sábado, 11 de junho de 2011
CIDADE INTERIOR
Desde muito antes do grande imperador Kublai Kahn, as cidades nos fascinam. Elas exercem poder sobre os homens e estão muito além de simples amontoados de pedras; as cidades possuem alma. Elas contêm o espírito de seus fundadores e a força dos que morreram para mantê-las.
Todos estão intimamente ligados às suas cidades de origem. Acontece de ser um sentimento escondido, uma chama congelada num coração frio; mas as amarras não podem ser negadas. Marco Pólo, embora visitasse as maravilhas do mundo, nunca deixou de retornar ao seu imperador, ao seu reino. Ele sofreu tentações, claro; só que tinha orgulho da sua terra e soube vencer o amor à primeira vista que encanta os estrangeiros. Explicou esse sentimento dizendo que os outros lugares são como espelhos em negativo: o viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.
Enquanto o turista deseja conhecer o todo de uma cidade, o povo percebe que o máximo a lhe ser concedido é uma imagem bela, que reflete aquilo que ele deseja ver. São ilusões. Ninguém além do próprio povo conhece o espírito da sua cidade. Por mais que você se lance ao mundo na tentativa de explorá-lo, só conseguirá encontrar uma versão pessoal dele.
As cidades, como dizia Marco Pólo, não contam o seu passado, elas o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras; cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Nada do que se viveu pode ser revivido, exceto quando percebemos as cicatrizes e buscamos as recordações. E não há nada mais interior do que as nossas próprias recordações.
19 de janeiro de 2005.
[Inspirado no livro As cidades invisíveis (1972), de Italo Calvino.]