Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.
A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.
Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.
Pintura 147, de Felipe Góes |
Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".
Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.
Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.
Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.
Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.