Caminhando (1964), de Lygia Clark |
Pois bem, agora você pega uma tesoura, faz um furo no papel e começa a cortar no sentido do comprimento, circulando por toda a extensão da tira, fazendo uma volta completa. Só não pode dividi-la em duas, ok? Portanto, quando estiver próximo do início, você deverá decidir se continua pela direita ou pela esquerda do corte que acabou de fazer. “Esta noção de escolha é decisiva, o único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu ato”, explica o filósofo Ricardo Fabbrini no ótimo livro chamado O espaço de Lygia Clark.
Aos poucos, vamos entendendo a proposta, os sentidos emergem. Percebemos o significado na própria ação de percorrer a tira de papel com a tesoura, esse gesto efêmero com o qual você constrói seu próprio caminho. Diga-me se não é uma metáfora útil para a vida! Sim, vamos caminhando sempre em frente, tudo o que experimentamos é único e não se repete, não se pode voltar atrás. As marcas das nossas atitudes, as consequências das nossas escolhas ficam registradas ali para sempre, transformam o papel de um jeito que ele jamais será o mesmo novamente. Caminhamos sempre em frente, é a única possibilidade. Mesmo que se queira reverter uma escolha mal feita, talvez colando as tiras de papel com fita adesiva, restará uma marca aparente, a cicatriz do gesto, algo que jamais nos deixará esquecer o que passou.
Caminhando (detalhe) |
Lygia Clark criou Caminhando há quase meio século, e ainda hoje as pessoas em geral têm dificuldade de lidar com esse tipo de produção que não se pendura na parede ou apoia em pedestais. Como sugeriu o crítico Ronaldo Brito nos seminários que inauguraram a retrospectiva da artista no Itaú Cultural, em São Paulo, ela projetou uma sombra para frente – quer dizer, tentou vencer os limites da arte com obras que superam a própria ideia de obra.
Lygia nos incentiva a seguir em frente, abrindo novos caminhos, buscando descobrir possibilidades. Não é fácil. Afinal, estabelecer-se num ponto qualquer e permanecer ali é cômodo; ficar estagnado naquele ponto final que não leva mais a lugar algum é uma grande bobagem que a gente tende a cometer o tempo todo. A vida é um processo, a criação é um ato, tudo o que produzimos nasce de um gesto. Quando a materialidade se esgota – e um dia ela há de se esgotar, você verá –, apenas o gesto sobrevive. São as nossas ações que permanecerão no mundo quando nós não estivermos mais. Tudo o que fazemos, é isso que ficará, é a marca que deixaremos.
Enfim, não basta ler a respeito de Caminhando, é preciso experimentar. Com essa proposta tão simples de ser realizada, Lygia Clark permite que tomemos conhecimento de nossas ações. Mais do que isso, ela nos dá um belo empurrão para enfrentarmos com sabedoria o caminho tortuoso que precisamos percorrer.