Goethe na campanha romana (1787), pintado pelo amigo Johann Heinrich Wilhelm Tischbein durante a estada do escritor na Itália |
Tem sido bom ler um livro imenso como o Viagem à Itália, de Johann Wolfgang von Goethe, com suas seiscentas páginas de letras miúdas. Desde o início da quarentena, meu sentimento do tempo é o que mais se desorganizou. As tarefas deixaram de caber nos horários reservados a elas, os dias ficaram iguais, minhas ações tornaram-se reações atrasadas. Uma sensação de não dar conta daquilo que é exigido na administração da casa, na paternidade, no trabalho; verdadeiro descompasso com tudo que se apresenta ao redor. Então à noite, pouco antes de dormir, acompanho Goethe desde a sua Alemanha em fins do século XVIII até Nápoles, cruzando a Itália a partir do nordeste, passando por Roma e outras cidades menores. Viajo a pé ou de carruagem madrugada adentro, observando as montanhas no horizonte, os vales cultivados, os dialetos dos povoados. Elaboro as minhas impressões com desenhos e com palavras.
O livro é composto por uma reunião de cartas e anotações. Seu formato de diário me surpreende: como Goethe consegue percorrer tamanhas distâncias, visitar lugares e pessoas, admirar obras de arte e ainda escrever de maneira tão minuciosa a cada vinte e quatro horas? Não bastasse a percepção desse tempo alargado, seus escritos também produzem em mim um distanciamento através dos séculos que nos separam, que chega como um verdadeiro fôlego para suportar o imediatismo de hoje, as preocupações de prazo curtíssimo, a constante ameaça da morte. “Impossível conhecer o presente sem reconhecer o passado, e o equilíbrio entre ambos demanda mais tempo e tranquilidade”, diz meu companheiro.
Surpreende-me, ainda, seu amplo conhecimento. Ele observa, por vezes em longas descrições, as latitudes, a meteorologia, a composição do solo, a vegetação, as histórias da arte e da arquitetura. Sua curiosidade a respeito de tudo é uma coisa linda de tão viva. Emociono-me, com ele, à vista das primeiras oliveiras, que não germinam em sua terra natal. Tenho o mesmo prazer ao experimentar as uvas, as peras e os figos, suas frutas favoritas. Ao visitar as livrarias e aprender com outros mestres, anteriores ao próprio Goethe, enquanto este busca apreender tudo o que pode sobre os artistas, a antiguidade, os costumes, as vestimentas, os trajetos. Em Roma, ele se esforça para comparar os mapas da nova e da velha cidade. Se no início da viagem prometeu a si mesmo não andar com peso excessivo, assume seu fracasso ao recolher “cerca de seis quilos” de certa barrita. “E lá vou eu mais uma vez, carregado de pedras!”, diz, ampliando sua coleção. Ao seu lado, quero saber: o que é barrita? O que Winckelmann pensava sobre aquela escultura? Como é possível guiar-se pelas montanhas, observando somente o curso dos rios?
Sua experiência de estranhamento com a religião católica, alvo de duras críticas de viés protestante; com o sentimento de solidão e anonimato em meio à multidão italiana, um século antes de Baudelaire escrever sobre o mesmo assunto; com a necessidade de educar o olhar para apreciar as pinturas dos museus; isso tudo se coloca como questões de um estrangeiro no embate com o outro e com a cultura local.
Mesmo bem preparado intelectualmente, Goethe encara sua viagem com o rigor de quem ainda tem muito para ver. Diz ele: “preciso agora concentrar minhas energias da melhor maneira possível, é preciso que haja ordem. Não estou aqui para me divertir de acordo com meus desejos. Quero dedicar-me ao estudo dos grandes objetos, aprender e me instruir antes de completar quarenta anos”.
Acho difícil dissociar essa sede de conhecimento e seus desejos; ela é o próprio desejo manifesto. Já eu, que me aproximo da mesma idade, quero assumir que não dá mais, sinto que preciso admitir a derrota, pois a vida que resta não basta. É ainda pior nas circunstâncias atuais. Caminho pé ante pé, mas Goethe se encontra lá adiante, quase não consigo vê-lo. Impossível aumentar o ritmo para alcançá-lo.
Então leio seus pensamentos registrados em Roma no dia 20 de dezembro de 1786, que mostram não apenas o quanto ele próprio se sentia pouco instruído, como também a sua necessidade de desconstruir o que já sabia para perceber o novo. Em suas palavras: “é certo que eu pensava poder aprender algo aqui. Eu não sabia, entretanto, que teria de retroceder tanto em minha formação escolar, que teria de desaprender tanta coisa, ou mesmo aprender de outro modo. Agora, porém, encontro-me totalmente convencido disso, tendo me entregado por completo ao processo, e quando mais eu tenho de renegar a mim mesmo, mais me alegro”.
Respiro fundo. Sigo com Goethe. Ainda mal cheguei à metade de sua viagem. Acalmo a pressa, redimo-me com a ansiedade. Sinto o pulso da terra, assim como ele o fez. Foi bom até aqui. Antevejo que continuará a me fazer bem explorar o tempo e o espaço, mesmo sem sair de casa, folheando páginas e páginas de uma longa jornada de aprendizado.