7.000 carvalhos (1982), de Joseph Beuys |
O primeiro se formou ao término do Curso Livre de Preparação do Escritor, oferecido pela Casa das Rosas, em São Paulo. Após quase um ano se encontrando duas vezes por semana, parte da turma decidiu que não bastava; criamos então um grupo de trabalho movido pela amizade, colaboração e desejo comum. Adotamos o nome Discórdia, que diz muito sobre o funcionamento do coletivo: trata-se de um espaço em que o consenso interessa bem menos do que o dissenso, ou seja, somos unidos pelas diferenças. Pois são elas que impulsionam o motor da criatividade e possibilitam realizar ações tão variadas.
O coletivo Discórdia me trouxe a oportunidade de participar de feiras de literatura; organizar saraus e lançamentos de livros; criar publicações conjuntas; explorar o universo das produções independentes; ler, comentar e acompanhar passo a passo os projetos dos colegas; ter meus textos criticados por eles; conhecer pessoas e lugares; ministrar oficinas; divulgar ideias; administrar redes sociais e compartilhar opiniões, sonhos e risadas.
Nossos interesses são vários: zines, cartuns, humor, poesia, ficção científica, ensaios, prosas de diferentes gêneros e formatos, colagens, cartazes, entre outros. Essa aparente incompatibilidade poderia ser um empecilho, como acontece com associações que ainda prezam pela tediosa homogeneidade; no caso do Discórdia, é ela que torna o movimento possível.
Certa vez fomos instados a diferenciar grupo de artistas e coletivo artístico. Percebemos que coletivo, mais do que o mero trabalho em equipe, é uma forma de estar juntos, compartilhar uma comunidade, participar de algo vivo e complexo, que é o encontro com o outro. É generosidade, abertura, interesse. A partir da nossa experiência pudemos afirmar que o coletivo não é um agrupamento de autores, mas um espaço comum em que as individualidades se dissolvem e se confundem para que alguma criação possa acontecer. O coletivo Discórdia é uma oportunidade para discordar e permanecer unidos, tensionar limites estético-políticos e resistir às opressões, produzindo por meio da diversidade que, no fim das contas, é feita das potências de cada integrante dispostas numa relação ética.
O GEPPS, por sua vez, nasceu como um grupo de orientação de pós-graduação que num determinado momento se emancipou. É composto por pesquisadores com formações diversas: artistas, escritores, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, produtores culturais e historiadores, teóricos e críticos de arte decididos a elaborar outras formas de relação, atuação e funcionamento. Somos atravessados por inquietudes que apontam para temas como: poéticas e políticas do sensível; experiências na interface entre arte e produção da saúde; aspectos da experiência no contemporâneo; teoria, curadoria e crítica de arte; processos escriturais; ética, estética e política; clínica; produção de subjetividade; linguagens e poéticas artísticas; territórios; memórias, histórias e narrativas; formas de emancipação.
Diante de políticas que avançam sob a racionalidade neoliberal, em que territórios – geográficos, científicos, subjetivos, entre tantos outros – são cada vez mais disputados, prevalecendo a lógica da posse, da acumulação e da concorrência generalizada, propomos inventar espaços para experimentar modos de pesquisa e de produção de conhecimento pautados em outras perspectivas. Criações singulares que emergem de uma lógica transdisciplinar, em que as composições de campos distintos parecem mais urgentes do que os especialismos que pretendem salvaguardar territórios do saber e da ciência. Partilhas tecidas como artifícios de insurgência, convocando modos de pensar e de se posicionar criticamente diante de questões atuais.
No GEPPS também compartilhamos sonhos, e a potência de sonhar coletivamente é tão forte que quase podemos agarrá-los com as mãos. Ao longo dos anos aprendemos a produzir juntos, desfazendo a autoria individualista; abandonamos certezas; criamos textos, cursos e projetos de intervenção; colaboramos com mobilizações políticas em defesa da universidade; organizamos eventos; sustentamos grupos de estudo; encubamos desejos ainda informes; negociamos responsabilidades e apoiamos uns aos outros em nossos projetos pessoais.
Compor grupos assim é um privilégio raro, ainda mais por eles tentarem escapar de uma tendência à institucionalização. Esse desvio não é simples, assim como não é simples sustentar lugares de troca e de criação que não sejam baseados na obrigação, na subordinação ou na falta de opção. Lugares horizontalizados, que não dependam da imposição hierárquica para operarem e onde cada integrante tenha o espaço que deseja e do qual pode cuidar. Onde a força do trabalho coletivo ganhe corpo, pautada no respeito e no propósito de estar junto, fazer junto, aprender com o outro e colaborar com todos sem intenções mesquinhas.
Uma aproximação com tal qualidade entre pessoas é, por si só, uma forma de recusa às opressões que infelizmente modelam grande parte das relações sociais, organizacionais, empresariais etc. É também uma forma de realizar o que, sozinho, seria impossível.
Cada vez mais precisamos abrir os acontecimentos e observá-los sob diferentes escalas e ângulos para combater a naturalização das máquinas de governança que achatam formas e homogeneízam modos de fazer, de pensar, de dizer e de se movimentar, aprisionando a vida.
Com a cultura e a educação brasileiras ameaçadas, a potência desses coletivos constitui um lugar de proteção, uma oportunidade de partilha de certo sensível fragilizado diante da racionalidade dominante e, sem dúvida, uma preciosa forma de sobrevivência.