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sábado, 27 de setembro de 2014

VERDADE, UMA ILUSÃO

Jovem triste num trem (1911),
de Marcel Duchamp
Posso entrar? Posso entrar aqui? Posso entrar? Posso? Posso entrar?

Entrou. Continuou falando alto. Palavras soltas, frases desconexas. Difíceis de entender, se fosse o caso. Talvez não quisesse ser entendido. Talvez não fizesse questão da lógica.

Posso sentar? Posso? Posso sentar aqui? Posso sentar, posso?

Sentou. No chão. Bloqueando a porta do metrô.

Conheceu assim a maior parte dos distintos cidadãos que voltavam para casa naquela noite fatídica, e tentavam entrar no vagão sem pisotear o sujeito meio sentado meio deitado bem no meio da passagem. Desviavam dele, escapavam pelas bordas. Afastavam-se.

Os mais distraídos eram surpreendidos por um aperto de mão.

Aqui. Não tenha medo. Não tenha medo de mim. Não. Aqui. Aqui. Não tenha. É. Precisa ter medo não.

Chegou a beijar a mão de alguns. A fazer uma espécie de reverência. Teve quem se abaixou para cumprimentá-lo melhor. Teve quem retribuiu o carinho. Teve gente sem graça. Teve gente que se espremeu para longe, preferindo não se envolver.

Ele ficou a balbuciar daquele jeito esquisito, atropelando a língua, desconstruindo a linguagem em linguajares, falando consigo mesmo. Prestei atenção. Reconheci algumas palavras e fiquei intrigado. Permaneci com os olhos pregados no livro que trazia comigo. Não queria parecer indiscreto. Os ouvidos, entretanto, sondavam aquele homem sentado no chão do trem, que entre uma frase e outra insistia em cumprimentar os demais passageiros, mesmo quem já tinha sido cumprimentado antes.

À minha frente, num assento de uso preferencial, estava outro homem, com cerca de quarenta anos de idade. Sua expressão desaprovava o comportamento extravagante do primeiro sujeito – que, para ser sincero, incomodava mesmo. Ele simplesmente não conseguia ficar quieto.

Tentou cumprimentar o homem no assento preferencial. Ficou com o braço estendido no ar e só obteve uma risada sarcástica como resposta.

Nesse momento, minha discrição já tinha sido deixada de lado junto com o livro, e eu prestava atenção em tudo que acontecia ao redor. As frases estranhas se multiplicavam pelo vagão. Cada vez que eu reconhecia uma palavra, ficava mais e mais surpreso, mais e mais curioso.

Passaram algumas estações. Não sei dizer quantas.

Posso sair? Posso? Posso sair aqui? Sair? Posso? Hã?

Saia de uma vez!, foi a sugestão do homem no assento preferencial, dada com o mesmo tom cruel da risada que a precedeu.

O falador não ouviu. Deixou o trem momentos antes de a porta bater, quando o alarme já perdia o fôlego, só para dramatizar ainda mais a cena. Imediatamente o homem no assento preferencial tomou a palavra.

Cachaça é a pior droga que existe. Está aí, ao alcance de todos. Acaba com as pessoas. Destrói famílias. A cachaça é a pior droga que existe, todo mundo tem acesso, é só ir ali e comprar.

Cheio de razão, falava com a mulher sentada ao seu lado, que decidiu dar ouvidos e repetia suas frases como um papagaio. Também balançava a cabeça afirmativamente, concordando.

O homem queria proibir a cachaça, era evidente. Tão evidente quanto a eficácia da solução. Afinal, ninguém usa outras drogas, uma vez que estão proibidas. Não existe sonegação de impostos, pois é proibidíssima. Abuso de poder idem. Pirataria e corrupção nem se fala, foram extintas assim que oficialmente proibidas. Conclui-se que: proibir é a solução para os nossos problemas.

Ao menos era o que pronunciava o homem do assento preferencial. O que não sabia é que não se tratava de cachaça nem de droga nenhuma; o sujeito falador estava num estado psicótico. Sequer cheirava a álcool. A história da cachaça foi um delírio preconceituoso. Talvez uma crise de abstinência moral.

Outra coisa que o homem não percebeu, talvez porque ignorava as línguas, é que o balbuciar do falador se dava em francês e alemão. Que entre duas frases desconexas havia citações de Os sofrimentos do jovem Werther – não domino a língua, mas reconheci os personagens. E que aquele som gutural repetido infindavelmente se referia a Goethe. Goethe. Goethe.

Não à toa, o acontecido pareceu espetáculo de ficção. Que o homem no assento preferencial ignorou, percebendo nele apenas aquele seu discurso embrutecido, ao qual se acostumou ao longo do tempo e que ganhou o absolutismo da verdade. Discurso que se ouve, aceita e reproduz sem dificuldade. Que nasce da ignorância e gera mais ignorância. Gera violência. Intolerância. E não ajuda ninguém, afinal.

A cena no metrô também reforçou a suspeita de que, mais grave que certas psicoses é a neurose de se achar dono da verdade, como se a posse dela trouxesse algum tipo de riqueza. Como se essa riqueza comprasse um lugar na sociedade.

Conforme Giorgio Agamben nos alerta (em Ideia da prosa), "toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade".