No Estado de São Paulo, a crise chegou às universidades. Nos vários anos em que frequento a USP, já vivenciei algumas greves, porém nenhuma tão exigente quanto a atual. Acreditar que o problema é o 0% de reajuste nos salários oferecido pelo reitor é tão ingênuo quanto dizer que as manifestações de 2013 solicitavam apenas a redução de R$ 0,20 no preço das passagens. A questão salarial cresceu, e no momento presente todo o sistema da instituição está sendo revisto. Se não mudar, não voltará a operar, e com isso todos perderiam muito. Inclusive você, leitor.
As reivindicações são claras: abertura das contas, auditoria, diálogo, administração competente, maior participação dos docentes, alunos e funcionários nas decisões, reajuste salarial conforme padrão em outras categorias, melhores condições de trabalho, infraestrutura adequada e, talvez mais importante, autonomia.
USP, UNESP e UNICAMP se encontram hoje subjugadas pelo Estado. Quando deveriam, sim, dispor de autonomia, já que a universidade pública seria uma instituição livre dos interesses econômicos e políticos. Ela precisa de autonomia para tomar decisões administrativas e para colocar em debate assuntos que possam prejudicar o próprio governo ou o mercado. Pois um dos seus princípios é a reflexão crítica.
Nesse ponto, concordo com Jacques Derrida, que almeja a uma universidade sem condição, ou seja, de entrega completa a seus próprios interesses, autônoma para discordar e propor mudanças: "lugar em que nada está livre do questionamento, nem mesmo a figura atual e determinada da democracia; nem mesmo a ideia tradicional da crítica, como a crítica teórica, nem mesmo ainda a autoridade da forma 'questão', do pensamento como questionamento". Sua imunidade deveria ser inviolável, de modo a sustentar esse potencial de resistência e dissidência que lhe é tão caro.
Ele sabe que se trata de um ideal, portanto um lugar que se afasta na medida em que nos aproximamos. O ideal é um horizonte, mas não por isso deve-se boicotar sua busca – se não o alcançamos, ao menos fazemos descobertas no percurso.
Fala-se em privatizar a universidade pública, e quem fala desconhece que o direito à educação é assegurado pela Constituição. A educação é um direito, não um serviço oferecido pelo Estado. Fala-se em privatização por conta dos altos custos de mantê-la pública. Mas não se admite que, privatizada, a universidade se voltaria ao mercado, e que sua prioridade de pesquisa e reflexão seria substituída pela capitalização. Sua liberdade para existir sem finalidade clara – ou seja, como espaço de criação de possíveis e incubação de devires – seria corrompida pelo sistema produtivo que domina o lado de fora.
Como escreveu Marilena Chaui, "se quisermos tomar a universidade pública por uma nova perspectiva precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio, nem um serviço". Não devemos, portanto, nos livrar do custo, mas auditar as contas, exigir uma administração responsável e, se o dinheiro não for suficiente para sustentar a universidade pública – cujo trabalho cresceu de maneira desproporcional a ele nas últimas duas décadas –, devemos aumentar a quantia. Vale lembrar que a USP, sozinha, soma mais de 100 mil pessoas entre alunos, docentes e funcionários – é maior do que várias cidades ao seu redor.
A greve não é somente para os grevistas. É para a sociedade e também para o Estado. Sua organização é muito mais complexa do que se imagina, e compreendê-la é essencial para produzir uma crítica relevante. Os interessados se reúnem em núcleos diversos dentro de suas faculdades e laboratórios; num sistema representativo, propõem e discutem cada pauta em assembleias. Nada é feito ao acaso; pelo contrário, o processo demanda tempo justamente por sua seriedade. E precaução.
Foto de Renata Buelau |
Isso não significa que os grevistas sempre utilizem mecanismos compatíveis com os tempos atuais. Quando paralisam as atividades, por exemplo, assemelham-se aos operários de fábricas, e se aproximam do sistema produtivo do qual tanto querem se distinguir. Em outras palavras, a universidade usa um recurso da organização privada para exigir que seus direitos de instituição pública sejam preservados. Um paradoxo que precisa ser repensado.
O mesmo vale para os casos em que grevistas impedem os colegas de acessarem seus locais de trabalho. É uma hipocrisia porque utilizam da opressão quando estão, justamente, reivindicando o fim da opressão por parte da reitoria e do Estado, além de maior abertura ao diálogo. Quando ouço notícia assim, lembro do grafite deixado numa das paredes durante a invasão da reitoria da USP em 2011, que mostrava um tirano[ssauro] e a frase: "Ocupe a reitoria que há dentro de você".
São apenas dois exemplos. E já sugerem que a maneira como se faz greve deve ser reinventada para que seja compatível com o contemporâneo. É dever da universidade repensá-la, assim como é dever da sociedade e do Estado manter a autonomia desse território de questionamento.
Por fim, quero esclarecer que, ao fazer greve, a universidade ainda executa o que Derrida considera sua essência: a elaboração reflexiva, a produção do saber e a publicação dos frutos desse esforço. E que, conforme escreveu Elizabeth Araújo Lima, devemos "pensar os lugares da produção de conhecimento não apenas como lugares de transformação de conhecimento em mercadorias e de exploração da subjetividade de todos os que dele participam, mas também e especialmente como lugar de novas formas de conflito e novas formas de luta".
A universidade pública deve ser estranha ao [jogo de] poder, livre dessas relações condicionais de soberania e dominação. Se traz exigências de um lado, enfrenta intransigências do outro. Pois a política que falta hoje deveria vir do governador Geraldo Alckmin, que empossa os reitores e, após meses de greve, ainda não se dispôs a conversar. Em tempos de eleição, preferiu evitar o risco da polêmica.
Cabe a nós, nas urnas, indicar a que vem a educação, e como vem, para evitar outra volta no círculo vicioso da crise. Porque, sem ela, jamais resolveremos os demais problemas do Brasil.
Mais informações: Sintusp e Adusp