Uma amiga compartilhou este relato no Facebook.
O autor comenta as intervenções urbanas que testemunhou no Minhocão, na cidade de São Paulo. Para quem não conhece, trata-se de um viaduto bizarro, que transformou a rua numa espécie de submundo, fez o comércio ao redor falir, transportou os carros para as janelas dos apartamentos, dividiu o bairro entre ricos de um lado e pobres do outro, além de resultar em teto para pessoas em situação de rua.
O texto fala de intervenções urbanas, ocupações artísticas, políticas culturais, do que fazer, das maneiras de fazer, de a quem pertence a cidade, das questões éticas... É bem interessante, forte, atual. Vale uma reflexão. Ou mais.
Copiei e colei tudo na íntegra, exceto por alguns detalhes de formatação. Desconheço o autor, e acredito que a foto também tenha sido feita por ele. Se alguém souber seu nome, ficarei feliz por citá-lo.
Enfim, achei que este é um bom assunto para o momento. Cá está:
À RUA O QUE É DA RUA!!!
Nos últimos dias o espaço do Minhocão, no centro da cidade de de São Paulo, tem sido destaque na grande mídia por causa de intervenções que atualmente ocuparam visualmente as pilastras do lugar. A cobertura é sempre tendenciosa, é bom colocar o outro lado da história. Se inicialmente foi projetado para ser um local de passagem o Minhocão, foi aos poucos, e cada vez com mais intensidade, sendo ocupado por pessoas e formas de intervenção marginalizadas pela sociedade e pelo poder público, como moradores de rua, graffiteiros e pichadores. Muito tempo já passou desde que esse processo de ocupação do minhocão começou a acontecer. Muitos moradores de rua já foram enxotados de lá como bichos e voltaram, muitos graffiteiros e pichadores já foram presos ou esculachados pela polícia por pintar seus pilares e voltaram e também muitos artistas plásticos presentes nas galerias já intervieram neste espaço, mas na maioria das vezes respeitando quem já ocupava o local. Trata-se claramente de uma disputa política, entre a cidade que queremos e a cidade que o poder público tenta impor para nós.
Nas ultimas duas semanas uma boa parte das intervenções presentes nos pilares do Elevado foram substituídas por uma série de fotos gigantes de moradores da região. Para isso TODAS as intervenções presentes nestes pilares foram cobertas com tinta cinza. Coincidência, ou não, também pude reparar que os moradores de rua também não estão mais lá. No fim de semana passado estava passando pela região com a Magê e encontramos um grupo de pessoas colando as fotos e registrando o momento. Decidimos fazer alguns questionamentos para entender o que estava rolando. Estavam presentes a artista, algumas pessoas ligadas ao projeto e algumas pessoas que me pareceram pessoas contratadas para colar as fotos e pintar as pilastras de cinza. Depois de algum tempo pedimos para conversar com a artista e as coisas se esclareceram. Descobrimos que se tratava de um projeto em parceria com o SESC e com a Prefeitura, para ocupar a região, e que ela havia sido convidada para expor suas fotos no local. Perguntamos se ela sabia que aquele espaço já estava ocupado. E que esta ocupação era fruto de diversos anos de disputa entre várias pessoas e a prefeitura, tais como graffiteiros, pichadores e artistas plásticos que desejavam realizar intervenções públicas. Questionamos também se ela sabia que entre as pessoas que realizam suas intervenções nas rua de São Paulo existe uma forma de proceder em que se respeita as intervenções realizadas anteriormente nos muros, não colocando seu trabalho por cima delas, e que este proceder era fundamental para que o espaço visual da rua fosse ocupado de forma democrática, pois só assim seria possível que o trabalho de graffiteiros, pichadores e artistas plásticos mais consagrados e experientes coexistisse com os de pessoas que estão se iniciando neste mundo da intervenção urbana, sem depender de seleção prévia ou curadoria de ninguém, e muito menos dos projetos políticos da prefeitura.
A artista nos respondeu que sabia das formas de proceder da rua mas que, apesar de saber disso, o convite feito pelo SESC para fazer essa intervenção era “A SUA CHANCE”. Disse que não teve escolha, e que por causa disso tinha pedido autorização para pintar os trabalhos de 2 dos graffiteiros que ocupavam o espaço (tinha pelo menos uns 20 ou 30 graffiteiros com trabalhos nos pilares apagados). Ela nos disse também que seu trabalho era político porque questionava o uso daquele espaço e porque dava destaque para a imagem de moradores da região, principalmente moradores de rua.
Algumas reflexões sobre isso:
– Essa intervenção no Minhocão desrespeitou não só os graffiteiros, pichadores e artistas que tinham ocupado o espaço das pilastras do Minhocão, desrespeitou também todos os outros que de alguma forma lutaram por anos para ocupar este espaço. Para além disso atropelou também a história e o registro das formas de interação de uma série de outras pessoas que convivem neste espaço e que também marcam de forma ativa estas pilastras. A Prefeitura e o SESC estão dizendo que a população não tem condições de contar sua própria história, que ela só tem valor quando registrada por um terceiro, no caso a fotógrafa.
– O espaço do Minhocão sempre foi ocupado e teve vida, diferentemente do que a cobertura da mídia tenta demonstrar. Se está vida é marginalizada e incomoda os autoproclamados cidadãos de bem já é outra história. A solução do problema não está em varrer os moradores de rua para longe dos olhares dessas pessoas, muito menos em tentar cobrir de cinza as frases cores e nomes que aparecem nos muros, pois essas são vozes também fazem parte da vida urbana, e não se calarão.
– Vemos mais uma vez aqui a ideia capitalista da oportunidade individual atropelando a ação coletiva. A ideia de que esta é a minha chance e eu não tenho escolha mostra isso. SEMPRE TEMOS ESCOLHA.
– O trabalho da artista é sim político, aliás, nada contra a ideia de colar fotos gigantes de moradores da região na rua, mas tudo contra a forma como isso foi feito. Se tivesse sido feito de forma independente e respeitando as intervenções anteriores seria algo bem interessante. Mas feito de forma institucionalizada e aliada à prefeitura e sua dita política de “revitalização” do espaço a obra muda sim de característica. Para mim deixa de contestar a ordem vigente para reproduzi-la. Não sei se a artista tem dimensão de tudo isso (me pareceu que não), mas espero que ela descubra de que lado ela está sambando.
– Por ultimo, é bem interessante como a intervenção feita sobre uma das fotos teve repercussão e incomodou a grande mídia. Teve jornal que embaçou a foto na parte da frase escrita para que não se pudesse ler, teve outro que colocou uma bola vermelha em cima dela censurando-a explicitamente. E teve outros que disseram que ali não havia nada...só vandalismo e rabiscos feitos por gente sem inteligência com a intenção de estragar a obra da fotógrafa que tinha dado vida no Minhocão. Se alguns fazem jornalismo manipulador e baseado em preconceitos que os impedem de ler imagens e pesquisar a história, pelo menos recente de um lugar, e se acham inteligentes é preciso rever essa ideia de inteligência.
A RUA ESTÁ VIVA SIM! SEMPRE ESTEVE! E SEMPRE ESTARÁ!!!
À RUA O QUE É DA RUA!!!