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sábado, 2 de fevereiro de 2013

É CULTURAL

A gente assiste na tv, ouve no rádio, lê por aí e por aqui. São absurdos que sujam a imagem do país, fazem sentir vergonha de nós mesmos e, pior ainda, não permitem vislumbrar qualquer esperança de melhora. Corrupção correndo solta, impunidade, burocracia, ineficiência do Estado, falta de ética e de educação, falta de estrutura moral, social, urbana... São os atrasos com as obras da Copa, dinheiro desviado, mensalão, Ficha Limpa, Cachoeira, Tiririca, SUS, planos de saúde, telefonia, pirataria, metrô, inundação, desmoronamento, descaso, greve, PIB, passaporte diplomático, seca, coronelismo, pedofilia, tráfico, analfabetismo, displicência, superfaturamento, indulto de Natal, violência no trânsito, IPVA, IPTU, IR e assim vamos. Listando, parece o fim do mundo – o qual, diga-se de passagem, também falhou. Eu poderia citar muito mais, basta olhar ao redor e apontar (ah, se apontar resolvesse!). Vamos tomar jeito? Alguns acham que não. Outros acham que, um dia, sabe-se quando ou por que, baseados numa fé ingênua, o Brasil será um país de primeira linha, mesmo se ninguém mover um dedo para isso. Certo, certo, claro. Como num conto de fadas. Só que nós somos a cigarra, e não a formiga. Enfim, por que o país não vai para frente? A gente fecha o jornal, desliga a tv, dá de ombros e tem a resposta na ponta da língua, a palavra que resume tudo: “É cultural”.

Coisíssima nenhuma! Não venha justificar assim o comportamento apático de quem se contenta com tocar a vida, reclamar com a própria sombra e empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Não venha justificar com essa palavra o que é contrário a ela. Porque é fácil sustentar o errado, basta fechar os olhos, abaixar a cabeça e deixar tudo como está, fingindo que não dá para mudar, que ninguém é forte o bastante. Entretanto, produzir cultura é dificílimo.

Registro de perfomance realizada por Paulo Bruscky em Recife, 1978

É um movimento intencionado, embate constante contra resistências e obstáculos, invenção de novos modos de existência e novas formas de interação, explica o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Cultura é o único meio para a autorrealização. Para o psicanalista inglês Donald Winnicott, a cultura é uma formação posterior a do organismo que a produz. Trata-se da estruturação da vida psíquica, um movimento do ser em direção à vida, uma abertura em direção ao mundo.

Não sou revolucionário ou agitador de massas; nem autoajuda nem panfletário. Minha questão é o conhecimento da causa. Portanto, vamos colocar as críticas em seu devido lugar. O que me incomoda, de verdade, é ouvir que os problemas que nos assolam são culturais. O termo gera um entendimento errado, percebe? Porque cultura significa justamente o oposto. Cultura é aquilo que se cultiva, que se produz com talento, esforço, boas ideias e boa vontade. A cultura não brota em qualquer canto nem brota de um dia para o outro. Ela exige condições apropriadas do solo, da semente e do agricultor. Refiro-me à MPB, à literatura, à dramaturgia, ao futebol, ao Carnaval, às artes plásticas, ao design, à arquitetura, às pesquisas científicas, à política séria, à educação, à moda e à gastronomia, entre tantos outros espetáculos maravilhosos que o brasileiro é capaz de desenvolver.

Não se trata de hábito, porque a gente não se habitua a ela, não se pode banalizar. A cultura provoca. Ela vai nos provocar e emocionar e fazer reagir criativamente. Pode ser tradição ou não, afinal, novidade também é cultural. Por maior tradição que seja, a cultura veste uma roupa nova a cada evento e sempre nos surpreende com outra forma de beleza.

Temos o péssimo costume de dizer que “é cultural” para justificar as pobrezas ao invés de exaltar as nossas riquezas. Como se cultura fosse uma estrutura rígida à qual estamos sujeitos. Como se fôssemos determinados por ela e não o contrário. Ora, somos nós que fazemos a nossa cultura, seja no Brasil ou no mundo. Ela é movente, mutante, constrói-se e se modifica a todo instante por meio de nossas atitudes. Nada é pré-determinado, exceto o fato de que é com cultura que melhoramos a vida, a situação posta e o convívio. Mudamos a burca, o estupro coletivo, a recusa de transfusão de sangue, o uso de preservativos, a lei seca, a doação de órgãos, o preconceito, a célula-tronco, o casamento gay, a escravidão, o desrespeito, a falta de bom senso, a imoralidade, as medidas autoritárias, a injustiça, o paternalismo, a guerra e todos os outros abusos de poder. É por meio da cultura que desenvolvemos conhecimento e olhar crítico, que compreendemos melhor o mundo, que adquirimos bagagem para comprar brigas e debater as soluções possíveis.

Limpos e desinfetados (1987), de Paulo Bruscky

Talvez eu esteja me referindo não à cultura geral do mundo, mas a um ponto específico dela. Pois bem, é a minha maneira de encará-la. Seja como for, a cultura não é aquilo que se encontra estabelecido e, portanto, nos subjuga. Cultura é tudo o que podemos criar, transformar, melhorar. É uma história das formações sociais que ganha novas possibilidades a cada capítulo acrescentado.

“A cultura está situada no coração do ser”, escreveu a psicanalista Jan Abram. Sim, ela é parte de nós. Cuidado ao maldizê-la. É tentador colocar a culpa em quem, aparentemente, não pode se defender – só que ela se volta contra. Porque o mal, o desrespeito, a abstenção, a apatia e os excessos que se justifica com a desculpa fácil do “é cultural” revela, na realidade, uma grave falta de cultura.