Um escritor, tomado por angústia e desilusão, fala sobre a sua dificuldade de escrever um bom romance. Paradoxalmente, ele termina o relato com um romance escrito, que é bom o bastante para desmentir a si mesmo. Parece meio esquisito. Parece também meio clichê – quantos livros você já viu sobre escritores que escrevem sobre outros escritores tentando escrever? Um monte. Pois bem. Quem se lembra de David Foenkinos?, do francês David Foenkinos, é as duas coisas ao mesmo tempo, meio esquisito e meio clichê. Mas é também bastante bom, coisa que só fui perceber quando terminei de lê-lo.
Comprei o livro por acaso, num saldão. Estava tão barato que acabei levando-o por curiosidade, esperando apenas folhear e, quem sabe, encontrar ali alguma coisa interessante. Li as primeiras trinta páginas num pulo. E as outras cento e trinta em outro.
A história é meio deprimente, já vou avisando. O personagem David Foenkinos escrevera um romance de sucesso, seguido por outros cinco que passaram despercebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Agora, ele está atrás de uma grande ideia perdida num trem, concebida e esquecida numa viagem entre Genebra e Paris. Por conta dessa obsessão – e da apatia gerada pelos fracassos –, sua vida pessoal desmorona, em especial o relacionamento com esposa e filha. Afinal, é sobre isso que ele escreve.
O livro tem boas passagens. Embora pouca coisa aconteça, a leitura flui rápido. Vamos nos embrenhando na vida de David e experimentando o gosto repugnante da derrota que ele outorga a si próprio.
O mais bacana talvez seja justamente não saber quanto dali foi inventado e quanto foi apropriado da vida real do Foenkinos autor. Fica claro que toda biografia não passa também de mera ficção, e que qualquer história pode ser recontada conforme convier às partes interessadas. Como lemos logo nas primeiras páginas, só as nossas certezas conhecem intimamente as nossas incertezas.
David Foenkinos estava mesmo esquecido? Seus romances anteriores foram tão ignorados quanto o personagem afirma? Sua estreia fez aquele sucesso todo? Sabemos que aqueles livros existem porque está escrito nas orelhas do atual e, suponho, essas orelhas não fazem parte da criação original. Mas posso estar enganado. Sim, claro. Esse é o mérito do autor. Ele nos engana sem que percebamos, justamente porque nos faz acreditar em sua história reinventada.
Na fronteira entre ficção e realidade, David nos leva a refletir sobre o amor, a ansiedade e as relações humanas; sobre tudo que está ao nosso alcance e sobre aquilo que independe da nossa vontade. Ele procura um bode expiatório para sua mediocridade e, como resultado, acaba produzindo um livro nem um pouco medíocre. Um livro sobre o próprio livro, que conseguiu prender minha atenção enquanto rolavam as páginas.
Já próximo do desfecho, o personagem Foenkinos se pergunta: "Pode-se amar mais uma mulher do que confundindo-a com uma ficção?" Imagino que não. O mundo, em geral, existe apenas como uma ideia de mundo. As coisas não existem por si mesmas, mas da maneira como nós as concebemos. Quer dizer, uma casa, para mim, é diferente daquilo que você entende por casa. Uma maçã possui diferentes significados para quem planta e para quem come. Um livro idem. É o que o autor Foenkinos sugere nas entrelinhas: é impossível amar a vida sem escrever, a partir dela, a nossa própria ficção.