Seria um costume estranho, que os mais chegados certamente criticariam, caso soubessem. Pois não sabiam e, pela mesma razão, os mais chegados tampouco existiam. Ele não tinha por que contar, tratava-se da sua maneira particular de pertencer ao mundo. Deixando rastros quase imperceptíveis, plantando provas de sua passagem, demarcando territórios anonimamente. Era muito simples, bastava tirar um pedacinho de seu corpo e o deixar para trás. Ficaria ali para sempre, enquanto o resto seguiria seu caminho. Uma ideia linda, pura poesia. Uma lasca de unha no assoalho do táxi que foi buscá-lo no aeroporto. Pelos da perna ou do braço sob o colchão do hotel. Cera de ouvido no tampo da mesa do bar, esfregada por baixo. Cabelo no ralo do banheiro. No ralo da pia, que é mais difícil de limpar. Uma fina camada de pele inserida com cuidado no vão de uma escultura de museu. Saliva no banco da praça.
Viajava sozinho, como sempre. A vida é solitária, por mais que as pessoas se envolvam e disfarcem o fato. A vida solitária é um castigo para o qual os insatisfeitos com a própria existência nos empurram. Fazem força para dar à luz, os desgraçados. Ele sabia disso muito bem, aprendera sozinho, observando. Sabia que tinha sido posto no mundo coletivamente, mas morreria sozinho, porque morrer é uma tarefa que ninguém poderia cumprir por ele. Nenhum dos egoístas do passado, nenhum dos individualistas do presente. Os egocêntricos. Incerto dia, ele morreria num lugar qualquer sem jamais ter tocado o chão, mudado a paisagem, conduzido as rédeas da humanidade. Sem jamais ter protagonizado nada relevante ou ter assumido responsabilidades. O mundo continuaria a existir exatamente da mesma maneira que existia antes dele, e ele morreria sem jamais ter sido alguém.
Tal como as migalhas de pão do conto de fadas, ele espalhava frações de seu corpo por aí. Não para retornar mais tarde, porque ainda havia muito caminho pela frente, um caminho interminável, impossível de vencer. A estrada era maior do que ele. Incomparavelmente maior. A lasca de unha, os fios de cabelo, as células de seu corpo que iam caindo e compunham a poeira do mundo ficavam para trás com objetivo de marcar a passagem, de oficializar sua breve estada, de pontuar um capítulo para que ele pudesse, de alguma maneira, sentir-se presente, sentir-se vivo, tocar e ser tocado. Ele queria estar no maior número de lugares possível. Era um ritual próprio, sua maneira de pertencer. Não ficaria preso a si, ao seu corpo. Estaria, ao mesmo tempo, no mundo inteiro e dentro de sua consciência pessoal.
Tudo bem que ninguém o notasse. Os outros estavam preocupados demais com as próprias trajetórias para acolhê-lo em atenção. Ele preferia existir no anonimato, com total autonomia, a incomodar o cão. Bastava de latidos e perseguições, sua infância tinha experimentado o suficiente, era só fechar os olhos e lembrar, caso necessitasse.
Pois não necessitava. O caminho ia à frente, era impossível enxergar o final, tão impossível alcançá-lo com os olhos quanto com os pés. Mas a próxima curva não ficava tão longe. Era para lá que ele rumava. Sempre na direção da próxima curva.
Deixou os restos da barba recém-feita, ainda misturados à espuma, em cima da porta do banheiro. Puxou uma cadeira, subiu, ficou observando a água penetrar na folha de madeira e grudar os pelinhos ali, onde ninguém iria mexer. Mudou-se, então, para outra casa. Não havia tempo a perder. Nessa, grudou um chiclete no fundo da caixa d’água, arrancando antes um dos dentes e o enfiando na goma. Ele esvaziou a caixa cuidadosamente e só voltou a enchê-la três dias depois, quando o chiclete secara bem o suficiente para ficar firme. O rito se aperfeiçoava. A boca ainda sangrava quando a escova de dente resvalava a ferida, mas deveria estancar dentro de dois ou três dias. Foi o que aconteceu, e ele já tinha partido de lá.
O costume o acompanhou durante todo o tempo, ganhou estatuto de missão, de objetivo de vida. Sempre um sacrifício novo.
Houve uma casa da qual ele gostou mais, sentiu vontade de se estabelecer e isso não podia acontecer, não poderia se deixar seduzir. Era uma casa confortável, com roseiras plantadas junto ao muro da frente e crisântemos no quintal dos fundos. Havia touceiras grandes de crisântemos, eram bonitos e repousantes. Ele estava cansado da caminhada, cansado de mudar e mudar novamente, de carregar todos os seus pertences em duas malas de mão, de aprender novas línguas, de se adequar forçosamente a outros costumes, perdendo sempre. Cansado de tratar com o entorno, de dar tanto de si... em troca de quê, mesmo? Hesitou por um instante, surgiram dúvidas. Isso não podia acontecer. Ainda restava muito caminho pela frente; o cansaço e os vícios não poderiam vencê-lo. Ser derrotado por um motivo tão reles, jamais.
Ele deixou um dedo naquela casa, como forma de gratidão. Achava que o lugar merecia um dedo, talvez mais. Enfim, tinha sido um dedo útil, deveria bastar.
Dali em diante, começou a prestar mais atenção aos imóveis alugados. O dedo que faltava serviria para lembrá-lo de não cometer o mesmo erro duas vezes. As casas ou os apartamentos não podiam ter atrativos que ofuscassem sua missão. Daria preferência a hotéis sempre que possível. Ele também não poderia ser tentado por ruas, praças, campos, praias, estradas ou poltronas – adorava poltronas, em especial aquelas que cedem ao peso do corpo cansado e reclinam para trás. Só que não podia se deixar ludibriar por móveis ou imóveis ou paisagens banais, por mais idílicos que fossem. Precisava continuar indo em frente, sempre em frente, superar os vícios e evitar ao máximo dispêndios irreversíveis.
Anos depois, não lhe restavam muitos dedos para contar. Com o avanço da idade, ficava difícil não se envolver emocionalmente com um lugar e estabelecer raízes. Precisava podá-las, arrancá-las da terra quando começavam a brotar, e isso lhe doía.
Teve que apelar para uma orelha quando encontrou a praia dos seus sonhos, um paraíso bonito e tranquilo, de águas quentes e vastidão deserta. Decepou-a com um velho canivete de bolso e a enterrou com carinho na areia, perto de um amontoado de pedras que ia até o mar. Queria aquela praia para si, estar nela por toda a eternidade. Queria espalhar-se inteiro por ali.
Levantou o rosto com um sorriso triste. O sangue escorria pelo pescoço e pingava no peito, misturando-se ao suor. Fazia tanto calor, o sol estava tão a pino que ele não percebia nem o sangue nem a dor. As gotas caíam na areia como chuva. Ele tinha notado isso antes, porém, o lugar era perfeito demais para que deixasse ali apenas suor e sangue, tal como outros também poderiam fazer.
Levantou o rosto essa última vez, respirou profundamente, deixou que a paisagem o invadisse por todos os cantos, inflando-o com força de vontade. Então, virou as costas e partiu sem olhar para trás.
Um dos pés ficaria numa acolhedora cidade interiorana, dessas em que dá vontade de chegar e não sair mais. A patela ficou no campo, perto dali, numa plantação amarela que, com o vento abafado movimentando a vista, lembrava pinturas de Van Gogh. A omoplata, difícil de tirar, ficou no alto do edifício mais alto, porque ela parecia uma asa e, naquele momento, tudo o que ele queria era saber voar.
Sua vida se sucedeu assim, pé ante pé, até que precisou arrastá-la com os cotovelos, depois com os ombros, depois com o movimento dos músculos do abdômen. Quanto mais avançava, mais feliz ficava, mais satisfeito por conhecer e se espalhar no infinito. A cada metro vencido, ele ficava maior, ficava mais completo; ainda que continuasse incógnito. Apesar de seus feitos, apesar de estar ao mesmo tempo em tantos lugares diferentes, de ter conquistado tudo aquilo, ele continuava ignorado. Pois bem, os outros não importavam. Na vida, tinha sido sempre ele e o mundo, e agora que a morte se aproximava, deveria continuar assim.
Quando nada mais lhe restava, cavou um buraco fundo, tão fundo que não pertencia oficialmente a lugar nenhum, a cultura nenhuma, a governo nenhum, a nenhuma forma de vida ou instituição que pudesse reivindicar o conteúdo. Depositou ali seu coração, tal como uma semente de amor no centro do mundo, de modo que pertencesse ao tudo e ao nada consecutivamente. Queria brotar, crescer e se espalhar o máximo possível com raízes, galhos, frutos e sementes. Queria transformar o ar. Multiplicar-se. Aquele seria seu lugar definitivo, embora um lugar definitivo fosse o que menos desejasse.
Não havia mais o que fazer, acreditava ser a hora derradeira. Jamais saberia quanto da missão tinha cumprido, se tinha andado o suficiente para se afastar do início e se aproximar do fim com dignidade. Jamais saberia se tinha valido a pena, se tinha conseguido escrever suas linhas, colaborar com a história, transformar um pouco o curso das coisas, acrescentar seu toque pessoal ao entorno, sugerir seu gosto, mesmo que fosse imperceptível ao sentimento alheio. Jamais saberia em que locais do mundo se encontrava. Nunca se sabe. Tudo o que ele queria era pertencer, de uma maneira ou de outra. Pois bem, tinha chegado a algum lugar. Se era para ser assim, então, que fosse.
Mal sabia que a história não termina, que não tem começo, meio ou fim. Naquela nova cavidade, construída com tanta fé, seu coração continuou pulsando. Continuou batendo forte, mesmo quando sua alma foi dali para outro lugar qualquer.
*A imagem que ilustra o conto chama-se Mesa Surrealista (1933), de Alberto Giacometti