A começar com a constatação de que as histórias da humanidade são contadas por meio de rastros e arquivos. Constituem-se daquilo que resta dos apagamentos, esquecimentos e silenciamentos do vivido. Uma parcela ínfima da imensurável totalidade da vida sobrevive ao tempo. Por isso a natureza da história é lacunar, “resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé”, diz Georges Didi-Huberman. Para quem “o arquivo é cinza não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu. É ao descobrir a memória do fogo em cada folha que não ardeu, onde temos a experiência de uma barbárie documentada em cada documento da cultura”.
Uma tarefa do historiador seria esta: investigar reminiscências da cultura e buscar, na sua memória, a silenciosa barbárie que a produziu.
Por sua vez, a arte pode colocar em xeque as narrativas hegemônicas da humanidade? Romper com certa ordenação do passado e do presente, sugerir desvios e linhas de fuga, abrir fissuras na solidez dos fatos? Dar a ver apagamentos que produzem regimes estético-políticos?
Acredito que sim: alguns trabalhos de arte podem provocar as certezas estabelecidas, abalar as estruturas, ouvir os silêncios. Essa hipótese se fundamenta na obra de Adriana Varejão, em especial na sua pintura intitulada Mapa de Lopo Homem II, criada a partir da apropriação de uma cartografia portuguesa do século XVI na qual a artista intervém com o artifício das feridas e tentativas de sutura. Incisões numa dada realidade colonialista que deixam ver não uma verdade por detrás, mas as infecções daquilo que permanecia oculto sob a pálida superfície do banal. Como se as feridas da história não tivessem cicatrizado e agora inflamassem. Como se uma força silenciada quisesse irromper de dentro da pintura. Como se as cinzas do passado ardessem outra vez.
Mapa de Lopo Homem II (2004), de Adriana Varejão |
Poderíamos dizer que Adriana profana a história maior, contada pelos colonizadores, que requer para si o estatuto de verdadeira, oficial, comumente aceita. Como alternativa, cria histórias outras, menores, experimentadas na carne e impressas nos corpos.
Vimos que a natureza da história é lacunar, uma vez que pouco sobrevive ao esquecimento. Portanto, “cada vez que depomos nosso olhar sobre uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição”, sugere Didi-Huberman. Uma força poderosa contrariou o desaparecimento ao qual tudo está fadado e contribuiu com alguma narrativa da humanidade. É dever do historiador perseguir as pistas que levam ao como, ao por quê, ao quando e ao quem de tal força, que quase sempre são plurais, complexos e um pouco inexatos. Mas invariavelmente estão relacionados com o poder e o possível.
Para exercer o seu poder, essas forças incidiram sobre os possíveis da vida, tornando parte deles impossíveis de se realizarem, num processo de submissão que produz outra espécie de desaparecimento. Digo outra espécie porque não se trata daquele lacunar, relativo ao que não sobreviveu na memória dos homens, mas a um desaparecimento perverso, provocado pela opressão, pelo descaso, pelo autoritarismo, pelo policiamento higienista e/ou moralista que frequentemente se exerce para silenciar as insurgências daquilo que está vivo, que é menor e que se inflama sob a superfície domesticada da existência.
Se dermos uma dobra no que Didi-Huberman propõe, encontraremos um dever ainda mais exigente do historiador: investigar os desaparecimentos que sustentam as evidências, os discursos, os conhecimentos da História. Desaparecimentos que sobrevivem ao extermínio, às extirpações e às demais violências exercidas por aquilo que é hegemônico. E que não estão nas lacunas, mas nos próprios arquivos da História, nas entrelinhas das suas narrativas legíveis e legitimadas. Pois tampouco o que sobreviveu está completamente explicitado. Além do silêncio do que desapareceu há os silêncios implícitos: o não dito, o censurado, o tabu, o insignificante, o desprezível, as vozes menores sufocadas por autoridades.
Uma tortuosa tarefa, pois esses invisíveis são também um pouco indizíveis e impensáveis. Porém, uma vez dispostos numa cadeia de produção de subjetividades, eles mantêm em operação máquinas de governo.
Tais desaparecimentos, que habitam o fora da linguagem e que portanto não se inscrevem, talvez sejam os pontos em que os arquivos falham. É para eles que devemos olhar. Didi-Huberman propõe que o historiador da arte recupere as cinzas do passado, e que a princípio parecem inertes. “É preciso acercar o rosto e soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu perigo”.
À sua maneira, é o que Adriana Varejão faz nos interstícios da História da Arte: ela reaviva a chama dos fatos e dados que parecia extinta, reabre os arquivos, atacando as aparências domesticadas, superficiais, e assim revive a experiência no corpo da obra. Seu trabalho tem o potencial de reordenar imaginários, forças e fragilidades. Sua aposta é a própria pintura. Pois tornar visíveis os imaginários, apresentando aquilo que têm de ambíguos, suspeitos, paradoxais, talvez seja um passo para fazer a história falar e tornar os silêncios perceptíveis.