O olho cacodilato (1921), de Francis Picabia |
Penso que deveria escrever um conto de Natal. Este ano haveria tempo hábil. Historinha breve, só para dizer que escrevi. Pelo menos isso. Já faz tanto desde o último! Não é apenas questão de tempo, claro. Foi uma espécie de desencanto. Sem vontade não há ideias. Sem boa vontade não há solução. Fui resolvendo minhas inquietações de outras maneiras. Além do mais, o Natal se tornou um feriado qualquer, do qual só me dou conta uma semana antes, quando decidem as tarefas de cada familiar. Tarefas de ceia: peru, tender, essas coisas. Sempre as mesmas. O que mais me irrita na tradição é também o que mais conforta. Natal é um período melancólico, de baixa produção, de vontade de nada. Vou escrever sobre o quê? Fábulas e sonhos não cabem mais, o mundo cresceu, acordou. Realismo também não cabe. Para que vou escrever sobre a "realidade" se a vida lá fora é mais interessante? Alguém quer ler no Natal? Essa é uma pergunta que cabe. Alguém tem paciência? Tenho impressão de que ninguém mais lê nada, ninguém além do meu círculozinho de amigos. Nada há para dizer a eles que já não tenha dito antes. Não vale escrever sobre isso.
Deixo, então, a pena deslizar sobre o papel. Deus, como sou retrógrado!, uso caneta-tinteiro em época de wi-fi e smartphone. Mero fetiche. Não tenho espaço, menos ainda teria a droga do meu conto de Natal. Fico sem ideias, desconstruindo um personagem qualquer. Que, no fim das contas sou eu mesmo, disfarçado de ficção. Os pensamentos se esvaem, vou junto deles. Alguém estaria interessado nesse eu mesmo, super sem graça, banal, entediado? Precisa ler muito para entender, sabe?
Foi o que imaginei.
Os pensamentos se esvaem, vou junto. Um conceito se desfaz. Um sujeito se fragmenta. Escrevo com pena e observo, sozinho, a tinta ainda líquida na folha de papel. Ela demora a ser absorvida. Fico olhando. Isso sim vale. Parte evapora e se perde no mundo, parte é incorporada. Parte da tinta se vai, a outra fica retida, uma terceira se conecta às demais páginas do caderno numa ambiguidade só. Vejo as sombras do que já escrevi espreitarem do outro lado da folha. Porém não consigo compreendê-las. Não me pertencem mais.
Derramo água sobre este texto. Despropositadamente. Um copo cheio de otimismo. A tinta se dilui, borra, espalha por toda a superfície do papel, escorre na mesa, mancha a madeira, suja os dedos, tinge a roupa, preenche as falhas, estraga tudo, põe tudo num estado de urgência. Esfrego a tinta no meu corpo inteiro. Pego a água suja de texto e espalho no rosto. Me parece bem melhor assim. Eh... agora sim.