Busto do filósofo grego Sócrates |
Foi ao ler O Brincar e a Realidade, de Donald Winnicott, que me dei conta do que tinha acontecido. Um trecho em que ele comenta o valor simbólico de certos objetos. Assim: “Se considerarmos a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico-romana, ela é o corpo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo, de fato, o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo”. Em outras palavras, determinada coisa pode ser acolhida de maneiras diferentes, dependendo de quem lida com ela e do contexto cultural no qual está disposta. No caso citado pelo psicanalista, a hóstia pode ser uma representação ou o corpo nu e cru; pode existir como realidade ou ficção, conforme seu valor simbólico for evocado.
No caso de Noel, penso que a ordem lógica do mundo nega sua possibilidade de existência. E diminui sua potência simbólica a uma anedota infantil, sustentada enquanto a ingenuidade da fantasia permitir.
Junto isso com um pensamento de Michel Foucault, que propôs a autoria, num contexto mais contemporâneo, não como um lugar estático, mas como uma função assumida e abandonada conforme convier. Nesse sentido, todos podem ser, momentaneamente, autores dos feitos. Trata-se de uma atitude perante eles; um modo de agir. Não uma questão de posse nem de direitos autorais.
Isso significa que Papai Noel não pertence a ninguém específico, mas à comunidade inteira, e somos responsáveis por ele, se concordarmos que é relevante. Compreendi, assim, que sua existência não pode se pautar no raciocínio lógico, mas no simbolismo. Claro, pois não se trata de um velhinho de carne e osso, de roupão e trenó, e sim de uma maneira de ser e estar no mundo, de partilhar desse sensível. Uma função político-social que podemos assumir com intuito de transformar a situação vigente. Isso ocorre numa época determinada – o Natal – porque está de algum modo atrelada à tradição, embora possa operar o tempo inteiro, em todos os lugares.
Penso que é dessa maneira que deveríamos falar de Noel às crianças, quando percebemos os primeiros movimentos para desmascará-lo. Explicando que o disfarce não é uma mentira, mas uma fantasia, uma representação de certa vontade transformadora. A evocação do “espírito natalino”. Ímpeto que independe de religião. Nesse sentido, Papai Noel existe sim. Como uma ficção que criamos para combater a dureza do dia a dia, as desigualdades sociais, a descrença na força afetiva do povo. Se não sobrevive ao avanço da idade, talvez seja porque a ideia de doação como proposta de vida encontra tamanha resistência que se esfacela antes mesmo de adolescer. Imagino que cabe a experiência de tentar mantê-la ativa. E o tempo dirá se vale a pena.
Noel está abandonado à voracidade do capitalismo, deturpado por ações de marketing de todo o tipo, completamente associado ao consumo. Se pudermos reverter esse quadro, me parece que só teremos a ganhar. E não estou me referindo a presentes. Não são eles que importam, afinal. É o ato de se doar.
Quando alguma criança espertinha diz que Papai Noel não existe, respondo que existe sim. Porém não da maneira como a TV ou a “verdade científica” o vendem para nós.
Carl G. Jung explica que, “como diz o cético, símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, ‘representações coletivas’ – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias”.
Eu acredito em Papai Noel. E num feliz 2014 a todos.
Ho ho ho.