Arlequin au violon (1919), de Juan Gris |
A reunião de pontos de vista não fundamenta verdade absoluta sobre o assunto. Pelo contrário, ela apenas comprova que não pode existir verdade que não seja meio ficcional e meio ilusória. Mas o exercício de construir um comum a partir de tantas perspectivas pode levar a um dissenso, ou seja, a um lugar onde a diversidade convive com dignidade. Um comum onde os direitos são assegurados, onde todos têm voz e onde a ética medeia as relações. Uma utopia, sem dúvida. Que precisa ser sonhada, buscada, experimentada. Tal como os cubistas fizeram.
Toda relação provoca tensões. Por mais semelhantes que sejam em suas complexidades, há sempre pontos de discórdia entre um e outro sujeito. São as tensões que mantêm as relações pulsando. O exercício político deve cuidar para que elas continuem a manter vivo o organismo social. “Verdade absoluta é outro nome que se dá para a morte”, Jean Baudrillard escreveu certa vez.
Há quem pense que a arte está aí para atenuar as tensões. Eu acredito no contrário. O próprio ato de criação já implica embates terríveis do artista com a obra. Embates violentos. O pintor, por exemplo, precisa destruir o seu próprio olhar para produzir uma imagem de arte. Precisa rasgar a tela, rasgar os clichês, rasgar a si mesmo; arrancar de si um ponto de vista que desconhecia. O escultor deve destruir sua própria forma para criar condições ao surgimento de outra. O coreógrafo precisa esvaziar-se de movimentos para que seu corpo produza gestos. O músico deve desaprender a ouvir para ressoar sonoridade outra. O fotógrafo deve deseducar o olhar. E assim por diante. Sempre tensões vitais.
O mesmo vale para outros campos do conhecimento? Não tenho afinidade, mas suponho que sim. O professor deve destituir-se do lugar de enunciador para criar pedagogias e didáticas. O advogado precisa escapar dos manuais de direito. O neurocientista precisa levantar-se contra os procedimentos tradicionais da ciência para criar novos paradigmas. O arquiteto deve pôr abaixo ideais de construção para projetar o edifício jamais habitado. Todos mirando a comunidade que vem.
Posso falar com alguma propriedade do escritor. Ele precisa desativar os mecanismos da própria língua. Não ceder aos significados prontos; desviar das armadilhas do lugar-comum. Refiro-me ao escritor que pretende fazer arte – há diversas atuações para o profissional da escrita, e nem todas têm essa vocação. Mas o artista das letras precisa jogar a própria língua contra a parede, torturá-la, fazê-la confessar o que não sabe. Deve levar cada palavra ao limite da sua realização, àquele ponto de caos em que ela já não se reconhece. Deve, com essas palavras, criar cenas e situações capazes de provocar a realidade. Falhará, inevitavelmente. É impossível sustentar tamanha destruição. Ficará devendo. Quem disse que é fácil?
Há quem pense que a arte está aí para atenuar tensões. Eu acredito no contrário: a arte vem para produzir tensões, ou para explicitar as que se encontram debaixo do tapete, ou simplesmente para potencializá-las. Mesmo quando agrada, a arte deve instigar o pensamento. Por que agrada? Em que o agrado se baseia? Quais perversidades minhas se realizam nesse prazer inexplicável? O encantamento estético oculta perigos traiçoeiros. Convém abrir os olhos.
A arte não informa nada. Ela desinforma, deforma, desenforma. Gilles Deleuze explicou assim durante uma convenção de cinema, em 1987: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém informa, diz a você em que deve crer. A informação é o sistema de controle. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, ela não contém estritamente a menor informação. A obra opera como contrainformação e se torna eficaz quando é ato de resistência.
De acordo com o filósofo, apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sobre a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.
Eu tenho dúvidas sobre como proceder com a resistência. Porque me parece que em raras ocasiões ela não é apenas um adversário jogando o mesmo jogo com as mesmas cartas, tentando assumir o poder. Raras vezes o resistente não fará girar as engrenagens tradicionais da máquina de governo.
Por sua vez, se não houver resistência, como será possível pensá-la? Se não houvesse Cubismo, como poderíamos analisá-lo e produzir críticas? É preciso olhar com cuidado e sempre perguntar em que medida a resistência de fato é um ato criador e em que medida apenas reitera os mecanismos do poder. Se este último caso prevalecer, é preciso inventar formas outras de resistir. É preciso que os insurgentes se destruam a si próprios para criar novos meios e métodos de levante.
Se a resistência parece hoje um tanto desvitalizada, ou pior, se ela se confunde cada vez mais com a brutalidade reacionária, os resistentes precisam ter a audácia de destruírem a si próprios. Toda destruição é também ato de criação; uma potência de vida capaz de sobreviver ao extermínio da diversidade, das tensões e das formas de existência no comum.