sábado, 7 de setembro de 2013
CORPOS CONTEMPORÂNEOS: ANOTAÇÕES DE AULA
Quem estava ali era um corpo cansado. Tinha acordado mais cedo do que o costume, engolira qualquer coisa no café por receio de se atrasar. Enfrentara uma hora e quinze minutos de trânsito. Respondera e-mails no escritório e preparara a tarefa dos assistentes. Dirigira mais uma vez, agora até a universidade. Combinara rapidamente o programa do dia com a docente responsável. Às 10h30, a aula se iniciava, e foi assim que me apresentei à turma de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, com a qual tenho colaborado neste semestre. Um corpo cansado, agitado, ansioso com o trabalho que iniciava, curioso para conhecer os alunos, cheio de atribuições mas com vontade de assumir outras, de participar de tudo, do possível e do impossível, por mais insano que seja.
Um a um, fomos descrevendo nosso "estado de alma", fazendo-nos conhecer e aproveitando para pensar sobre a carga depositada naquele misto indissociável de corpo e mente. Sentimentos, razões, dores musculares, sono, tensão, frio, curiosidade, timidez, empolgação, estresse, apreensão, expectativas, preguiça, cansaço. Sempre o cansaço, presente na fala de todos.
Não é de surpreender. Somos demandados e superativados no contemporâneo por um sistema de produção que remonta a Revolução Industrial, no século XVIII, e que hoje em dia opera de maneira peculiar. Estamos sempre apressados, buscando o além dos limites, exauridos por excesso de informação, horas extras, trajetos longínquos, atuação nos mundos reais e virtuais, conexões várias que transformam as noções de privacidade e põem a nu as experiências mais íntimas, expondo-as, quase sempre as banalizando. Homens de execução, não de reflexão.
Isso desemboca na ansiedade, que cada um vive à sua maneira e em seu grau, e que se resume no ato de colocar-se à frente de onde deveria estar – ou seja, de antecipar questões futuras para vivê-las no presente, quando nada pode ser feito para resolvê-las.
Estávamos todos cansados antes mesmo de iniciar os estudos. O contemporâneo já se manifestava em nossos corpos sem que nós o percebêssemos. Uma das propostas da disciplina de Práticas Corporais é, por isso mesmo, tomar consciência desses sentimentos e preparar os terapeutas para acolher, cuidar e transformar outros sujeitos afetados pelas pressões da vida.
Ora, onde está a sensibilidade nos dias de hoje? Para Giorgio Agamben, "uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época; que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de 50 anos".
Este trecho foi publicado originalmente em 1985 e permanece atual. O contemporâneo, vivido como um sistema em processo, portanto sem forma definitiva, acaba por impossibilitar a apreensão exata dos novos tempos.
Nas pesquisas de Terapia Ocupacional, percebo alguns caminhos para esse estado de alma, que pela sensibilização do corpo levam a camadas profundas da existência. Por isso, escreve Flávia Liberman, "faz-se necessário um olhar que investigue o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão, ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir".
Sensibilizar é uma estratégia de descoberta e conscientização sobre nossas atitudes, sobre os papéis que exercemos no dia a dia e que, de certo modo, confluem para as realidades compartilhadas. "Pensar, viver e refletir sobre como as pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros corpos, com outros mundos", diz a terapeuta.
Nesse sentido, arte e clínica estão mais próximos do que se imagina, e ambos se agenciam no âmbito da vida comum. Porque se trata de criar corpos para o enfrentamento, para os embates cotidianos, para superar ou contornar os excessos, a ansiedade, o cansaço, o esgotamento etc. Um trabalho da Estética, localizado na fronteira entre o sentimento e o pensamento. Corpos atuando numa realidade de estrutura ficcional, inventados para certos desafios e reinventados a cada nova demanda. Que se apresentam como dispositivos – quer dizer, dispostos em relação com o outro, abertos ao entorno, à disposição das implicações contemporâneas. Postos no mundo ao mesmo tempo em que constituem o próprio mundo.
*As imagens acima foram emprestadas da tese de doutorado de Flávia Liberman, à qual você tem acesso aqui: Delicadas Coreografias: Instantâneos de uma Terapia Ocupacional