“Encontrar a escama da escama. Ou aceitar que não há escama alguma.”
Trecho do conto “Jiboia”, que dá título ao livro publicado pela Aboio
Jiboia, de Cecília Garcia, aposta na natureza como
tema de seus enredos, com destaque para a natureza humana (existe outra,
aliás?). São ao todo 16 contos, em sua maioria curtos, com cerca de 3 páginas
cada, que pesam amor e violência numa balança pouco otimista. E se em alguns
deles a animalidade marca o comportamento dos personagens, em outros serve como
pano de fundo para relações interpessoais acontecerem.
“Ciclista dócil”, por exemplo, conta a história de uma
mulher que sequestra um lobisomem-guará com o propósito de ser mordida e se
transformar em criatura da mesma espécie. Enquanto “O centauro hesita” evoca o
signo de Sagitário para contar as descobertas sexuais de dois adolescentes.
Jiboia traz figuras incomuns, que não deixam de
causar estranhamento. E há algo na sua linguagem que tampouco é fácil de
apreender. “A mãe verde”, que abre o livro, fala de uma mulher em convulsão que
pode contar apenas com o socorro de suas crianças. A narrativa vai, assim,
dizendo sem dizer, apresentando seus conflitos de maneira sugestiva, cuidando
para não soarem explícitos, como mera denúncia moral.
Outros contos têm o mesmo teor de elaboração,
assemelhando-se à prosa poética. Em “O Monza do faraó” lemos: “o sabor pastoso
da madrugada” e “tinham na boca a costura do medo”. Imagens apuradas, que enriquecem
a experiência da leitura, mas cujo excesso eventualmente cria contratempos. Ao
ponto em que lemos, no mesmo conto: “os olhos grávidos de propósitos
histriônicos”. Histriônicos.
Fato é que, neste seu livro de estreia, Cecília conseguiu
explorar uma temática importante sem recair em romantismos ou levantar
bandeiras verdes. Seu texto é maduro e diverso, criativo. E o conjunto da obra
é coerente, quer dizer, os contos funcionam bem reunidos, apesar da variedade
de questões, lugares, personagens e recursos técnicos (sketch, parábola,
flashback, naturalismo, fantasia, monólogos etc.). Vemos também ali retratos de
um Brasil folclórico, de interiores geográficos e psíquicos, como raras vezes
se apresenta em nossa literatura contemporânea. Pontos extras para a autora, que
chega mostrando garra. E dentes.