Monotipias de Mira Schendel (1964-5) |
A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.
Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?
Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.
Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.
Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.
Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br |
Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.
Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.
Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.
A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.