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domingo, 20 de agosto de 2017

QUEM É RAFAEL BRAGA?

Foi com descrença que descobri a exposição OSSO, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até pouco tempo atrás. O subtítulo deveria ser autoexplicativo: exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Digo “deveria ser” porque, de fato, pouca gente sabe de quem se trata, pouca gente sabia e, dada a minha descrença geral, penso que pouca gente saberá, apesar de toda a mobilização social dos anos passados. Pouca gente sabe ou pouca gente se importa? Como anunciou o apresentador da Band News FM na noite em que se organizou uma manifestação na Avenida Paulista, havia ali um grupo de pessoas reivindicando a libertação de algum presidiário, que ele, jornalista, não fez questão de conhecer. A notícia dizia que, somada à chuva e ao frio, a manifestação atrapalhava o trânsito na cidade. Um problema que afeta a vida de muitos, compreende? Pois só no último mês, em São Paulo, houve a exposição de 29 artistas, houve a manifestação popular, houve debates naquele mesmo instituto e oficinas de cartazes no CDP Pinheiros III, além de diversas outras movimentações no restante do país. Mas quem é mesmo Rafael Braga?

Mais informações em:
libertemrafaelbraga.wordpress.com
Conhecemos, no máximo, a sua condição por “ouvir dizer”. Trata-se do único jovem detido e condenado durante as manifestações de 2013. O crime: portar um frasco de desinfetante e outro de água sanitária no ato da abordagem policial. Materiais inflamáveis usados para produzir explosivos, segundo a acusação. O que transforma todos nós em terroristas potenciais, e todo supermercado num paiol. Quatro anos e oito meses de reclusão.

Em dezembro de 2015, Rafael Braga recebeu tornozeleira eletrônica e passou ao regime aberto. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais quando foi detido outra vez, flagrado com maconha e cocaína. A vítima nega as acusações e afirma ter sofrido extorsão, espancamento, entre outras violências nunca investigadas. As únicas testemunhas foram, claro, os policiais que o detiveram. Que poderiam ser também seus algozes, se o rapaz fosse ouvido. 11 anos e 3 meses de prisão por associação com o tráfico de drogas.

Será inocente? Se for culpado, seria o sistema carcerário uma boa solução? Enquanto cidadãos preocupados com a sociedade, estas são perguntas que devemos fazer sempre. Temos a quarta maior população carcerária do mundo. Se a situação só piora, algo precisa ser revisto.

Muita gente compra drogas ilícitas cotidianamente. Autoridades abusam do seu poder e praticam violências cotidianamente. Mas quem está preso é Rafael Braga: jovem, negro e pobre. Desde 2013, nós continuamos com os nossos afazeres cotidianos. Inclusive, muito preocupados com o congestionamento nas noites chuvosas.

A exposição OSSO, as manifestações e as demais atividades de mobilização não têm como exigir a soltura de Rafael Braga. O que podem fazer, fizeram e ainda fazem, é reivindicar para ele o mesmo tratamento dado a qualquer outro cidadão, nem mais nem menos. Algo, em tese, tão simples, mas em que é difícil acreditar. Por quê?

Foi bonito ver a FLIP deste ano dar voz a escritores negros e a causas menores. (Menores não porque são menos importantes, pelo contrário; elas têm menor representação política que defenda seus direitos.) Mais da metade da população do Brasil é negra ou parda, entretanto a plateia em Paraty era majoritariamente branca. Um evento cultural elitista, sem dúvida, que serve de ilustração às nossas desigualdades sociais.

Os meios de comunicação apenas reiteram a falsa soberania branca. Assim como faz o descaso das autoridades, com a falta de políticas públicas igualitárias. Compartilhamos nas redes sociais cada bobagem do Trump sobre racismo. Por que não defendemos com o mesmo afinco a demarcação das terras indígenas e quilombolas? Assunto que diz respeito à economia, à causa social, à história e à cultura do nosso país, mas que é menosprezado como caso de invasão de propriedade. De fato, existe invasão e apropriação de terras desde 1500. Crimes cometidos pelo Estado que até hoje não conseguimos resolver.

Não faz muito tempo, o telejornal local cobria a libertação de reféns durante assalto a uma agência dos Correios. Aconteceu perto de casa, fiquei assistindo. As imagens eram transmitidas ao vivo. A primeira refém liberada foi uma mulher. Ela saiu pela porta da frente, o soldado das operações especiais foi até lá e a escoltou para um local seguro. O segundo refém foi um oriental. O agente cumpriu o mesmo procedimento. O terceiro refém era negro. O agente foi até ele, mandou-o encostar as mãos na parede, revistou-o e o liberou. Tenho certeza de que a maioria assistiu à cena sem perceber nada anormal. Eu não tive como. Desliguei a TV.

Nossa subjetividade vai sendo domesticada, ao ponto de não ver com o mínimo discernimento. É por isso que quem não se identifica nessa ou naquela minoria tem condição de dizer como é, o que deve ser feito, quais são os problemas reais. Cotas, demarcação de terras, assédio, preconceito, violências diversas. Eu não tenho a menor condição de dizer. Quero conhecer, ouvir, pensar junto. Quero defender o direito de o outro falar e ter o seu amplo direito de defesa garantido. Porém jamais posso dizer em seu lugar. Porque falarei bobagem, cometerei injustiça e exporei todos os preconceitos subjetivados. Não quero dar vazão aos preconceitos, mas a cultura me educou assim. Como posso evitar? É um esforço fadado ao fracasso. Que não por isso deve ser abandonado.

Tolo é quem pensa que a discriminação é problema dos outros. É um problema de todos os brasileiros, possivelmente o mais grave. Discriminação social, racial, regional, de gênero etc. E sobre nós incidem as consequências. Se de alguma maneira todos fazemos parte de uma minoria, também é fato que somente algumas estão fragilizadas e sofrem ameaças perigosas. É delas que devemos cuidar. Não por favor ou misericórdia; é obrigação civil.

Minha descrença na situação do país vem acompanhada de desânimo e inércia. Por sorte a arte, as organizações sociais e os gestos singulares podem, cada um à sua maneira, mudar o que vemos e o que educa o nosso olhar. Podem provocar o pensamento, o corpo, os desejos. Transformar inércia em conhecimento, conhecimento em indignação, indignação em ação. Isso tem pouco a ver com acreditar ou desacreditar; isso é da ordem do fazer.

Aplausos para quem faz.

Rafael Braga somos nós.