O dia 23 de janeiro era como outro qualquer até este ano de 2018, quando nasceu minha pequena Lis. Agora a data será sempre especial.
Sinto-me privilegiado por ser pai de menina. Durante a gestação, várias vezes percebi olhares desapontados, vindos de homens e mulheres, como se a expectativa fosse um bebê macho. Porque homem quer menino para fazer companhia, porque menino dá menos custo, porque menino carrega o nome da família. Nunca entendi essas crenças. Eu sempre quis uma menina.
Algumas amigas entendiam perfeitamente. Conheciam a origem do meu desejo: as meninas têm um projeto ambicioso pela frente, que é tornar o mundo mais feminino. É uma missão urgente, da qual precisamos muito. Não depende só delas, mas é nelas que vejo a força para realizar o devir feminino da humanidade.
Numa entrevista a Jonathan Cott parcialmente publicada pela revista Rolling Stone em 1979 e depois transformada em livro, Susan Sontag disse acreditar que o mundo seria mais atraente “se os homens fossem mais femininos, e as mulheres mais masculinas”. Isso tem menos a ver com sexualidade e mais com forma-de-vida ou, ainda, com ser no mundo. Feminilidade e masculinidade são como intensidades manifestas tanto nos homens quanto nas mulheres. Infelizmente a masculinidade anda forte demais em ambos.
Eu concordo com Sontag, em especial no que diz respeito ao mundo ser mais feminino. Porque a subjetividade dominante é machista, lógica, belicosa. Ela nos faz acreditar que é melhor ser menino. Faz, inclusive, as meninas acreditarem nessa bobagem. Ao ponto em que, de fato, passa a ser melhor por ser mais fácil.
Movimentos feministas se empenham há pelo menos um século para virar o jogo. Agem de variadas maneiras, as quais aprovamos ou reprovamos, e por aí o debate se estenderia ao longo de muitas páginas. Eu tampouco me sinto o suficiente apropriado do assunto, prefiro deixá-lo a quem sabe dizer melhor. Por ora, posso apenas voltar à minha Lis e fantasiar que desenvolva certa sabedoria feminina, sensível, mágica, intuitiva, que tanta falta nos faz na dureza do hoje.
Por sua vez, nenhum relato meu daria conta do poder da mulher gestante, que tanto me surpreendeu. Pena que a sociedade não se organizou para acolher, respeitar e dar vazão a ele. Talvez o maior mistério da vida esteja se realizando agora mesmo, perto de você, e poucas pessoas se solidarizam, seja para dar lugar no ônibus, seja para lutar por melhores condições trabalhistas, seja para admirar.
A distinção fica evidente no parto, quando a mulher se contrai em fé e dor para o bebê vir à luz, enquanto o homem ao lado não pode fazer nada, exceto estar junto. A sensação de impotência sobressai a toda macheza da cultura. Eu estava ali e nada dependia de mim, não havia nada a fazer. O momento era todo dela.
Penso se não é também por isso que a cesariana ganhou tanto espaço, ao ponto de o Brasil ser uma aberração frente a demais países – porque ela atenua esse poder que é só da mulher, transformando o mito da criação num procedimento cirúrgico automatizado. Claro que a questão é mais complexa. Existe ainda a idealização do “mundinho feliz”, em que é proibido sentir dor, em que o parto requer maquiagem. Existe a conveniência dos obstetras que agendam nascimentos como horários de cabeleireiro. Existem as extorsões que Ministério da Saúde e convênios fingem desconhecer.
Outra coisa que minha filha me ensinou nesses seus primeiros dias de vida é que não devo me sentir estúpido por saber tão pouco a seu respeito, mas privilegiado pela oportunidade de aprender. Lis é um animalzinho cheio de instinto que dominou tempo e espaço. Menospreza meu linguajar rebuscado ao ponto de ele ser inútil. Eu é que preciso aprender seus meios para convivermos.
Numa dessas madrugadas de colo, enquanto me punha a dançar para acalentá-la, Lis botou os olhinhos num quadro que tenho na cozinha, estampado com versos de Neruda que dizem: “assim, a cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho”.
As últimas madrugadas, confusas entre o sono e a vigília, foram como sonhar acordado. Aos poucos a fantasia esmaece perante a luz do sol e revela uma bebê em sua pequenez, respirando paz, indiferente a tudo o que imagino para ela.
Percebo que minha vontade pouco importa. Não deixa de ser uma espécie de egoísmo, talvez até um preconceito disfarçado de boas intenções (o tipo mais perigoso). Aqueles projetos, ambições e expectativas precisam ser depostos. Não devo colocar em suas costas os desejos meus nem os que penso ser da humanidade. Devo é estar ao seu lado, oferecendo a ela toda a condição possível para que encontre os seus próprios desejos. Para que exercite, ao longo da vida, sua potência de ser. Meu papel, daqui em diante, é preparar o solo para a flor de Lis. Eu não poderia estar mais realizado.