Cena de Empire (1964), de Andy Warhol |
Andy Warhol é bastante conhecido pelas serigrafias de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Liz Taylor. Ele também retratou outros ícones da cultura norte-americana, tais como as latas de sopa Campbell’s e as caixas de esponja Brillo. Acontece que todos esses trabalhos são de um período inicial de sua carreira. Com o passar dos anos, o artista foi se interessando cada vez mais pelo cinema e, depois, pela televisão, produzindo em ambos os formatos. Filmes, por exemplo, são cerca de setenta e cinco. Talvez o mais emblemático seja Empire, de 1964, que ultrapassa oito horas de duração.
O enredo de Empire é mínimo: Warhol levou uma câmera até um prédio vizinho – uma janela do Rockefeller Center –, apontou-a para o Empire State e deu início à gravação, substituindo os rolos na medida em que acabavam, a cada trinta e cinco minutos. O resultado, para o espectador, pode ser tão entediante quanto o artista desejava; Warhol dizia adorar o tédio.
Difícil encontrar alguém com disposição de ver o filme inteiro. Por que Warhol o quis assim, afinal? Por que gravar oito horas de um prédio – estático, naturalmente –, se nada acontece? Por que produzir um filme quase impossível de ser assistido?
O primeiro ponto é que, apesar da inércia aparente, muita coisa acontece nesse retrato de um dos mais célebres edifícios de Nova York. As nuvens transitam no céu, o sol se põe, os refletores da fachada se acendem. Não bastasse isso, uma infinidade de ações tem lugar além do alcance visual do filme e, por consequência, dos nossos olhos: pessoas trabalham dentro e fora do Empire State, caminham nas ruas, nascem e morrem. Em outras palavras, a vida acontece ao mesmo tempo em que o filme roda.
Por mais fiel a ela que pretenda ser, o filme não é a vida que retrata, embora passe a fazer parte dela depois de ser produzido; trata-se de uma elaboração técnica disposta à apreciação estética do espectador. Por mais realista que se queira, Empire é uma conformação artística que se destaca do banal. É um “objeto de arte”, além de um objeto qualquer. Esse paradoxo nos leva a uma possível definição da arte, esteja ou não relacionada a um objeto material: um gesto poético dado à experiência estética que se distingue da vida comum.
Claro que toda tentativa de encerrar a arte numa definição absoluta está fadada ao fracasso. Nosso objetivo aqui é somente instaurar uma referência que possibilite pensar quais práticas ditas “artísticas” se enquadram ou não naquele quesito, e a partir daí elaborar conceitos críticos, comparativos, referenciais etc.
Se Empire apresenta certo realismo formal, notamos que esse sufixo “ismo” já denota imitação, criação ou fingimento, no sentido da ficção e da ilusão de que mesmo a arte realista não escapa. Quer dizer, ainda que o Empire State seja mostrado “tal como é”, o enredo é de natureza criativa, o registro é poético e momentâneo, e o retrato o mostra “tal como Warhol o quis”, conforme a sua perspectiva e o objetivo do seu projeto cinematográfico. Pois mesmo a arte realista é ainda uma elaboração que se distingue da “vida real”.
Essa ideia nos ajuda a olhar proposições mais contemporâneas, especialmente as de cunho relacional, e a nos perguntar o que detêm daquele modelo de arte e o que escapa a ele. Arte social, arte política, arte terapia etc. são cada vez “menos arte”, no sentido convencional, na medida em que se aproximam da vida comum. Sob o risco de se tornarem outra coisa, colocando-se em diferente registro de apreensão. Não digo isso num sentido conservador, como se a arte precisasse ser preservada de um jeito determinado; pelo contrário, talvez esse seja um risco promissor, se junto forem assumidas também as consequências do afastamento da “instituição Arte”.
Com o artifício do tédio e do realismo, o filme Empire nos convoca a pensar a rotina da metrópole, a falta de tempo, o vício no consumo de novidades e assim por diante. Sua lentidão incomoda porque nos desacostumamos a ela. Fomos educados a gostar dos filmes repletos de reviravoltas, adrenalina, personagens ou relacionamentos idealizados. A disposição que o filme de Warhol requer, entretanto, parece muito além do que podemos oferecer. Mesmo que se trate de uma celebridade encantadora como o Empire State.
Por conta desses tensionamentos entre o banal e a maneira como a arte o concebe, o gesto do artista retorna e nos convoca a rever a vida tal como ela é para nós, espectadores. Com sorte, cada um se põe a reinventar o próprio viver. A irreconciliabilidade entre o comum e o estetizado é o ponto de inflexão dessa arte contemporânea que pode de fato produzir transformações, deslocamentos e reconfigurações da vida, indicando como ela ainda pode vir a ser.