No final do ano passado, tive o prazer de ouvir Carlito Azevedo recitar todo o Livro do Cão durante um debate sobre literatura e política. Trata-se de um longo poema do seu Livro das Postagens, lançado à época. Esbaforido, ele insistia:
O autor deveria estar aqui
mas é como se não fosse urgente
como se nada tivesse que ser dito
como se não estivessem batendo à porta
como se não estivesse batendo na nossa cara
como se não fosse urgente
O autor deveria estar ali, mas não compareceu. Irresponsável, enviou no seu lugar Carlito Azevedo, leitor. Um cão na iminência de ser devorado pela crise e sem consciência do perigo. A se justificar, inocentemente:
Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?
O real que se abate sobre nós, os cordeiros, é o invisível e o impossível que por acaso se realizam. Que, não por acaso, já eram sugeridos pela poesia. É por isso que alguns filósofos, ao investigarem o contemporâneo, vasculham poemas atrás de indícios. Giorgio Agamben recorre a A era, de Óssip Mandelstam. Alain Badiou recita As cinzas de Gramsci, de Pier Paolo Pasolini. E defende que a poesia e a matemática são as duas únicas atividades humanas realmente proféticas. Pois “todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real”.
Em sua palestra no 1º Seminário Online de Escrita Criativa, intitulada A poesia das coisas minúsculas, Tarso de Melo expôs a tese de que os grandes poetas são, de alguma maneira, desajustados em relação ao seu tempo. Cita, como exemplo, o mal estar de Drummond, “poeta da anotação”, a registrar em versos aqueles acontecimentos tão minúsculos que em geral passavam despercebidos aos demais. Acontecimentos não evidentes, que só ganhariam lugar no discurso tempos depois.
Outro exemplo de Tarso de Melo é Leonardo Fróes, cuja obra reaparece meio século depois e ganha atenção dos jovens. Por quê? Segundo o pesquisador, existe mesmo um deslocamento temporal do poeta com o seu leitor. Caberia aos interessados procurar nesse deslocamento – nessa falha ou lacuna – a intuição do poeta, que é um saber anterior à constatação da crítica. Intuir, nas palavras de Melo, é ver por meio do olhar minúsculo.
O que o poeta veria por meio desse seu olhar? Não as grandes obviedades, mas a potência invisível das virtualidades. Veria o sacrifício realizado onde, aparentemente, há apenas lenha, altar e faca, além das vítimas – ele próprio e todos nós.
A poesia seria, assim, uma espécie de sintoma do contemporâneo. Indício sensível do desconhecido ainda em vias de tomar forma. É justamente essa sensibilidade para o menor, no sentido deleuze-guattariano, que me interessa nas artes, sejam elas plásticas, visuais, literárias, musicais, dramáticas etc.
Eu completaria aquela ideia com outra, que vem se realizando sorrateiramente nas sombras da minha pesquisa de doutorado, e à qual devo atentar adiante: a ideia de que o termo “contemporâneo” não condiz com a maior parcela da arte que se realizou nas últimas décadas ou que se realiza hoje. Estas são produções atuais, num sentido cronológico e até estilístico, que talvez recebam rótulo apropriado em breve. Mas o contemporâneo não pode ser um estilo, não pode ser o que presentifica, muito menos o que evidencia as questões da atualidade, mas o que se desloca em relação ao próprio tempo e torna as questões obscuras, ambíguas, paradoxais.
Nesse sentido, eu simpatizo com Agamben, e aposto que contemporâneo é o que vem, ou seja, o que aponta para a condição futura, por ora apenas intuída, talvez um dia a ser constatada. Com uma ressalva: apesar da sua força profética, o contemporâneo não é o que induz – é o que dá condições para o acontecimento ser conforme o seu próprio desejo. É o que torna possível o virtualmente impossível. É o que realiza o real.
A forma virtual, intuitiva, é necessariamente poética. Seu sentido não está dado de antemão, mas em potência. E tal forma poética não se encontra somente no poema. Esse é o nosso desafio, enquanto espectadores e coautores do que vem: esmiuçar a vida em seus variados aspectos para quem sabe encontrar, na urgência do presente, as virtualidades que estão por vir. Não para constatá-las, evidenciá-las ou esclarecê-las; não para extirpar a sua poesia, transformando-as em discurso, mas para acolhê-las e para inventar condições de, por acaso, elas virem a ser.