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terça-feira, 19 de outubro de 2021

ESCRITOS SOBRESCRITOS

Página 47 do DOCUMENTO PT/AMLSB/RJA/01/018, Arquivo Municipal de Lisboa


Meu ofício é escrever. Seja na ficção, na poesia, na comunicação, na revisão, na pesquisa, na edição, na crítica, nas aulas, no acompanhamento de projetos alheios, enfim, escrevendo é como me sustento e me expresso. É pela escrita, especialmente, que me coloco no mundo. Tenho com ela uma obrigação, uma companhia, por vezes certa desconfiança, em outras, uma paixão permeada por realizações, conflitos e frustrações. E mais. Meu ofício me convida para conversas, que rendem anotações a seu respeito, quase sempre perdidas em cadernos e folhas avulsas. Revendo-as, senti o desejo de compartilhar algumas, que você lê a seguir. Elas não concordam entre si nem pretendem estabelecer verdade incontestável; na realidade, com frequência são incompatíveis e precisam ser acolhidas com parcimônia. Seja como for, espero que tragam alguma inquietação a leitores e escritores, assim como trazem para mim.

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Existe um abismo entre as palavras e as coisas. Escrever é atirar-se nele, não como forma de suicidar-se, pelo contrário: é levar às últimas consequências a tentativa de sobreviver.

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O que diferencia um texto da “arte literária” de outro qualquer é que ele sempre tratará do próprio ato de escrever, por mais que se apresente dissimulado na forma de temas, narrativas, versos, personagens.

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Para ser um escritor bem-sucedido é preciso se interessar pelas pessoas, pelas coisas, pela língua; tanto quanto pelas relações, jogos de força e diferenças que atravessam isso tudo. É preciso ter curiosidade e abertura ao que é estranho. Escrever é elaborar esse profundo interesse pelo outro.

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A boa escrita jamais é a mera expressão do ego. Ela só se realiza quando o escritor se abandona, inclusive ao falar de si mesmo.

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Ser influenciado pela obra de outrem não pode significar uma receptividade passiva; não se trata de simulação. Melhor é deixar que ela e a sua própria obra colidam, reflitam e se transformem. É uma ação poderosa e, em geral, perturbadora.

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É sempre o livro que escolhe o seu leitor – o contrário é uma ilusão.

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Hoje, e talvez desde sempre, não saber ler imagens é o mais grave tipo de analfabetismo.

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Uma artista me afirmou certa vez que pintar é escrever. Referia-se não apenas ao aspecto narrativo da imagem pintada, mas ao que apresenta também de linguagem, de estrutura, da sua relação com as palavras que a interpretam, com o que ela dá a ver e como é vista. Essa artista não disse que pintar é “como” escrever, não sugeriu uma compatibilidade. “Pintar é escrever”. A pintura é um escrito – embora não necessariamente um texto, claro. Poderíamos responder que escrever é pintar? Que a escritura é também pintura? Uma composição de cores, sensações, espessuras, forças, temporalidades, sugestões, camadas, visualidades, imaginários, ilusões?

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Poesia é a capacidade de tornar visíveis as singularidades onde a princípio vemos apenas lugares-comuns.

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Ao mesmo tempo em que um escrito realiza uma memória, dando a ela a materialidade das palavras, torna-a ainda mais distante, impessoal, autônoma, como um construto, uma invenção, uma obra fictícia da qual o autor já não é o sujeito que a viveu e que sobre ela tem ainda algum controle. Tomamos notas para lembrar; escrevemos para esquecer.


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Como sombras deslocadas do objeto que as produz, personagens são o autor do livro projetado, espelhado, ampliado, negativado, reduzido, distorcido, ou seja, modificado segundo as necessidades da narrativa. Autor e obra são como formas similares e não coincidentes. São e não são. Assim.

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Um escritor precisa ter muito claras as questões que mobilizam sua escrita. O que não significa respondê-las, mas enunciá-las. Somente assim saberá se de fato acredita nelas e se exerce seu ofício com sinceridade. Essa é a única verdade que importa quando falamos em escrever.

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A cada palavra do escritor, a obra pode viver ou morrer. É preciso compreender a responsabilidade implicada nesse gesto toda vez que acrescentar, excluir, modificar palavras num texto. Ao mesmo tempo, somente é possível escrever deixando-as livres para escolherem a si mesmas, sem o controle muitas vezes autoritário do autor. Escrever é manejar esse paradoxo.

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O real motivo do texto é a sua escrita. Qualquer outro produz resultados duvidosos, quando não desastrosos.

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O texto deseja existir por sua conta e risco. Nossa tarefa é tornar essa existência possível. E basta.

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A palavra é sempre um aprisionamento, ela encerra no significado a dimensão maior e mais complexa da vida. Na medida em que cria fissuras no entendimento, subjuga o óbvio, reinventa usos, a poesia tenta escapar dessa limitação. Tentativa deveras frustrada.

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Um texto que não perturba certa ordem preestabelecida não merece ser escrito. Não há escritura real senão em afrontamento.


*Publicado originalmente no jornal Correio Popular.