes continua encantadora, inclusive com suas programações culturais. Livrarias da Vila idem. Sabe o que elas vendem? Livros. De todos os tipos e a leitores de gosto variado.

Preciso citar também as livrarias pequenas que ganharam espaço com produtos e programação cultural de qualidade, como lançamentos, debates, oficinas, grupos de leitura etc. Tais como Tapera Taperá, Zaccara, Banca Tatuí, LopLop, entre muitas outras.

Sou um autor iniciante, com apenas dois livros publicados por editoras de pequeno porte. Um terceiro título sairá no próximo ano. Dada essa perspectiva, as contradições do mercado não me parecem tão pessimistas. Visitei uma Festa de Livros da USP lotada, cada vez maior e melhor organizada. A Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade, foi a mesma coisa. As feiras estão com tudo. Diversos amigos tiveram livros publicados em 2018. As editoras independentes, apesar do adjetivo questionável, conquistaram prêmios, espaços nas lojas e interesse dos leitores. Isso porque acreditaram em escritores, no público e nos livros, fazendo corpo para segurar as quedas da economia.

Como bem disse Luiz Schwarcz em seu apelo de amor aos livros, precisamos incentivar o editor pequeno e suas publicações minoritárias, não só em número de exemplares, mas nas causas que defendem. O livro ainda é um ponto de resistência em que a diferença pode se apoiar. Mas para isso precisamos comprá-los, lê-los e valorizá-los.

A queda de 40% na arrecadação desde 2014 mostrou que as editoras não podem se iludir com os incentivos do governo, que ora aquecem o mercado, ora deixam todos à deriva. Se a Amazon espreme as margens de lucro dos fornecedores e recentemente começou a editar por conta própria, não é sem motivo que insiste no consumidor brasileiro. Por outro lado, existe uma experiência de compra em livraria que, ao menos por enquanto, a gigante norte-americana está longe de proporcionar.

De minha parte, suponho que o caminho está esboçado. É preciso acreditar nos livros, investir na qualidade da experiência com eles e na formação de público leitor. É preciso acreditar nos escritores, em suas obras e em seus admiradores. Talvez a crise atual sirva para mostrar que nosso mercado editorial não precisa crescer como as indústrias farmacêuticas; talvez sejam as doses homeopáticas que manterão a saúde livreira por aqui. Ao menos é assim que os pequenos editores vêm remediando a crise, com perseverança, página por página.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

NOTA SOBRE O ENCERRAMENTO DA EXPOSIÇÃO QUEERMUSEU

Triste (e preocupante) esse recuo do Santander Cultural (RS), que decidiu encerrar a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Em primeiro lugar porque o tema é relevante, atual, urgente. Depois, porque é próprio da arte o lugar de provocação, contestação, inquietação. Se você fecha os olhos (e as portas) para essas questões, apenas reitera a ignorância nossa de cada dia. Isso tudo está além de concordar ou não, de apoiar esta ou aquela causa. A posição assumida pela instituição é, simplesmente, tornar inacessível um espaço de discussão que tinha tudo para ser promissor, dando ouvidos a clamores que não querem discutir nada, e que se escondem sob a desculpa da "ofensa" e da "moral".

Ao dar ouvidos a grupos reacionários (e pedir desculpas a eles!), o Santander Cultural tenta escapar de boicotes ao banco Santander. Explicita, assim, um dos problemas graves da instituição privada: ela tenderá sempre a moldar seus valores nos valores do capital. É, por isso, incapaz de atuar em âmbitos da cultura que sustentam minorias, oposições, insurgências.

Se o Santander Cultural prefere ficar ao lado dos censores, é porque estes são a maioria ou porque falam mais alto. Se os insurgentes fossem maioria, se tivessem voz, o banco ficaria com eles. É dessa maneira pervertida que se organiza a sua ética.

Pois ficou decidido que uns não serão ofendidos agora, enquanto outros continuarão ofendidos como sempre foram. Esse é o lugar que o Santander Cultural lhes concede; um lugar em que a diferença, para variar, não pode entrar. Triste. E preocupante.

Cabeça coletiva, de Lygia Clark.
Um dos trabalhos que faziam parte da exposição
Eis a nota divulgada pelo Santander Cultural, justificando o encerramento da exposição:

"Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na Arte Brasileira. Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra.

O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.

Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos."

domingo, 20 de agosto de 2017

QUEM É RAFAEL BRAGA?

Foi com descrença que descobri a exposição OSSO, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até pouco tempo atrás. O subtítulo deveria ser autoexplicativo: exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Digo “deveria ser” porque, de fato, pouca gente sabe de quem se trata, pouca gente sabia e, dada a minha descrença geral, penso que pouca gente saberá, apesar de toda a mobilização social dos anos passados. Pouca gente sabe ou pouca gente se importa? Como anunciou o apresentador da Band News FM na noite em que se organizou uma manifestação na Avenida Paulista, havia ali um grupo de pessoas reivindicando a libertação de algum presidiário, que ele, jornalista, não fez questão de conhecer. A notícia dizia que, somada à chuva e ao frio, a manifestação atrapalhava o trânsito na cidade. Um problema que afeta a vida de muitos, compreende? Pois só no último mês, em São Paulo, houve a exposição de 29 artistas, houve a manifestação popular, houve debates naquele mesmo instituto e oficinas de cartazes no CDP Pinheiros III, além de diversas outras movimentações no restante do país. Mas quem é mesmo Rafael Braga?

Mais informações em:
libertemrafaelbraga.wordpress.com
Conhecemos, no máximo, a sua condição por “ouvir dizer”. Trata-se do único jovem detido e condenado durante as manifestações de 2013. O crime: portar um frasco de desinfetante e outro de água sanitária no ato da abordagem policial. Materiais inflamáveis usados para produzir explosivos, segundo a acusação. O que transforma todos nós em terroristas potenciais, e todo supermercado num paiol. Quatro anos e oito meses de reclusão.

Em dezembro de 2015, Rafael Braga recebeu tornozeleira eletrônica e passou ao regime aberto. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais quando foi detido outra vez, flagrado com maconha e cocaína. A vítima nega as acusações e afirma ter sofrido extorsão, espancamento, entre outras violências nunca investigadas. As únicas testemunhas foram, claro, os policiais que o detiveram. Que poderiam ser também seus algozes, se o rapaz fosse ouvido. 11 anos e 3 meses de prisão por associação com o tráfico de drogas.

Será inocente? Se for culpado, seria o sistema carcerário uma boa solução? Enquanto cidadãos preocupados com a sociedade, estas são perguntas que devemos fazer sempre. Temos a quarta maior população carcerária do mundo. Se a situação só piora, algo precisa ser revisto.

Muita gente compra drogas ilícitas cotidianamente. Autoridades abusam do seu poder e praticam violências cotidianamente. Mas quem está preso é Rafael Braga: jovem, negro e pobre. Desde 2013, nós continuamos com os nossos afazeres cotidianos. Inclusive, muito preocupados com o congestionamento nas noites chuvosas.

A exposição OSSO, as manifestações e as demais atividades de mobilização não têm como exigir a soltura de Rafael Braga. O que podem fazer, fizeram e ainda fazem, é reivindicar para ele o mesmo tratamento dado a qualquer outro cidadão, nem mais nem menos. Algo, em tese, tão simples, mas em que é difícil acreditar. Por quê?

Foi bonito ver a FLIP deste ano dar voz a escritores negros e a causas menores. (Menores não porque são menos importantes, pelo contrário; elas têm menor representação política que defenda seus direitos.) Mais da metade da população do Brasil é negra ou parda, entretanto a plateia em Paraty era majoritariamente branca. Um evento cultural elitista, sem dúvida, que serve de ilustração às nossas desigualdades sociais.

Os meios de comunicação apenas reiteram a falsa soberania branca. Assim como faz o descaso das autoridades, com a falta de políticas públicas igualitárias. Compartilhamos nas redes sociais cada bobagem do Trump sobre racismo. Por que não defendemos com o mesmo afinco a demarcação das terras indígenas e quilombolas? Assunto que diz respeito à economia, à causa social, à história e à cultura do nosso país, mas que é menosprezado como caso de invasão de propriedade. De fato, existe invasão e apropriação de terras desde 1500. Crimes cometidos pelo Estado que até hoje não conseguimos resolver.

Não faz muito tempo, o telejornal local cobria a libertação de reféns durante assalto a uma agência dos Correios. Aconteceu perto de casa, fiquei assistindo. As imagens eram transmitidas ao vivo. A primeira refém liberada foi uma mulher. Ela saiu pela porta da frente, o soldado das operações especiais foi até lá e a escoltou para um local seguro. O segundo refém foi um oriental. O agente cumpriu o mesmo procedimento. O terceiro refém era negro. O agente foi até ele, mandou-o encostar as mãos na parede, revistou-o e o liberou. Tenho certeza de que a maioria assistiu à cena sem perceber nada anormal. Eu não tive como. Desliguei a TV.

Nossa subjetividade vai sendo domesticada, ao ponto de não ver com o mínimo discernimento. É por isso que quem não se identifica nessa ou naquela minoria tem condição de dizer como é, o que deve ser feito, quais são os problemas reais. Cotas, demarcação de terras, assédio, preconceito, violências diversas. Eu não tenho a menor condição de dizer. Quero conhecer, ouvir, pensar junto. Quero defender o direito de o outro falar e ter o seu amplo direito de defesa garantido. Porém jamais posso dizer em seu lugar. Porque falarei bobagem, cometerei injustiça e exporei todos os preconceitos subjetivados. Não quero dar vazão aos preconceitos, mas a cultura me educou assim. Como posso evitar? É um esforço fadado ao fracasso. Que não por isso deve ser abandonado.

Tolo é quem pensa que a discriminação é problema dos outros. É um problema de todos os brasileiros, possivelmente o mais grave. Discriminação social, racial, regional, de gênero etc. E sobre nós incidem as consequências. Se de alguma maneira todos fazemos parte de uma minoria, também é fato que somente algumas estão fragilizadas e sofrem ameaças perigosas. É delas que devemos cuidar. Não por favor ou misericórdia; é obrigação civil.

Minha descrença na situação do país vem acompanhada de desânimo e inércia. Por sorte a arte, as organizações sociais e os gestos singulares podem, cada um à sua maneira, mudar o que vemos e o que educa o nosso olhar. Podem provocar o pensamento, o corpo, os desejos. Transformar inércia em conhecimento, conhecimento em indignação, indignação em ação. Isso tem pouco a ver com acreditar ou desacreditar; isso é da ordem do fazer.

Aplausos para quem faz.

Rafael Braga somos nós.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

DESESCREVER

Planejar minuciosamente meus textos serve apenas para eu me certificar do que não escreverei, que será exatamente o conteúdo do planejamento. Porque, quando inicio a execução do projeto, uma frase descamba noutra qualquer, a terceira surge do nada para me surpreender, a quarta se improvisa, a quinta já nem sei qual é. Na medida em que vou desescrevendo o texto, ele me inscreve e circunscreve. Ao final resta um autor reconhecido por suas linhas tortas. Por seus escritos irreconhecíveis. Um autor meramente ilustrativo.

Texto vivo (2013/2014), de Ana Hupe

domingo, 22 de janeiro de 2017

TESTEMUNHO OCULAR


Estou muito feliz neste final de semana, pois consegui terminar meu novo livro de ficção, uhuu! Que por enquanto tem este título, Testemunho Ocular. São 26 textos no total, além de uma espécie de prólogo. Alguns são curtos (o menor tem 4 linhas), outros são mais longos (o maior tem cerca de 10 páginas em formato A4).

(Bateu uma curiosidade? Clique para ler o conto Descoberta, que faz parte da coletânea.)

Os 27 textos foram finalizados ontem. Então começou o difícil processo de estabelecer uma ordem para eles


O livro investiga certos aspectos da realidade contemporânea, em que o regime de visualidade predomina, e tudo parece exposto, revelado, evidente. Esta realidade das câmeras, dos compartilhamentos de intimidades, do ver para crer. Os textos tentam colocar isso em questão. Não de maneira opinativa, mas como provocações literárias. Eles também tentam encontrar brechas para o obscuro, o não dito, o incerto.

Não à toa, apresentam alguma estranheza, que nem sempre é fácil identificar. Às vezes a estranheza parece absurda, outras vezes ambígua ou misteriosa. Mas a inquietação é sempre a mesma: o que está dado a ver? O que permanece apenas entrevisto? Que tipo de dependência temos da imagem? Que verdade é essa que a imagem quer nos revelar? Até que ponto podemos acreditar nela?

Muito bem, muito bem. Então o livro está pronto? Que nada! Agora chegou a hora de pedir para os amigos mais próximos lerem. Depois de algumas conversas, revisões, modificações, mais conversas, incertezas, vontade de jogar tudo fora, calma, angústia, indiferença, revisões, modificações, palavrões etc., vou atrás de oportunidades de publicação. Será que demora? Sempre!

Tudo bem, faz parte. Espero que eu volte a falar dele aqui assim que possível.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

É, NEM

“Até gosto de Humanas”, disse um cara atrás de mim, na escada rolante do metrô, “mas não gosto desse negócio de abraçar árvores”. Ele conversava com uma amiga, e pelo jeito ambos planejavam prestar o vestibular. Fiquei tentado a perguntar se ele não confundia Humanas com algum ramo pervertido da Botânica. Fiz bem em me manter calado. Porque logo na sequência ele emendou: “Gosto também de Biologia. Mas eu não quero saber de cuidar dos animais. Quero botá-los na mesa e picá-los todinhos”.

domingo, 28 de junho de 2015

MAIS EDUCAÇÃO, MENOS ARMAS

Resolvi trazer um ponto de vista diferente sobre o que Bene Barbosa escreveu no Correio Popular de 24 de junho passado. Talvez porque eu tenha me identificado com o que ele chama de “desarmamentistas, profetas do caos”, nessa sua lógica paradoxal. Ao contrário de Bene, não sou especialista em segurança pública, e mesmo assim não é difícil mostrar outras perspectivas sobre o assunto. Afinal, aquela sua opinião acaba restrita a uma única maneira de pensar, tanto que não se sustenta se considerarmos:

1) O objetivo final da arma de fogo é provocar tragédias (guerras, mortes, ataques, violências de diversos gêneros). Ela não é fabricada para evitá-las e, ainda que alguém as empunhe com esse propósito, só poderá fazê-lo por meio de tragédia similar a qual combate. Porque é assim que as armas de fogo funcionam. Elas sustentam a própria lógica da violência.

2) Bene afirma que, quando os seguranças de shopping center passaram a portar armas, os assaltos deixaram de existir. Se seguirmos o mesmo raciocínio, nunca deveria ter ocorrido assalto a bancos ou carros-fortes, uma vez que seus seguranças sempre estiveram armados. Sabemos que isso é absurdo. E sabemos que um ambiente armado necessariamente implica maior risco potencial do que um ambiente livre de armas. Em outras palavras, o risco de consumidores tomarem um tiro no shopping é maior quando o número de balas e armas naquele ambiente aumenta. Se o tiro é disparado ou não, isso não depende somente de os seguranças apresentarem maior ameaça aos bandidos. A análise de um contexto como esse é muito mais complexa do que o fato de os seguranças estarem ou não armados. É difícil aceitar um argumento tão reducionista.

3) Acharia até engraçado, se não fosse lamentável, alguém chamar de “profetas do caos” aqueles que desejam viver num mundo sem armas. Quem seriam os armamentistas, então? Profetas da ordem? Ora, a ordem mantida pela ameaça é sempre impositiva, repressiva, violenta. Vide as ações do Estado Islâmico e dos soldados norte-americanos. Vide todas as ditaduras estabelecidas mundo afora. Vide nosso próprio dia a dia, a realidade dos morros brasileiros, a realidade das nossas ruas etc. Cada um deles impõe sua ideia de ordem à sua própria maneira.

4) Bene parece ter uma visão distorcida sobre educação. Pois, ao citar um segurança de shopping com quem conversou – e fazer questão de explicitar a pronúncia errada do sujeito (como forma de menosprezá-lo?) –, ele defende o argumento de que “os bandos de moleques que gostavam de fazer arruaça” deixaram de agir assim porque ficaram mais educados. Não, claro que não. Eles ficaram acuados porque os seguranças apresentaram maior poder. Isso não é educação, é coerção. Enquanto desconhecemos limites da educação, sabemos que a coerção sobrevive somente até que um poder maior se apresente. Em suma, acho impossível concordar com seu argumento final, de que armas nas mãos certas significariam mais educação.

Este é o texto que originou o meu. Clique na imagem para ampliá-la.

Não bastassem esses argumentos, compartilho ainda uma inquietação que me atravessa. Pois a conclusão lógica para todos esses meus pontos seria: vamos proibir o porte de armas. Porém eu não posso defender a proibição de algo como solução. Entendo que proibir é sempre uma forma de exercer violência, ainda que “cidadãos de bem” a façam com “a melhor das intenções”, conforme alguns discursos falsamente moralistas que observamos com frequência em relatos de confrontos. O mesmo vale para suprimir direitos que os cidadãos têm de agir conforme suas crenças, dentro de um limite socialmente saudável, com vontade libertária, respeito pelo outro e conduta ética. Direto de fazer suas escolhas e assumir as consequências. Talvez seja esse o único ponto em que concordo com as propostas da ONG presidida por Bene. Conforme li no site do Movimento Viva Brasil, “Não defendemos de que a população deva se armar indistintamente, mas tomamos por inaceitável que lhe seja retirado o direito de escolha em o fazer ou não”.

Entre o sim e o não, eu acredito, acima de tudo, no investimento em educação. Acredito que uma sociedade culta, capaz de refletir por si mesma e também de aceitar suas diferenças não recorreria às armas. E quem acredita em educação não aposta em armas de fogo. Simplesmente porque, em essência, as duas coisas são diametralmente opostas. Uma deseja a emancipação, a outra propõe a morte.

Não quero armas nas mãos de “pessoas certas”, até porque é o fato de estarem armadas que costuma dar razão às pessoas que as portam. Quero, sim, uma sociedade sem armas. Que não se exponha aos riscos desse porte.

Bene considera excelente um artigo do major norte-americano L. Caudill, intitulado “A arma é civilização”. Admito que sim, infelizmente. A nossa civilização acolhe violências de muitos tipos. Então, de alguma maneira, arma e civilização compartilham características que as aproximam. Só não podemos confundir, nesse caso, civilização com civilidade. Porque a arma pode ter alguma relação com o modo como a civilização se constitui. Mas portar armas jamais será uma atitude de civilidade.

sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

sábado, 28 de março de 2015

PERCEBER O TEMPO COMO OCEANO


Ao invés de imaginá-lo como um rio, cujo curso é linear, como se houvesse uma só linha do tempo. Como se houvesse hierarquia, de cima das montanhas às baixas planícies; os tempos áureos cruzando o agora, correndo na direção do futuro. Como se o tempo mais puro tivesse ficado para trás e não pudesse ser alcançado novamente, provocando saudades eternas. Não, o tempo como oceano é diferente. Não corre numa única direção – ele é um acúmulo de temporalidades diversas, um múltiplo indeterminado de correntes marítimas que flui em todas as direções e se transforma conforme a época. Correntes frias e quentes, fortes e fracas, vivas e mortas, rasas e profundas, claras, turvas, obscuras. Consecutivas. Coexistentes.

Fatos que na linha do tempo parecem distantes são sentidos muito próximos; acontecimentos recentes, por sua vez, parecem ocorridos numa outra era. O passado não passou, não ficou abandonado lá atrás, ele extrapola seu próprio tempo e está sempre disponível. Olho para o oceano infinito e vejo nele a memória do mundo, a sua história e o seu devir, tudo se realizando agora. Autores antigos são amigos que revisito constantemente e que parecem me dedicar os seus escritos. Artistas de outras épocas são onipresentes, por vezes se confundem com os nascidos hoje.

O tempo é todo nível do mar, a mesma altura em qualquer borda do mundo. O nível compartilhado, porto de onde todos partem. Se ele sobe, a humanidade sobe junta; se desce, todos nós descemos, sem exceção. Dependendo da maré, de forças exteriores, o tempo transborda para cima de nós. Afogamos em nosso próprio tempo, em sua demasia. Por vezes se dá o contrário: experimentamos o esgotamento do tempo, que se recolhe e nos obriga a persegui-lo, a desejá-lo e sobretudo a correr em sua direção.


Ilhas a princípio isoladas possuem um comum: estão atravessadas por esse tempo-oceano. Podem endossar ou não a conexão, podem usufruir dela, renegá-la ou simplesmente ignorá-la, entretanto ela permanece como potência do tempo, como um elo perdido.

É possível nadar através do tempo, assumindo o risco que acompanha o gesto. É possível navegar no tempo, em sua superfície calma ou intempestiva. Se acreditamos navegar por nossa própria conta, é somente por ingenuidade, que se faz arrogante. Acreditamos navegar livremente quando, enfim, estamos o tempo inteiro sendo sustentados. Basta um breve colapso para naufragar, desaparecer, deixar de existir, jamais ter existido na história. Basta uma guinada incerta para apagar-se.

Navegar no tempo implica desenhar um mapa. Trajetos dispostos numa carta náutica, projeto que se faz durante o percurso, cartografia de uma experiência. Viver o tempo, compor o tempo, inventar o mundo. Cruzar essas linhas com as de outros, desenhando mapas discordantes onde é permitido se perder sem medo nem razão. Fazê-lo mesmo sem permissão. Transgredir as rotas estabelecidas. Descobrir territórios no além-mar, escrever a epopeia do seu próprio existir. Fazer de fatos poesia, fazer versos das calmarias, tantos versos delas quanto das provações.

Tempo é criação, é de onde a vida surge. Invenção dos homens, só para nós ele faz algum sentido, quando faz. Sua superfície é quente, luminosa, acolhedora. É também leve e agitada. Já as profundezas são hibernais, obscuras, desconhecidas. São densas e lentas. Conseguimos mergulhar no tempo, lutar contra as forças que teimam em nos manter no conforto do sempre. Mergulhamos até o limite que os corpos suportam. Nossa carne é o que nos determina – rompemos a superfície do tempo sem conseguir ultrapassar a nossa própria. Até onde/quando o fôlego nos levará? Com a visão turva, observo os peixes nadarem com sua desenvoltura e quero saber: que relação natural é essa que mantêm com o tempo? Que tranquilidade é essa?



Que tempos são estes? São muitos tempos e relações temporais se realizando neste exato instante, que de exato não tem absolutamente nada. Quero nadar, entretanto corro. Contra o tempo, a favor, não sei. Quando tento flutuar afundo. Quero agarrar o agora porém ele escorre por entre meus dedos, fugidio; toca meu corpo inteiro sem se fixar ou se deixar possuir. Quem é dono do próprio tempo? Quando percebo, o presente já é passado; ele se esvai. Tempos líquidos, diria Bauman. Literalmente? Não. Prefiro dizer "literariamente". O tempo ficcionado, como sempre foi. Mas não o cronológico, na lógica absurda da máquina que supõe medir o tempo – o relógio mede somente a nós mesmos, os nossos mecanismos sociais. Ele é construído na medida do homem. Sua fantasia controladora, seus jogos de poder e dominação.

Que seja cronossensível, subjetivo, de acordo com a percepção de cada pessoa. Conforme os dias que voam, as horas que se arrastam, que desobedecem a ordem dos ponteiros e embaralham o calendário. Um oceano cheio de vida que, quando menos se espera, traz à superfície uma nova descoberta advinda daquele desconhecido imemorial, que está ao mesmo tempo tão longe e perto de nós.

Comecei a pensar neste texto há meses. Sinto como se fosse ontem.

[Para Maria Gabriela Llansol.]

*Imagens: trabalhos diversos de Sandra Cinto.

domingo, 8 de março de 2015

"Minha mulher".
A expressão me desagrada, admito.
"Minha" mulher. Minha por quê? Desde quando? Como pode?
Estar junto não significa possuir. A relação é muito maior, mais complexa e mais bonita.
Sou feminista, admito. Gosto de mulher livre, dona do próprio nariz. Que vem até mim por vontade própria. Que sabe o que deseja e não hesita.
Que vem a mim não porque me pertence, e sim porque gosta. Porque quer compartilhar experiências, amar e ser amada. Que está disposta a viver em parceria - em vez de estar "à disposição".
Mulher como você. Bonita, inteligente, cheia de si. Que não é minha, não, de jeito nenhum. É mulher que escolheu viver ao meu lado. E isso muito me honra.
Por essas e outras, desejo um feliz dia das mulheres a você. Não porque é minha ou porque é mulher como as outras. Um dia muito feliz, é isso o que eu mais lhe desejo, porque você é unica e porque você merece.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRISTE EXECUÇÃO DO BRASILEIRO NO ÚLTIMO SÁBADO

Enquanto nós permitirmos a pena de morte, que é a violência máxima que um governo pode decretar, estaremos todos sujeitados às demais violências advindas dos lados mais diversos.

Enquanto a morte for medida oficial, não haverá controle nem segurança. Não haverá limites. Muito menos limites morais.

Enquanto acharmos que isso é problema [ou "solução"] de outros países, que a pena de morte não nos diz respeito, estaremos virando as costas para os atentados contra a humanidade. E a humanidade é muito maior do que leis locais. E muito maior do que atrocidades culturais.

A pena de morte não é diferente do campo de concentração, apenas acontece com menor quantidade. Ela não melhora nada, nem a sociedade nem o executado. É ingenuidade achar que serve como exemplo, pois só é exemplo de mais estupidez.

Enquanto acreditarmos que a violência é a solução para a violência… tristes de nós.

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"Um dos maiores problemas sociopolíticos da atualidade é a violência. Esta se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais violentas se as compararmos com as de décadas atrás. Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar-comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para exisitr, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. Tudo se passa como se ele tivesse perdido a crença na possibilidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros.

(…) Uma marca se destaca na criminalidade atual, de forma inconfundível, e se interesse diretamente à problemática da subjetividade. Estou me referindo à crueldade, que colore cada vez mais os crimes na contemporaneidade. O refinamento assumido pela crueldade deve ser devidamente sublinhado, pois ultrapassa os limiares anteriormente estabelecidos no gesto de matar. Atingimos novos níveis, até então impensáveis. A possibilidade de tirar a vida de outro se dissemina, tornando-se natural assim o assassinato e o genocídio, em que a crueldade delineia frequentemente a cena do crime com pinceladas grotecas e anti-humanas."

Joel Birman, O sujeito na contemporaneidade

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

(Há pouco, no metrô:)

- Minha mãe disse, você lembra seu pai, com esse cabelo! Que ótimo, mãe, vou cortar, respondi.
- Ela gostou um dia.
- Gostou, mas hoje deve odiar.

(Pronto, pode continuar o romance.)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

ÚLTIMAS PALAVRAS ANTES DAS ELEIÇÕES

Domingo, votarei em causa própria. Votarei num índio para senador, numa tetraplégica para deputada federal e num gay para deputado estadual. Não sou índio, tetraplégico ou gay. Mas acredito que quem defende essas causas precisa de espaço na política. E não adianta votar em candidato que promete colocá-los no colo e cuidar com carinho. Que promete ajudar. Eles não precisam de dó. Precisam de espaço. Estão lutando por uma sociedade mais justa. Se conseguirem, minha causa própria estará satisfeita.

sábado, 6 de setembro de 2014

A CRÍTICA COMO ATO CRIADOR

Se a crítica não for espaço de criação, não tem razão de existir; nestes dias em que a mediação, esse espaço institucionalizado do poder, já não opera mais.

Se a crítica insistir no jogo da tradição, se quiser medir forças, faz-se desnecessária.

Isso nada tem a ver com concordar ou discordar, apoiar ou combater; tem a ver com sustentar lugares de resistência, ser relevante diante das questões atuais. Tem a ver com fazer/criar sentidos sem qualquer lógica ou finalidade. Fazer junto. Viver junto.

Fazer crítica é fazer arte. Ou não é nada.

quarta-feira, 5 de março de 2014

BOLO DE ROLO

Na última vez que comprei bolo numa dessas casas especializadas, era sexta-feira e o lugar estava movimentado. Enquanto aguardava na fila, ouvi a atendente explicar para um homem que não havia mais bolos em estoque, apenas encomendas.

"Quanto você quer por um desses bolos encomendados? Eu pago", disse o cidadão. A atendente demorou um tempo para entender a proposta e, quando caiu em si, explicou que os bolos não estavam à venda, e ficaria feliz por fazer uma encomenda para ele na próxima vez. O homem bufou e saiu da loja batendo o pé feito criança contrariada.

Não me surpreenderia se esse cliente fosse o primeiro a querer ver os mensaleiros presos pelo resto da vida.

Isso não significa que desejo a liberdade para aqueles criminosos. Alguém duvida que o STF fez uma manobra política lastimável para livrar a cara deles? Desejo, sim, que todos os corruptos e corruptores sejam devidamente condenados pela falta de ética de seus atos. Inclusive aqueles que os praticam em lojas de bolo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

THE BOOK IS ON

Alguns números para refletir:

O brasileiro lê, em média, 1 livro por ano.
O alemão lê 25.

68% dos brasileiros são analfabetos funcionais.
7% são analfabetos completos.

Se entendeu os dados acima, você faz parte dos 25% restantes da população.

Uma editora com quem trabalhei disse que jamais teve problemas com roubos de carga. Nem um sequer. Afinal, se já é difícil vender livros de maneira lícita, imagine no comércio informal ou no mercado negro.

Por experiência própria, sei que boa parte dos usuários de internet, frequentadores de redes sociais, profissionais gabaritados de empresas riquíssimas, sim, boa parte deles sequer consegue se fazer entender. Não sabe escrever e-mails, conjugar verbos, ligar uma ideia na outra.

Ao contrário de muitos românticos, eu não acredito que livros mudarão o mundo. Nem acho que livros são mais importantes do que cinema ou TV. Ou qualquer outro meio de comunicação. Existem livros de todos os gêneros, bons e ruins. Assim como existem filmes e programação de todos os níveis.

O mercado de livros tem se expandido no Brasil. Mas o que as pessoas estão lendo? E o que estão fazendo com essas leituras?

Escolas transformam o mundo, sem dúvida. Professores transformam o mundo. Dedicação transforma o mundo. Boa vontade...

Penso que uma sociedade decente se constrói com vontade política e olhar crítico. Se, no caso do Brasil, isso não vem dos livros, será que vem de outros lugares?

No meu caso, e se é preciso apostar em alguma coisa, prefiro continuar com os livros.

Façam suas escolhas.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O FIM DA REVISTA BRAVO!

Cheguei em casa ontem e encontrei uma carta dizendo que a revista BRAVO! será extinta a partir de setembro deste ano. Era a confirmação de diversos boatos que li aqui e ali. Achei uma pena. Não que a BRAVO! fosse imprescindível, mas porque era uma das poucas revistas de grande circulação que lidavam com o tema das artes e da cultura em geral.

Um tempo atrás, o editor revelou que eles estavam vendendo mais de 30 mil revistas por mês, salvo engano, e que isso os deixava muito satisfeitos. Chegaram até a baixar o preço de capa, lapso que logo foi corrigido. Não se faz uma barbaridade dessas no sistema capitalista, especialmente quando não há concorrência apertando o cerco.

Fiquei desapontado porque o número de leitores não interessa mais à editora Abril, e porque o motivo da extinção sequer considera a relevância do assunto nesse Brasil tão carente e tão mambembe.


Fiquei desapontado com a falta de consciência cultural da nova diretoria da Abril, embora tal ignorância não me espante. Afinal, não basta alimentar os leitores com futilidades facilmente digestíveis. Para continuar a ter leitores no longo prazo é necessário formá-los. Parece que a editora se abstém dessa função e prefere focar os investimentos nos títulos que vendem mais. São conselhos da consultoria contratada. Consultoria que talvez entenda de negócios, mas que passa longe de outras questões mais profundas e menos imediatistas.

Aliás, investimento não, trata-se de mera aplicação. Porque investimento pressupõe estruturação, enquanto que a única questão visada agora é o lucro.

Será que, mesmo com retorno financeiro abaixo do esperado, não valia a pena manter no portfólio uma revista sobre cultura? Ou, ainda: dinheiro é tudo, mesmo numa empresa tão antiga e sólida como a Abril?

Não sei dizer. Isso tampouco cabe a mim. Só me parece que responsabilidade social vai muito além de reciclar papel e contratar pessoas com deficiência física, entre outras dessas coisas que as empresas fazem porque são obrigadas ou porque querem parecer "mocinhas" ao invés de bandidas.

Abandona-se a BRAVO!; deixa-se de abordar em larga escala – por ora – determinados assuntos que continuarão a existir por si mesmos, manifestados no povo e no mundo.

A carta era muito clara: a editora abre mão de uma revista que tratava a cultura de maneira mais abrangente para privilegiar um portfólio enxuto e comercializável.

Naquela tentativa de introduzir a arte entre leitores não necessariamente interessados nela, a BRAVO! parecia querer diminuir a distância sócio-cultural que tanto aflige o Brasil. Parecia resistir à distância, mesmo com todos os empecilhos implicados no processo. Eu admirava isso. Gostava de ler cada edição de cabo a rabo, tanto que a assinava.

A carta também dizia que a revista não era mais necessária, pois conteúdo similar já se encontra disponível em outros títulos da editora. Não faço ideia de quais sejam esses títulos. Nem acho que qualquer outra revista remanescente substitui a BRAVO! Os assuntos tratados por ela ficam órfãos, ao menos dentro da Abril.

No meu ponto de vista, o mercado editorial agora possui ótimas publicações especializadas de um lado – o jornal Rascunho, por exemplo – e terríveis publicações banalizadas do outro. No meio, restou um vazio imenso (do qual nem mesmo a BRAVO! dava conta, embora fosse uma opção, sem dúvida). Espero que logo surjam novas publicações para ajudar a preenchê-lo.

Por fim, uma resposta direta para Fernando Costa, diretor de assinaturas da Abril: agradeço a oferta de meia dúzia de edições de VEJA em troca das revistas BRAVO! que eu já havia pagado e que não irei receber em casa. Agradeço a oferta, mas não a aceito. Já me basta de más notícias numa carta tão breve.

sábado, 4 de maio de 2013

HOFESH SHECHTER


"Arrebatador" é a palavra que melhor resume o espetáculo Political Mother, da companhia inglesa comandada por Hofesh Shechter, que assisti ontem no Auditório Ibirapuera. Com música ao vivo - das pancadas heavy metal aos violinos clássicos -, a banda dividia a atenção do público com os bailarinos, e todos dançavam juntos sob a opressão do totalitarismo. Havia momentos de escuridão, sentimentos de dor e compaixão, manifestação e repressão popular, tudo pura dicotomia, pontos de vida completamente apartados e extremistas. Lembrei o tempo todo do romance 1984 (George Orwell), daquele clima de sociedade vigiada e controlada, sobrevivendo à repressão. Pensei em campos de extermínio, em refugiados de guerra e também nos momentos singulares de força que surgem ali com objetivo de tornar a existência suportável. Tudo ilusão. Essa história toda sem narrativa, sem verbo, somente linguagem corporal e música, muita música alta para impulsionar os corpos e fazê-los falar. Foi lindo. O auditório estava lotado de uma maneira que eu jamais imaginaria. Se me perguntassem quantos brasileiros se interessariam por dança contemporânea, eu responderia "poucos". Mas seria uma resposta errada. Juntos, aplaudimos a companhia por longos e entusiasmados minutos. Saí de lá arrebatado.

Aqui tem mais informações sobre o festival: O Boticário na Dança