Tinha ido à Pinacoteca de São Paulo por ocasião de uma palestra, se me lembro bem. Havia um horário a cumprir, e eu chegara trinta minutos antes. Decidi circular. Uma espécie de túnel cruzava o Octógono de um lado até o outro. Para quem não conhece, trata-se de um átrio localizado no centro do edifício, cuja forma geométrica lhe rendeu o nome. É costume que projetos especiais o ocupem (intervenções, esculturas de grande dimensão, performances etc.), ao invés de exposições convencionais. Dessa vez, havia um túnel branco, feito de madeira. De tempos em tempos, ouvia-se um estrondo, uma espécie de baque seco e potente, refletindo-se nas paredes ao redor. Fiquei curioso. Dei a volta até encontrar a entrada. O túnel se afundava em escuridão; não podia ver nada além de cinco ou seis metros à frente. O som, ali, era bem mais impactante. A identificação dizia "Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela". Entrei.
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Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela. Vista interna da instalação. |
Percorri toda a extensão no escuro, com cautela, tentando não esbarrar em nada nem ninguém. Segundo o artista, o objetivo do canal era executar uma "compressão prévia do sujeito". O volume do som crescia, enquanto o intervalo entre as batidas ficava mais curto. No fim, quando os olhos se acostumaram, me encontrei numa sala toda pintada de preto, com uma gigantesca imagem projetada numa das paredes e diversas pessoas acomodadas em pé ou no chão para observá-la. Descobri um espaço livre ao lado do subwoofer (caixa de som grave) que produzia aqueles estrondos e fazia tudo ao redor vibrar. No vídeo, apenas um pedaço de pele humana – uma fotografia, com enquadramento tão invasivo que mostrava os pelos, os poros e cinco pintas dispostas de modo matemático, formando esquinas de um quadrado mais um ponto no meio, bem centralizado.
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Planta baixa do projeto de instalação |
A foto se movia: emergia do centro até ocupar a tela inteira, sobrepondo a si mesma repetidas vezes. A cada sobreposição, uma pancada sonora; um incômodo evidente e cada vez mais veloz. Experiência angustiante, sem dúvida; algo claustrofóbica também. O som tomava conta do corpo, fazendo-o vibrar, ainda que sem vontade, sem querer se entregar à experiência. A imagem chamava atenção para as vibrações na pele, para o reflexo daquelas sensações no restante do organismo, para o andamento do coração em descompasso com o ambiente. Um conflito se impunha, e o resultado era a instabilidade, o desequilíbrio, a subserviência do sujeito em relação ao sistema dominante. Com a aceleração da imagem e do som, a angústia crescia. Eu queria sair da sala a todo custo, ao mesmo tempo em que precisava saber como aquilo acabaria.
Quando o ritmo das pulsações se aproximou do insuportável, tudo terminou de repente. O vídeo sumiu, o subwoofer silenciou. Fiquei no escuro. Tive a sensação ser empurrado para longe de mim; também certo alívio e solidão. Permaneci mais alguns minutos sentado, incorporando a experiência. Aos poucos, as pessoas deixavam a sala, caminhando pelo túnel na direção da luz. Segui junto com elas.
Na mesma semana, falei sobre a instalação com os alunos do curso de Terapia Ocupacional, na USP. Estudávamos os tecidos constitutivos do corpo, suas relações com o mundo, as camadas da pele, a reverberação, o pulso vital, percepção e sentimento, vivências disruptivas. Era possível pensar isso tudo por intermédio da experiência estética proposta na Pinacoteca.
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Túnel no Octógono da Pinacoteca do Estado de SP.
Vista externa da instalação. |
Meses depois, adquiri um livreto de entrevista, em que Alexandre Estrela comenta a obra. Meu entendimento a respeito dela se ampliou de maneira considerável. Pois aquilo que eu pensava serem pintas eram, na realidade, uma tatuagem comum entre presidiários portugueses. Os cinco pontos representavam o sujeito encarcerado; um homem entre quatro paredes. A instalação fora montada pela primeira vez em exposição promovida por uma companhia de seguros, batizada de Putting fear in its place (Colocando o medo em seu devido lugar). A entrevista envereda por ilusão de ótica, hospital do câncer, geometria, carga simbólica de tatuagens e seus limites como manifestação artística, divergências culturais, sistema carcerário, repetição serial como método de trabalho, realidade e veracidade, passividade do público do cinema, técnica e tecnologia, linguagem, marca e afetação, indústria do medo, entre outros assuntos. Tudo isso vinha à tona por conta de uma criação artística, cujas camadas de significado foram sendo dissecadas, aprofundando-se na direção de um núcleo – "centro conceitual e perceptivo", que perdura independentemente da montagem realizada, nas palavras de Alexandre. Uma "base de leitura", quer dizer, uma essência que se preserva qualquer que seja a roupagem empírica a envolvendo.
Levei meses até descobrir essa dimensão do trabalho, e tenho certeza de que é possível ampliá-lo ainda mais. Vale lembrar que estamos falando de uma só instalação. Tamanha a força de certas pesquisas contemporâneas.
Curiosamente, num curso sobre arte e filosofia que se realiza agora na mesma Pinacoteca, dois senhores na plateia, em dias distintos, revelaram-se encantados com as produções artísticas atuais. Os relatos foram similares: ambos descobriram a arte contemporânea somente com a chegada da aposentadoria, estavam impressionados com o seu potencial de conhecimento, crítica e reflexão, ao mesmo tempo em que frustrados por terem sido apresentados tão recentemente. Por que ninguém falou de arte contemporânea antes? Por que não se trata disso nas escolas? Por que tão pouca divulgação e tanta leviandade da mídia?
Faço minhas as palavras dos colegas.