Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a
pátria que os pariu.
“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.”
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)
A disputa entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho |
Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?
Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.
Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.
Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.
No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.
1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.
2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.
3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.
4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.
O livro:
Br2466 ou a pátria que os pariu
Autor: Nélio Silzantov
Editora: Penalux
Ano: 2022
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