Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio |
Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.
Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.
O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.
O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.
Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?
De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.
Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.
Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.
Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.
Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.
Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.