Na companhia de objetos, de Flávia Junqueira
Que coisas? Sei lá, qualquer coisa. Mas como vou explicar o significado de uma coisa que não sei qual é? Ela pode significar uma coisa para mim e outra para você. Esse é o ponto, percebe? Não. Pois é.
Estive pensando nos significados que damos para as coisas ao nosso redor, desde um objeto banal ao acontecimento mais místico. Porque essas coisas não significam nada por si próprias, somos nós que inventamos encargos para elas.
Tive essa revelação pouco extraordinária lendo uma biografia da Dra. Nise da Silveira – possivelmente a psiquiatra mais importante que o Brasil já produziu e de quem a vida é tão interessante quanto a obra. É um livro que o autor preferiu chamar de "conjunto de biografemas" – coisa que, no final das contas, dá praticamente no mesmo, exceto que deixa a história mais repetitiva. O jornalista Bernardo Carneiro Horta complicou a narrativa para agradar à doutora, de quem era amigo e que considerava o formato biográfico tradicional uma maneira pouco justa de se definir um sujeito.
Enfim, minha revelação se deu porque a Dra. Nise tinha na parede de sua biblioteca um brasão criado por ela mesma, constituído de uma peneira no centro e dois abanadores dispostos um de cada lado. Esquisitíssimo, eu sei. Só que, para ela, aquilo lembrava o doce de laranja preparado por sua tia, que era peneirado sete vezes em fogo brando, controlado com abanadas meticulosas. Ficava delicioso, e o sabor provinha da minúcia e da paixão da cozinheira. Nise empregava essa fórmula em suas pesquisas e o tal brasão ficava pendurado lá para lembrá-la de como agir. Quem nunca teve um amuleto assim?
Como historiador da arte, eu vivo decifrando esquisitices dos outros, principalmente do passado mais distante, também mais difícil de entender. Artistas têm uma grave propensão à esquisitice, o que não deixa de ser divertido e, em alguns casos, engrandecedor.
Lembro sempre de um presente que Marcel Duchamp enviou dos Estados Unidos à França no aniversário de casamento de sua irmã. Na verdade, ele enviou as instruções para que a irmã o realizasse: ela deveria pendurar um livro de geometria do lado de fora da casa e deixar que o vento fosse virando as páginas, escolhendo os problemas que o tempo se encarregaria de destruir. Acho lindo, simbolicamente falando, embora quem passasse na rua possivelmente concluiria que o casal tinha uns parafusos a menos.
Nós todos temos uma percepção específica do que acontece ao nosso redor. Vivemos em um mundo particular. Não tem jeito, cada um pensa à sua maneira, com sua própria bagagem cultural, suas conexões e seu grau de abstração pessoal. Por mais que eu explique a beleza da proposta de Duchamp, muita gente jamais vai compreendê-la como eu a compreendo.
Não faz muito tempo, li um artigo na revista Vida Simples em que a autora resolveu se desfazer de cinquenta dos seus pertences como tentativa de averiguar a relação que estabelecera com eles. Mas não bastava sumir com cinquenta CDs, por exemplo. Tinham que ser coisas diferentes. Foi assim que ela percebeu a imensa carga emocional contida em cada uma delas.
Nós emprestamos significados às coisas e, de alguma maneira, são também as coisas ao nosso redor que dão significado à vida. Juntando aquela reprodução do Abaporu emoldurada na sala de estar, esta caneta tinteiro e uma pilha de livros, dá para ter ideia de quem eu sou, caso um dia desperte sem me lembrar de nada.
Isso é coisa antiga, não tem nada a ver com sociedade de consumo. Os faraós do antigo Egito, por exemplo, eram sepultados com diversos "tesouros", hoje dignos de suspeita. Eram objetos pessoais, às vezes ordinários, mas que podiam fazer falta no outro mundo. Quem visita o Museu do Cairo observa aquele monte de potinhos, colares e besouros dourados sem saber ao certo o que significavam para seus donos originais.
Pensei nesse monte de coisas a partir de um diálogo comigo mesmo. Uma conversa estranha entre a metade que acredita no desapego material e a outra que não consegue viver longe de objetos imbuídos em memória e valor afetivo. Uma conversa em busca de um equilíbrio ideal, que seria perfeitamente representado por uma balança em miniatura. Assim como fez a Dra. Nise da Silveira, essa balança seria o meu brasão, ficaria ótima em cima da escrivaninha. Uma coisa para me lembrar do significado de outras coisas. Gostei. Não parece má ideia comprar uma dessas, né? Tenho certeza de que não.
Estive pensando nos significados que damos para as coisas ao nosso redor, desde um objeto banal ao acontecimento mais místico. Porque essas coisas não significam nada por si próprias, somos nós que inventamos encargos para elas.
Tive essa revelação pouco extraordinária lendo uma biografia da Dra. Nise da Silveira – possivelmente a psiquiatra mais importante que o Brasil já produziu e de quem a vida é tão interessante quanto a obra. É um livro que o autor preferiu chamar de "conjunto de biografemas" – coisa que, no final das contas, dá praticamente no mesmo, exceto que deixa a história mais repetitiva. O jornalista Bernardo Carneiro Horta complicou a narrativa para agradar à doutora, de quem era amigo e que considerava o formato biográfico tradicional uma maneira pouco justa de se definir um sujeito.
Enfim, minha revelação se deu porque a Dra. Nise tinha na parede de sua biblioteca um brasão criado por ela mesma, constituído de uma peneira no centro e dois abanadores dispostos um de cada lado. Esquisitíssimo, eu sei. Só que, para ela, aquilo lembrava o doce de laranja preparado por sua tia, que era peneirado sete vezes em fogo brando, controlado com abanadas meticulosas. Ficava delicioso, e o sabor provinha da minúcia e da paixão da cozinheira. Nise empregava essa fórmula em suas pesquisas e o tal brasão ficava pendurado lá para lembrá-la de como agir. Quem nunca teve um amuleto assim?
Como historiador da arte, eu vivo decifrando esquisitices dos outros, principalmente do passado mais distante, também mais difícil de entender. Artistas têm uma grave propensão à esquisitice, o que não deixa de ser divertido e, em alguns casos, engrandecedor.
Lembro sempre de um presente que Marcel Duchamp enviou dos Estados Unidos à França no aniversário de casamento de sua irmã. Na verdade, ele enviou as instruções para que a irmã o realizasse: ela deveria pendurar um livro de geometria do lado de fora da casa e deixar que o vento fosse virando as páginas, escolhendo os problemas que o tempo se encarregaria de destruir. Acho lindo, simbolicamente falando, embora quem passasse na rua possivelmente concluiria que o casal tinha uns parafusos a menos.
Nós todos temos uma percepção específica do que acontece ao nosso redor. Vivemos em um mundo particular. Não tem jeito, cada um pensa à sua maneira, com sua própria bagagem cultural, suas conexões e seu grau de abstração pessoal. Por mais que eu explique a beleza da proposta de Duchamp, muita gente jamais vai compreendê-la como eu a compreendo.
Não faz muito tempo, li um artigo na revista Vida Simples em que a autora resolveu se desfazer de cinquenta dos seus pertences como tentativa de averiguar a relação que estabelecera com eles. Mas não bastava sumir com cinquenta CDs, por exemplo. Tinham que ser coisas diferentes. Foi assim que ela percebeu a imensa carga emocional contida em cada uma delas.
Nós emprestamos significados às coisas e, de alguma maneira, são também as coisas ao nosso redor que dão significado à vida. Juntando aquela reprodução do Abaporu emoldurada na sala de estar, esta caneta tinteiro e uma pilha de livros, dá para ter ideia de quem eu sou, caso um dia desperte sem me lembrar de nada.
Isso é coisa antiga, não tem nada a ver com sociedade de consumo. Os faraós do antigo Egito, por exemplo, eram sepultados com diversos "tesouros", hoje dignos de suspeita. Eram objetos pessoais, às vezes ordinários, mas que podiam fazer falta no outro mundo. Quem visita o Museu do Cairo observa aquele monte de potinhos, colares e besouros dourados sem saber ao certo o que significavam para seus donos originais.
Pensei nesse monte de coisas a partir de um diálogo comigo mesmo. Uma conversa estranha entre a metade que acredita no desapego material e a outra que não consegue viver longe de objetos imbuídos em memória e valor afetivo. Uma conversa em busca de um equilíbrio ideal, que seria perfeitamente representado por uma balança em miniatura. Assim como fez a Dra. Nise da Silveira, essa balança seria o meu brasão, ficaria ótima em cima da escrivaninha. Uma coisa para me lembrar do significado de outras coisas. Gostei. Não parece má ideia comprar uma dessas, né? Tenho certeza de que não.