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quarta-feira, 16 de outubro de 2019

DIANTE DOS MEUS OLHOS


Meu terceiro livro está sendo publicado dez anos após o seu primeiro esboço. Nesse meio-tempo eu aprendi a lê-lo e a formular ideias sobre literatura. A mais recente surgiu durante a conversa com uma colega. Quando mencionei o lançamento do Diante dos meus olhos, ela comentou: deve ter uma mensagem bonita no final. Ora, por que eu deixaria mensagem assim?

Nem é o fato de ser bonita que me intrigou; a beleza não depende apenas do livro, mas também do gosto do leitor. Há romances terríveis e, para mim, belíssimos, como O som e a fúria, do William Faulkner. Outros, que o senso-comum considera lindos porque emotivos, por exemplo, me parecem horríveis, clichês, apelativos. Tudo isso para dizer que aquele comentário me pôs a pensar por causa da palavra “mensagem”.

Imagino que todo escritor empenhado em promover uma experiência estética mais condizente com as questões contemporâneas não espera comunicar uma mensagem com seus livros. Por vários motivos: a mensagem tem um significado determinado, pressuposto, que violenta o leitor, ainda que travestida de beleza. Mensagem é aquilo que um escritor gostaria que o leitor apreendesse do livro a qualquer preço, o que o impede, ou ao menos dificulta, de apreciá-lo como bem entender. A mensagem é fechada, dura, objetiva. Enquanto um livro promissor, na minha concepção, deve ser aberto, poroso, indeterminado; deve ser um convite para o leitor abstrair dele o que quiser, ainda que seja uma mensagem.

Prescrever uma mensagem no livro quase sempre implica também dar à história uma conotação moral. Ou seja, ditar uma regra, um comportamento, um entendimento verdadeiro e compatível com certo padrão hegemônico de ser.

Penso que um livro relevante para a literatura contemporânea faz o oposto: coloca a moral em questão, dá voz a modos de existência oprimidos pela hegemonia, apresenta contradições, opera por uma lógica paradoxal, provoca o entendimento para que tome formas até então desconhecidas.

Sem dúvida, uma história que reproduz nossas crenças traz conforto. Mas a que de fato nos toca a ponto de tensionar e transformar quase sempre é aquela que nos contradiz, que nos apresenta pontos de vista inusitados, que nos fala do que jamais foi dito, talvez por ser, de certo modo, proibido.

Albert Camus escreveu O estrangeiro, um romance que me marcou e que eu quis homenagear, como forma de agradecimento, no Diante dos meus olhos. O início é muito famoso: “Minha mãe morreu hoje, talvez ontem, não sei bem”. Trata-se de um personagem apático, que não se deixa tocar nem mesmo pela morte da mãe. E ele será julgado por isso, inclusive quando enfrentar um tribunal, acusado de matar um árabe numa praia da Argélia. Ele está diante do júri, respondendo por uma acusação de homicídio, e todos já o consideram culpado por antecipação, afinal foi incapaz de chorar a morte da própria mãe.

Daí advém outra ideia sobre literatura: para nos falar desse tipo de conflito mais complexo, o autor não pode se colocar acima de seu enredo ou de seus personagens. Não pode escrever “sobre” eles; não deve julgá-los pelo que deles pressupõe. Deve apenas criar uma condição favorável para que eles ganhem vida da maneira como quiserem; o escritor precisa limpar o terreno, retirando inclusive a si próprio, para que seus personagens possam habitá-lo.

É vital que ele preserve, nesse processo, um lugar para o não sabido. O escritor que pensa dominar tudo atenta contra a própria criação; se pretende ser exato, o torto jamais se apresentará, e com ele se vai o imprevisto, o indomado, o inusitado. Ao tentar estabelecer “o” sentido, como já vimos, ele passa por cima dos personagens, querendo mostrar que sabe mais, querendo ditar o destino deles; torna-se um ditador. E tenta justificar o que escreve. Com isso, menospreza seu leitor. Pressupõe que o leitor não é capaz de entender por si próprio, então retoma o assunto e explica, explicita, esclarece. Traz tudo à superfície da página; ilumina todo cantinho obscuro que poderia dar algum volume à história.

Para mim, a boa história é aquela que preserva o espaço do não narrado, do que é impossível de contar porque não cabe em palavras, do que está sem explicação aparente e assim provoca um estranhamento.

A “poética do estranhamento” é uma das que mais me interessam ao ler e ao escrever. Ela não se refere necessariamente ao que é absurdo por completo. O estranho é sutil. É por vezes um detalhe capaz de transformar uma cena familiar, confortável, banal num transtorno, numa perturbação, num incômodo porque algo ali parece fora de lugar. É um elemento comum que, um pouco deslocado do que dele se espera, inquieta o leitor.

É difícil programar esse efeito, como um artifício colocado de maneira proposital na narrativa. Meus textos bem planejados sempre me pareceram medíocres, jamais me dei bem com esse processo. Penso que, quando escrevo bem, não escrevo para tirar a história da cabeça e colocá-la no papel; escrevo para descobrir a história no próprio papel, perseguindo os rastros deixados pelos personagens, tropeçando nas armadilhas do enredo.

Michel Foucault fala disso numa entrevista sobre seu processo de escrita, publicada no Brasil sob o título de O belo perigo. Ele diz: “A escrita consiste em empreender uma tarefa graças à qual e ao final da qual poderei, para mim mesmo, encontrar alguma coisa que não tinha visto inicialmente”.

A escrita é uma prática da descoberta. Depois é possível se afastar, editar, ser leitor do próprio texto. Mas a princípio é preciso vivenciá-lo.

Isso tudo se apresentou enquanto eu trabalhava no Diante dos meus olhos. Aprendi enquanto escrevia, estudava, analisava meu próprio processo. Tive dez anos à disposição. A história chegou primeiro, é a fonte a partir da qual pude pensar criticamente estas ideias que compartilho agora. Eu disse lá no início que, com o tempo, aprendi a ler o meu próprio livro. Posso dizer que ele também me ensinou a escrevê-lo.

Gostou? O romance Diante dos meus olhos está à venda no site da editora Reformatório e em diversas livrarias físicas ou digitais.