Faz
uns anos que li Bartleby – o escrivão, o escrevente, o escriturário, conforme a
tradução. E o que restou do livro foi uma lição de resistência aos mecanismos
perversos da vida. Não ao "Sistema", no sentido macropolítico. Mas às
engrenagens menores que botamos em funcionamento no dia a dia e que, talvez
para valorizar a nossa própria existência/relevância, acreditamos que não podem
parar. A micropolítica que nos atravessa o tempo inteiro, desde o bom dia ao
boa noite, senão além; na padaria, no ônibus, no banco, na correria do
escritório, na conversa com os filhos sobre o que aprenderam na escola, na hora
de preparar o jantar. Não é exclusividade de Bartleby – quer dizer, eu
raramente lembro das artimanhas da ficção. Os pormenores evaporam, faço uma
miscelânea de cenas e personagens, não consigo refazer a história de cabo a
rabo. Por fim, resta somente um sentimento, que carrego comigo, em especial
quando o livro deixou marca mais profunda. Uma sensação de literatura. Que não
guardo propriamente na memória, mas no corpo inteiro. Se me perguntam o destino
de tal personagem, por que falou tal coisa, em que momento o segredo se
revelou, o que aconteceu depois, admito que não sei. Seguindo a
linha do raciocínio, não lembro sequer das tramas que eu mesmo escrevi. Quase nunca sei
recontá-las. Porém cada livro deixa uma sensação, uma espécie de aura de
significados; um despertar pela literatura.
A
Metamorfose, de Kafka, se revelou uma
angústia de ser; K., de Kucinski, sintetizou a
violência do poder e seus métodos; Bonsai, de
Zambra, tratou do imenso potencial das coisas mais singelas. Não é raro eu me
lembrar apenas de que esse livro é leve, aquele é azul, o outro, quente,
acolhedor.
Bartleby me mostrou um caminho alternativo para a resistência; é o que vejo de mais contemporâneo nele. Para quem não conhece, essa breve história de Herman Melville fala de um sujeito peculiar, estranho, que é contratado por um advogado para fazer cópias de documentos, numa época em que elas eram feitas à mão. Um bom funcionário, no sentido produtivo: quieto, dedicado, que não enrola nem comete erros. Uma engrenagem bem azeitada na máquina do capital. Que em algum momento começa a querer girar num outro sentido. E que responde, às ordens do patrão, "I would prefer not to", eu preferiria não, talvez uma das frases mais emblemáticas do século XX – ainda que o texto seja mais antigo, publicado em 1853.
Sua
perspicácia está, justamente, em não "bater de frente" com seu
empregador. Ao dizer que preferiria não cumprir a tarefa – ao invés de
recusá-la terminantemente –, Bartleby coloca-se sob responsabilidade do outro,
que deve decidir seu destino. Ele não enfrenta a autoridade, mas com a sutileza
de um toque a enfraquece toda. O patrão daria a Bartleby uma tarefa que ele não
recusaria para não desagradá-lo, mas que faria contra a própria vontade. Ele
sabe disso. Só não sabe como reagir. É esse jogo de consciência que se
estabelece e quase leva todos à loucura, retirando-os da zona de conforto,
desestabilizando o que já estava instituído.
Isso me
marcou profundamente. E sempre que parece necessário intervir numa situação que
incomoda, apelo ao estratagema do escrivão, perguntando a mim mesmo qual seria
o caminho alternativo ao confronto direto, uma vez que este certamente levará
ambas as partes à violência e, portanto, à derrota. Nem sempre funciona, claro.
Mesmo assim esse método de resistência é mais inteligente e menos desgastante.
É também
um método menos narcisista. Porque não se pauta numa certeza, mas em
suposições, hipóteses, possibilidades diferentes. No lugar de "donos da
verdade" disputando o poder, insere-se a inexatidão, a dúvida, o convite à
reflexão e à revisão dos princípios.
Existe
uma grande quantidade de interpretações do livro de Melville, inclusive que o
vê como sintoma de esvaziamento e tendência à depressão, como Joel
Birman escreveu em O sujeito na contemporaneidade. E uma
interpretação não invalida necessariamente a outra. Seja como for, é
surpreendente como uma ficção tão curta permaneça tão relevante.
Para
mim, sua força está no próprio uso da linguagem, que rompe a dialética do sim e
do não ao criar uma zona de indiferença entre o sim e o
não, conforme Gilles Deleuze propõem em Bartleby, ou a fórmula.
Ele insere uma fratura na ambivalência do mundo. Expressando um "nada de
vontade", põe fim à lógica dos pressupostos, daquilo que procura se
sustentar porque "sempre fora assim", baseado numa tradição por vezes
importuna aos tempos atuais.
Bartleby
rompe a ordem. Depõe a verdade absoluta sem inserir outra no lugar, sem
continuar a alimentar o mesmo mecanismo de poder e dominação. É essa
resistência mais inteligente e menos violenta que a sociedade contemporânea
precisa produzir; é sua voz ambígua, subjuntiva, que precisa ganhar ouvidos
diante dos urros da ignorância imperativa, antes que o sistema entre em colapso
pelo excesso de ordem, antes que o absurdo do real se imponha pelo excesso de
razão.