Minha namorada, por exemplo, quando conheceu os livros da série Crepúsculo, ficou tão alucinada que não conseguia pensar em outra coisa além de voltar logo para casa e continuar a leitura. Eu diria que até hoje ela continua meio afetadinha pela promessa de amor eterno do vampiro Edward.
Você mesmo deve ter vivido situação semelhante, ainda que não com tamanha intensidade. Pense no romance O código Da Vinci, que gerou uma curiosa crise com a Igreja Católica e seus devotos mais radicais. Na ocasião, discutiu-se o que nele seria verdade, o que seria perjúrio e o que seria excesso de ousadia do autor. Rolou até mesmo uma tentativa de proibição da leitura, disfarçada de conselho episcopal, como uma sombra do abominável Índex do Santo Ofício. Blasfêmia!, gritavam daqui; Liberdade de expressão!, bradavam dali. Muita gente tomou o romance como fato incontestável e levantou armas contra ou a favor. Outros tiraram os olhos do livro e passaram a encarar o dia-a-dia com desconfiança. Cheguei inclusive a presenciar uma discussão sobre o pecado de ler. Agora, o que a maioria jamais considerou é que O código Da Vinci é um romance, uma obra ficcional sem pretensões de promover uma revelação histórica. Uma narrativa inventada para entreter, ainda que baseada numa hipotética realidade passada.
Algumas dessas narrativas, ou mesmo personagens delas, exercem um fascínio tão grande sobre o público que chegam a afetar suas vidas profundamente, levando inclusive à morte. Um caso clássico é o de Os sofrimentos do jovem Werther. Escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado pela primeira vez em 1774, o romance se tornou símbolo do Sturm und Drang alemão, embora hoje pareça mais um melodrama um tanto quanto fora de moda. Na época, todavia, muitos jovens passaram a se vestir como o protagonista, enquanto outros, contagiados pela melancolia exacerbada, seguiram seu exemplo e deram cabo à própria vida.
Um século mais tarde, quando Arthur Conan Doyle decidiu se livrar de seu personagem mais famoso para conseguir escrever sobre novos assuntos, Londres viveu tempos de pesar e revolta: leitores indignados enviaram reclamações aos editores e saíram às ruas usando braçadeiras de luto. Oito anos depois, Doyle cedeu à pressão – e às generosas ofertas financeiras –, inventou uma lorota bastante discutível e fez reviver o detetive Sherlock Holmes, para alegria geral da nação leitora.
Uma situação bem mais recente é relatada por Stephen King no primeiro dos sete livros de A torre negra. A série demorou três décadas para ficar pronta. Nesse meio-tempo, em uma das longas pausas criativas do autor – em que os fãs chegaram a lastimar que ela jamais fosse concluída –, uma senhora de oitenta e dois anos lhe escreveu: tenho um ano de vida, catorze meses no máximo. O câncer tomou conta de mim. Antes de partir, queria saber o final da trama, prometo não contar a ninguém. Por favor.
De minha parte, só tenho a dizer que, após muita dedicação, terminei de ler todos os volumes da saga Harry Potter. É impossível não se afeiçoar àquele menino que cresceu junto com seus leitores-alvo, mesmo não sendo o meu caso – talvez algo semelhante tenha acontecido comigo durante o seriado televisivo Anos incríveis. Enfim, quando li a última linha do último livro, imediatamente pensei: que coisa sem graça será minha vida sem a bruxaria!
Não muito diferente do que nos casos supracitados, meu encontro com esse personagem se dera de maneira entusiasmante, o que costuma caracterizar uma boa fonte de entretenimento. Passadas algumas semanas, digo sem titubear que retomei a rotina em sã consciência e que agora tudo transcorre normalmente; embora, de vez em quando, eu pense em como seria bom fazer meu carro levitar para fugir de um congestionamento, ou mesmo deseje estuporar alguém que venha encher a paciência no trabalho. Ah, doce ficção!
Notas sobre as ilustrações:
1. Mão com esfera reflectora (1935), de M. C. Escher (autorretrato)
2. Répteis (1943), de M. C. Escher
3. Encontro (1944), de M. C. Escher