Pesquise aqui

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O QUINTAL DO VIZINHO

Dois cachorros e um coelho brincavam juntos no quintal do vizinho. Eu os observava pela janela da lavanderia. Moro num prédio alto, no décimo terceiro andar de um prédio bem alto, isolado no topo de uma ladeira. Pelas janelas, consigo observar muita coisa que acontece no bairro. Isso não significa que eu fico espiando. É mais ou menos como uma TV ligada – a gente passa por ela e sempre acaba assistindo um pouquinho.

O episódio dos cães, por exemplo, descobri por acaso, enquanto abria as janelas para deixar o sopro do novo dia entrar. Eu tomava café na caneca, ergui a primeira das três janelas basculantes da lavanderia e vi os bichos correndo como loucos pelo quintal do vizinho, numa animação surpreendente para aquela hora da manhã. Não tive como ignorá-los. Me recostei no batente e ali fiquei.

Eram dois cães da mesma raça, de focinhos curtos e longos pêlos brancos, com manchas pretas espalhadas por todo o corpo. Já vi desses por aí, passeando com seus donos, mas não sei dizer o nome da raça, não entendo nada de cachorros. Acho a maioria bonitinha, brinco um pouco com eles e sempre me surpreendo com a devoção que oferecem em troca de um cafuné. Bom, estou falando desses cães menores, mais brincalhões, com os quais tenho coragem de me arriscar. Talvez alguns dos grandes também sejam carinhosos, mas acredito que o risco cresce proporcionalmente à raça e, nesse caso, prefiro manter distância. Talvez eu esteja errado, talvez os maiores sejam até mais carinhosos do que os pequenos, talvez seja o carinho – e não o risco de levar uma mordida – que cresça na proporção do porte. Nunca vou saber ao certo, é difícil saber quem é quem. Como disse antes, não entendo nada de cachorros.

Os do vizinho não são muito grandes e nem muito pequenos. Ficariam enormes em meu apartamento, por exemplo; porém, no quintal que observo pela janela da lavanderia, eles têm espaço de sobra. Deve ser um dos últimos terrenos assim na cidade, que agora se espreme entre prédios e trânsito. Um terreno que logo vai se transformar em estacionamento, mas que, por enquanto, sobrevive com árvores, horta, galinheiro e, inclusive, um singelo laguinho. Para você ter ideia do tamanho dele, tem um velho abacateiro bem no centro, que cobre boa parte da casa e que dificulta bastante minha observação. Abacateiros crescem muito, acredite.

Eu tomava café na caneca e via os cachorros perseguindo um coelho branco por entre os galhos da árvore. De repente, eles corriam para outro canto e eu conseguia vê-los melhor. O pega-pega parecia divertido, em especial por causa da esperteza do coelho. Um coelho branco que depois me fez lembrar do personagem de Lewis Carroll, que levou Alice até o País das Maravilhas. Naquele instante, no entanto, eu só conseguia pensar em qual seria a próxima guinada do bicho, que dava um baile nos atrapalhados cães. Ele era mais rápido e se aproveitava disso para enganar os perseguidores. Vira e mexe, os cães perdiam o rastro, ficavam correndo em círculos até o coelho se mostrar de novo e recomeçar o jogo. O coelho dava voltas no lago, mudava de direção bruscamente e fazia com que os cachorros esbarrassem um no outro, pisassem na água, dessem com a cara num arbusto. Quando se cansava, simplesmente enfiava seu corpinho miúdo num canto em que os focinhos dos outros não o alcançavam.

Não sei dizer quanto tempo aquela alegria durou. Os bichos pareciam se divertir e eu fiquei a admirá-los. Era mesmo uma empolgação fascinante. O café esfriou na caneca e eu nem percebi.

Os cães eram feitos de bobo diante de meus olhos e, como se soubessem observados, foram ficando mais irritados. Quer dizer, eu acho que ficavam mais irritados, pois naquela distância não dava para ter certeza de nada e eles não latiam, rosnavam ou faziam qualquer uma dessas coisas que os cães fazem quando querem demonstrar indignação. Estavam entretidos de verdade.

O coelho, descansado, voltava à correria. Disparava como uma bala e trazia os dois no encalço. Teve uma vez que ele até ousou correr na direção dos companheiros. Foi magnífico. Os dois últimos, surpreendidos com a atitude do danado, tropeçaram e rolaram pelo chão de terra. A torcida vibrou. Devem ter ficado com o pêlo sujo, comprido como é; mais uma vez, não consegui ver direito por causa da distância.

Então, o coelho confiou demais em si mesmo. Ou confiou demais na amizade dos outros. Ou talvez eu é que tenha sido inocente demais para enxergar alguma amizade ali. Enfim, fato é que o coelho se atrapalhou numa curva e um dos cães, que tinha ficado para trás em manobra anterior, o abocanhou de jeito no pescoço. Apertei a caneca instintivamente, quase a ponto de quebrá-la. Não sei se foi obra de minha imaginação, mas vi o pêlo branquinho do coelho sendo tingido de cima a baixo pelo tom rubro da morte. O outro cão se aproximou num pulo, o coelho se debateu um pouco e finalmente suas orelhas relaxaram.

Eu estava em pé, com todos os músculos do corpo retraídos, com uma caneca de café frio na mão, de frente para a janela basculante da lavanderia. Percebia a brisa fresca da manhã me gelar a alma. Olhos fixos no quintal do vizinho, mente voando distante, corpo abandonado naquela situação inerte.

Os cães carregaram o coelho para debaixo do abacateiro, escondendo-o de possíveis curiosos.

O galinheiro tinha tela. Foi a segunda coisa que notei. Tinha tela de arame. Protegidas, as galinhas não davam qualquer atenção ao que acontecia na vizinhança. Elas estavam tão suscetíveis à violência, tão disponíveis ao perigo que rondava sua morada, mas não parecia sequer preocupadas. Eram apenas galinhas. Estúpidas galinhas ciscando no galinheiro.

Deveria haver também uma coelheira. Uma coelheira com tela. O que teria acontecido? Um coelho decidira se aventurar fora dela ou os cães a tinham invadido à força? Não dava para ver mais nada, só imaginar. Os cães já tinham sumido de vista, as águas do laguinho nem se mexiam mais. O quintal ficou em silêncio e pude ouvir a cidade despertar para mais um dia inocente de trabalho. Um dia como qualquer outro, rotineiro e indiferente.

Ainda fiquei um tempo com os olhos fixos no quintal do vizinho, não sei dizer quanto. Os sons da cidade ecoavam distantes em minha cabeça. Os raios de sol iam ganhando força e o verde das plantas ficava mais verde. O concreto reluzia, me chamando de volta à realidade.

O vento frio gelava meu rosto. O silêncio desaparecia. O galo cantou. Havia um galo no galinheiro do vizinho, que cantava sempre num horário diferente, não era parâmetro para nada. Tinha me esquecido dele. O galo cantou, eu pisquei algumas vezes e mexi a cabeça na direção da caneca, que apertava contra o corpo. Fechei a janela por causa do frio. Estiquei o braço, girei o trinco com cuidado, devagar. Olhei ao redor, para as coisas da lavanderia, e fui passar mais um pouco de café.


*A pintura que ilustra este conto chama-se Carta Branca (1965), de René Magritte.