terça-feira, 17 de maio de 2016
A ARTE DO ESQUECIMENTO
Haveria essa exposição em Lethe, um vilarejo incrustado nas montanhas do Nepal, distante dos clichês culturais que engordam sites de viagens, afastado dos circuitos turísticos mais populares de todos os tempos. Uma exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, com sutis intervenções curatoriais, proposta por uma artista que preferiria não fazer – se possível ela apenas seria, existiria, aconteceria. Pois haveria, distribuídos pela sala expositiva, livros encadernados com papéis vulgares, oriundos de cantos desconhecidos do planeta. Páginas e páginas em branco, imbuídas de narrativas desviantes, numa lógica irracional. Haveria também fragmentos do Mapa absoluto revelado por Borges, produzido por antigos Colégios de Cartógrafos na exata medida do Império que esquadrinhava, coincidindo pontualmente com ele. Perfeição tamanha que o tornou inútil – as ruínas do Mapa acabaram nos desertos do Oeste, habitadas por Animais e Mendigos. Tais fragmentos foram cuidadosamente selecionados para que a sua "linguagem de um fim" aludisse à decadência das utopias modernas.
Faria parte do programa emancipatório do museu cultivar as artes do encontro, da narrativa e do esquecimento. Todos os dias, habitantes de Lethe sentir-se-iam convidados a ler seus particulares livros manuscritos, seus papéis biográficos vulgares; contariam os acontecimentos daquele vilarejo onde nada acontece, como se vê, conforme acreditam as pessoas de fora, cidadãos de lugares onde acontece de tudo, conforme acreditam cegamente.
Chega uma senhora para contar do marido, morto num incidente anos antes, que foi visitá-la logo cedo. Fizeram o desjejum com chá preto, tâmaras e figos, pão seco e coalhada, seus alimentos favoritos. Passaram cerca de duas horas muito agradáveis em companhia um do outro, relembraram amores antigos, confortaram-se. Até o marido pedir licença e retornar à eternidade.
Uma menina contou que o universo seria muito menor do que imaginamos. Foi o que concluíra durante a aula de universidades, quando notou que o homem é a medida de toda a cultura; que só é capaz de ver o que cabe em seus olhos.
O padeiro de Lethe revelou que consertava relógios num continente vizinho, até incerto dia em que o pensamento se adiantou: nada acontecia quando os mecanismos deixavam de funcionar! O Sol e a Lua não se atrasavam. Em tempo, deduziu que seu trabalho tratava de uma ilusão aprisionante. Mudou-se para Lethe, onde faz pão, onde a massa cresce conforme a própria vontade. Às vezes antes da fome, às vezes depois.
Uma cabra baliu que a relva no alto da montanha é mais saborosa. Ao compartilhar tal sentimento, percebeu que, acaso morasse por lá e só provasse daquele sabor, a relva do sopé possivelmente lhe pareceria melhor. Além do mais, no inverno há neve no alto da montanha, ponderou a cabra. Tanta neve quanto não há relva.
Um grupo de velhos amigos cantou uma coletânea de odes ao passado, sobre costumes antepassados, sobre heróis que ninguém mais conhece, cujos grandes feitos parecem hoje pequenos e sem propósito. Alguns velhos não tinham certeza dos versos, mas continuavam a cantar, mesmo sem harmonia, com vozes dissonantes. Cantavam como podiam, num coletivo que jamais desafina. Não se tratava de cultuar o passado, mas de fazê-lo presente conforme ainda ressoasse.
Houve mais, muito mais; realizações sem registro técnico, apenas registros sensíveis. Por vezes sequer havia alguém a ouvir as histórias narradas pelos visitantes do museu. Elas existiam por si mesmas, celebravam o próprio ato da contação. Nenhuma era maior que a outra; não havia como mensurar intensidade, extensão ou relevância. Não havia como contá-las, pois interessava a qualidade mais do que a quantidade. Uma começava antes mesmo que a anterior estivesse finalizada. Essas histórias fizeram a exposição durar enquanto durou. Foram elas que fizeram o museu existir enquanto existiu. Terminadas, se é que terminaram de verdade, a tradição já não estava na linguagem, mas na consistência dos corpos que a carregam como a um fardo.
Da exposição se produziu um catálogo adornado com singelas páginas brancas, posteriormente distribuído a bibliotecas e a influentes intelectuais de todo o mundo. Não há nada escrito na capa, na lombada, no verso, na folha de rosto, no prefácio, no índice, no glossário. Não há texto, tampouco há imagens. Trata-se de um livro impecavelmente branco.
As cópias restam esquecidas, sem catalogação nem carimbo oficial, numa prateleira qualquer. Jamais publicaram resenha a seu respeito. Certos intelectuais sequer retiraram o invólucro. Outras cópias repousam em locais desconhecidos, aguardando o leitor desatento que as encontrará.
No museu, o texto de parede situava o visitante:
Para os antigos gregos, a palavra lethe significava "esquecimento". Seu oposto, alétheia, representaria a verdade, o desvelamento, a base de toda crença e de toda forma de realidade. A verdade é o que permanece. Ou seria o contrário, o que persiste na memória acaba por se fazer verdadeiro para os homens de juízo e boa intenção?
Lethe é também um rio do Hades. Quem bebe das suas águas abandona uma existência, uma cultura, um espaço e um tempo. Esquece quem foi, torna-se porvir. Toda verdade abandonada num processo de assepsia do real, à margem da excessiva humanidade. Livre.
Li a respeito do vilarejo de Lethe um dia desses, em algum lugar. Chega-se a ele através de um imenso rio de águas cristalinas, muito convidativas. Além dele, nada há.
Haveria essa exposição no Museu de Arte Efêmera de Lethe, uma exposição que nunca existiu.
Haveria, no lugar, somente uma inquietação: qual história perdurará?