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terça-feira, 8 de setembro de 2015

TODOS ÍNDIOS

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

Isto aqui trata daquilo que somos e do que pretendemos ser, disse Danilo Santos de Miranda na cerimônia de abertura da exposição. Somos índios. Quer queira, quer não. Todos aqueles que nos chamamos todos, somos todos os índios. Então, por que é tão estranho? Houve uma performance que simulava um ritual de tribo, eu estava ali no meio dos atores, eles cantando e dançando, eu estava ali e achava tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que achava estranho esse próprio estranhamento, tinha vergonha dele. Por que a cultura indígena é pouco familiar a nós, que somos índios – desde o berço – sem saber? Por que não identificamos seus meios nem apreendemos seus sentidos? Por que não somos capazes de enxergar nossas raízes, soterradas ainda vivas por toneladas de ordem e progresso, toneladas de preconceitos e desrespeito?

Se a voz não partir de dentro do peito, é melhor que nada fale. Não pode haver voz que fale "sobre" os índios. Que sujeito é esse que se põe de fora, que se põe acima e quer determiná-los? Os índios são isso ou são aquilo. Não. Ou os índios somos, ou é prudente calar a própria voz, calar essa arma que já disparou as ignorâncias mais violentas. Falar a respeito dos índios, mesmo sem conhecê-los, mesmo que o único índio já visto seja aquele da cartilha escolar, da letra "i", já é falar sobre nós, sobre esse sujeito que fala, sobre seu passado, seu presente e seu futuro. Sobre o que somos e o que pretendemos ser.

Entretanto o que o índio deseja é poder permanecer diferente de nós, explica Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo autor das fotos expostas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Essa igualdade diferente, antes de ser um paradoxo dos tempos atuais, é um dos problemas mais delicados que criamos para nós mesmos ao longo de séculos de massacres velados. É um problema de identificação cultural pautado na invisibilidade das vítimas e, pior, é questão de sobrevivência. Dos índios? Sim, de todos nós.

Chegamos a um ponto em que não parece haver solução. O que existe é somente a oportunidade de pendurar uma rede digna onde o corpo ferido do índio possa repousar. Onde nosso corpo, quem sabe, possa curar as feridas e aprender com as cicatrizes, caso sobreviva. Corpo, quer dizer, "conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus", segundo o antropólogo-fotógrafo. Corpo individual, corpo coletivo, corpo sociocultural. É a partir do corpo – e somente dele – que se dá nossa relação com o mundo. Variações do corpo selvagem, conforme o título da mencionada exposição.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro


O que pode ser feito é tocar o nosso sagrado com penas e sementes. Pintar nossa pele de urucum. Dar ritmo de chocalho à correria da metrópole. Incorporar a sensibilidade abandonada, vesti-la com pele de onça. Algo que os curadores Veronica Stigger e Eduardo Sterzi conseguiram propor com ética e sutileza. Pois não cabe idealizar o índio, não cabe idealizar a cultura nem a natureza, isso não faria o menor sentido; mas cabe muito bem provocar estranhamento, um estranhamento que denuncia nosso ponto de vista, que questiona nossas crenças, porque é somente assim que o índio em nosso sangue ouvirá o chamado e emergirá, esse índio que corre pela escuridão do nosso contemporâneo.

Freud dizia que estranho é o quase familiar, quase comum e reconhecível, que de algum modo não se encaixa na normalidade e por isso nos inquieta, por vezes até apavora. Próximo ao mesmo tempo em que longínquo. Esse estranho tem o poder de nos arrancar do conforto apático do dia a dia e nos levar a outro plano de realidade. Uma experiência transformadora, uma potência que, com sorte, vai nos fazer questionar a normalidade da situação. Não podemos continuar a achar "normal" o índio ser massacrado. Não podemos aceitar que suas terras sejam arrancadas à força. Não podemos achar normal que o índio continue sem voz política, invisível, impedido. Nós comemos alimentos indígenas, caminhamos por ruas indígenas, falamos com suas palavras, curamos enfermidades com suas ervas e ritos. Somos todos nativos do Brasil. Não é normal, nem jamais poderá ser, carregar um índio morto no peito, nem deixar que seu sangue morto corra pelos rios do nosso corpo selvagem. Já basta de civilização.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro