“O que tem o último degrau? É onde a fila vai dar, oras! O homem de chapéu parece confuso. Sobem mais quatro pessoas. Não, não, o último degrau fica lá em cima. É claro que não fica!, você protesta. Ele se vira para o jovem com espinhas atrás dele: nós não viemos lá do último degrau, lá em cima? O jovem concorda, diz que sim e faz joinha com as mãos. Lá embaixo deve ser o primeiro degrau.”
Trecho do conto “O último degrau”
Cães noturnos é o primeiro livro solo do paulistano Ivan Nery Cardoso. Nele estão reunidos 20 contos, divididos em duas partes de 10. São em geral textos breves, com uma média de 3 ou 4 páginas e algumas exceções. Embora os temas sejam variados – como um bacanal no Paraíso, brincadeiras de crianças, arte no apocalipse atômico, amor programado com inteligência artificial, turismo em Marte, lobisomens e afinação de piano, para citar alguns –, em comum eles apresentam certo estranhamento que flerta com o fantástico, ainda que nem sempre se trate disso exatamente, ou nem sempre isso se dê nos moldes de um Julio Cortázar ou um Murilo Rubião, por exemplo.
Pois Ivan manipula também elementos de outros gêneros, outras referências, outros interesses literários: o horror, como no conto que dá nome ao livro, ou em “Noite dos loucos”; certo viés explicitamente político, como no caso da comunidade incendiada de “Pompeia”; ficção científica em “Blogueirinha” e “Em busca da flor elétrica”; e assim por diante.
O fantástico, tal como se conhece, também pode ser visto aqui e ali, como no conto “Sentimento oceânico”, em que um ser amorfo habita as entranhas do protagonista; em “O pote”, recipiente capaz de preservar as últimas palavras de um morto; ou nos homenzinhos e mulherezinhas responsáveis por fazer soarem as notas de “O piano”. Destaca-se, ainda, “O último degrau”, em que o non sense, o comportamento protocolar e o convívio social urbano se encontram na mesma fila, onde pessoas aguardam com alguma impaciência por algo que desconhecem, numa trama que lembra tanto Kafka quanto aqueles dois autores mencionados anteriormente.
Se essa miscelânea por vezes parece irregular, há características que aproximam os contos, tais como a escrita convidativa de Ivan, generoso com o leitor, permitindo a ele que usufrua das histórias sem dificuldades estilísticas, formais, linguísticas. Há também uma sexualidade que atravessa a maioria dos textos. E uma profanação de temas sacros – o destino da alma cristã, por exemplo – e tabus morais como o amor homoafetivo ou a traição no matrimônio.
Ivan Nery Cardoso nos oferece um universo de possibilidades narrativas, mostrando-se criativo e habilidoso na condução do leitor através de seus enredos incomuns, o que é sempre um desafio. O livro se mostra, assim, uma estreia promissora, que deixa vontade de saber como o autor seguirá ascendendo na literatura. Os caminhos estão aí.
Pois Ivan manipula também elementos de outros gêneros, outras referências, outros interesses literários: o horror, como no conto que dá nome ao livro, ou em “Noite dos loucos”; certo viés explicitamente político, como no caso da comunidade incendiada de “Pompeia”; ficção científica em “Blogueirinha” e “Em busca da flor elétrica”; e assim por diante.
O fantástico, tal como se conhece, também pode ser visto aqui e ali, como no conto “Sentimento oceânico”, em que um ser amorfo habita as entranhas do protagonista; em “O pote”, recipiente capaz de preservar as últimas palavras de um morto; ou nos homenzinhos e mulherezinhas responsáveis por fazer soarem as notas de “O piano”. Destaca-se, ainda, “O último degrau”, em que o non sense, o comportamento protocolar e o convívio social urbano se encontram na mesma fila, onde pessoas aguardam com alguma impaciência por algo que desconhecem, numa trama que lembra tanto Kafka quanto aqueles dois autores mencionados anteriormente.
Se essa miscelânea por vezes parece irregular, há características que aproximam os contos, tais como a escrita convidativa de Ivan, generoso com o leitor, permitindo a ele que usufrua das histórias sem dificuldades estilísticas, formais, linguísticas. Há também uma sexualidade que atravessa a maioria dos textos. E uma profanação de temas sacros – o destino da alma cristã, por exemplo – e tabus morais como o amor homoafetivo ou a traição no matrimônio.
Ivan Nery Cardoso nos oferece um universo de possibilidades narrativas, mostrando-se criativo e habilidoso na condução do leitor através de seus enredos incomuns, o que é sempre um desafio. O livro se mostra, assim, uma estreia promissora, que deixa vontade de saber como o autor seguirá ascendendo na literatura. Os caminhos estão aí.
1. No prefácio de Cães noturnos, Nelson de Oliveira afirma que “onde não há estranhamento não há arte”. De fato, seus textos evocam esse sentimento, que se traduz de maneiras variadas ao longo das histórias. O estranhamento é um recurso literário para você?
Definitivamente, sim! Só me atraem, verdadeiramente, as histórias que se pautam pelo estranhamento que seus mundos, suas tramas e suas personagens causam em nós. Não sou muito chegado ao chamado “realismo” na literatura que leio e que produzo, preferindo obras que não tentam recriar e oferecer respostas aos problemas e situações do nosso cotidiano, mas, sim, onde as personagens se encontram em um estado de confusão com a realidade (ou a irrealidade) ao seu redor, nos levando junto com eles. Também não gosto muito de contos que se fecham de forma redonda, com respostas a todas as questões abertas ao longo da narrativa. Prefiro histórias com finais abertos, que criam um espaço para os leitores teorizarem, imaginarem, colocarem um pouco de si ali dentro. Especialmente nos contos de Cães noturnos, quis escrever histórias que mexessem com as expectativas dos leitores, os levassem a lugares estranhos, não familiares (podemos pensar no conceito do Inquietante, de Freud), e os largassem lá (pense, por exemplo, no final de “Sementes”), sem uma resposta definitiva. Esse recurso do estranhamento os leva a terminar a história nas suas mentes, e, nesses finais inventados, espero que os leitores possam encontrar algo dentro de si para levarem de volta às suas realidades.
2. Seu livro traz um apanhado bastante heterogêneo de temas. Se à primeira vista isso pode sugerir certa fragilidade, como se os textos não se encontrassem, é também uma amostra consistente de sua criatividade. Como você vê esse conjunto reunido em um único volume? Como foi escrevê-los e selecioná-los?
A escrita desses contos se deu de forma bastante difusa, geralmente durante o bloqueio criativo que experimentei na escrita de outros projetos (que seguem não finalizados). Muitos deles surgiram em oficinas de escrita, enquanto outros vieram à tona em momentos muito improváveis, após uma amalgamação de referências em algum canto do meu inconsciente. A seleção é que foi a parte mais curiosa, para mim. Já estava tentando organizar um livro de contos há muito tempo, e acabei separando-os em duas obras: uma de contos mais longos, mais “sérios” e “profundos”, e uma de contos mais curtos, debochados, mais “descompromissados”, digamos assim. Um dia, percebi que os contos dos dois livros brincavam com uma mesma ideia de falta de sentido experienciada pelas personagens. Além disso, os contos dos dois livros eram, na verdade, versões dos mesmos assuntos, e cada história de um deles possuía uma contraparte no outro. A partir disso, comecei a montar a ordem do livro que viria a ser o Cães noturnos, mas que, naquela época, possuía outro nome. Selecionei 20 contos que, no fim, exploravam 10 temas diferentes, e essa foi uma das partes mais divertidas da montagem do livro, pois descobri muito sobre o meu processo criativo.
3. O livro se divide em duas metades, cada uma com 10 contos. Mas a leitura se sucede sem grande solavanco entre elas. Isso já constava em seu projeto original ou foi uma decisão posterior, talvez já durante o trabalho de edição?
A ordenação dos contos foi o que transformou o Cães noturnos no livro que ele é, e isso veio do processo que descrevi na resposta à pergunta anterior. O que fiz, no livro, foi separar os contos em duas partes que atuam como versões espelhadas uma da outra. Isso pode ficar mais claro no caso do primeiro e do último conto, que funcionam como uma pergunta e uma resposta, mas pode ser observado em todos os outros: o segundo se relaciona com o penúltimo, o terceiro como antepenúltimo, e assim por diante, até o momento em que uma termina e a outra começa. Acho que isso pode contribuir para essa sensação fluida de leitura que você comentou, pois há um fio condutor que leva os leitores do começo até o fim do livro, fechando um círculo. Ainda não tenho relatos de pessoas que tenham lido os contos em outra ordem, então não sei se isso afeta a experiência de leitura. Durante o processo de edição houve um trabalho mais no texto, e não tanto na ordem dos contos, apesar de eu ter tirado um conto que não estava muito amadurecido e colocado “O último degrau” no lugar, pois o julgava mais pertinente à obra como um todo.
4. Há uma sexualidade eminente na maioria dos contos de Cães noturnos, e chamam a atenção os relacionamentos homoafetivos, apresentados sem que seja esse o conflito do conto, o que me parece um feito importante sobre a presença do assunto na literatura. Quer dizer, os homossexuais são personagens comuns, vivendo aventuras que não têm necessariamente a ver com a sua sexualidade. Você pode comentar essa escolha?
Apesar de trabalhar com o estranhamento nas minhas histórias, eu não queria que a sexualidade fosse um fator contribuinte para essa sensação, mas sim, um assunto normalizado ao longo do livro. As personagens são quem são e se relacionam como se relacionam. Se isso afeta suas narrativas de alguma forma, não é por conta dos gêneros aos quais são atraídos, mas por conta de seus próprios conflitos internos e de como lidam com eles. O que eu desejo que cause um estranhamento nos leitores é a situação que as personagens estão vivendo, a realidade ao seu redor, seja ela convidativa ou não.