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domingo, 19 de setembro de 2010

O FIM DE UMA ILUSÃO



A Bienal de Arte de São Paulo está de volta pela vigésima nona vez e com ela vem também uma série de dificuldades de recepção por parte do público, às quais eu gostaria de pôr um fim. Seria muita pretensão mudar o comportamento do milhão de visitantes esperados com apenas uma crônica, mas eu já ficaria satisfeito se conseguisse ajudar pelo menos meia dúzia a aproveitar ao máximo esse que é o principal evento de arte do país e, talvez, um dos "top 3" do mundo. A começar pela seguinte revelação: as obras que você gostaria de ver por lá, tipo Van Gogh e Monet, com paisagens bucólicas coloridas e belas flores repousando num jarro em cima da mesa não estarão presentes. Aliás, já tem mais de meio século que sequer vemos quadros tradicionais pendurados nas paredes, quem dirá pinturas daqueles gêneros. Não fique triste, dá para contemplar essas obras-primas em diversos outros museus da cidade, tais como o MASP e a Pinacoteca, sem contar as constantes retrospectivas que se organizam em galerias, institutos culturais etc. A questão é que a Bienal tem outro propósito: reunir produções relevantes que estão sendo desenvolvidas atualmente ao redor do mundo, em geral escolhidas segundo tema específico. Isso não significa que só há no pavilhão trabalhos com até dois anos de idade – alguns possivelmente são mais velhos do que você, mas foram produzidos a partir de conceitos artísticos vigentes ainda hoje e que, portanto, pertencem àquilo que chamamos de arte contemporânea. Que conceitos seriam esses? Bom, são muitos, porém posso afirmar que a ideia da "obra como janela", ou seja, aquelas tentativas de criar uma ilusão e transportar você a uma nova realidade, já não existe mais. Em outras palavras, ninguém verá pinturas contendo um universo isolado, capturado e emoldurado, tampouco tentará entrar nelas para chegar à realidade do artista. Agora, é a obra que vem até você, que salta da parede e tenta penetrar a sua realidade. Parece esquisito, só que, na verdade, é muito mais legal. É por isso que os trabalhos raramente ficam pendurados nas paredes – eles venceram o confinamento das molduras e querem interagir com o público. O que nos leva a outro conceito importante da arte contemporânea: você, espectador, foi promovido à coautor do artista. Eita. Isso significa que eu, mero curioso, posso interpretar as obras à minha maneira e criar as minhas verdades a respeito delas? Até certo ponto, sim. Quer dizer, você não precisa mais quebrar a cabeça para desvendar a intenção do artista. No contemporâneo, ele sugere uma ideia e você a completa com sua própria experiência de vida. Por exemplo, o desenho de uma suástica. Com certeza, ele estimulará sentimentos diferentes se o visitante for judeu ou não. Mas, se a suástica é a mesma para ambos, o que muda? O visitante, ora. Percebe a liberdade de apreensão? Porém, como eu disse antes, você pode interpretar a obra como bem entender até certo ponto. Porque a Bienal ficará muito mais interessante se você conhecer a história do artista. Aproveitando o exemplo da suástica, você concordaria que a obra se transforma completamente quando descobrimos que o seu criador não é judeu, ateu ou praticante de qualquer outra religião, mas neonazista, certo? Pode acontecer... Isso nos leva a outro preceito importantíssimo da arte contemporânea: devemos conhecer o contexto da obra, pois normalmente ele é revelador. Só que a Bienal é enorme, como farei para descobrir a particularidade de cada artista? Não dá. A melhor saída é fazer uma visita guiada, pois a equipe de educadores passou meses estudando a exposição e vai adorar explicá-la a você. Eles estão lá para isso, então não tenha vergonha de perguntar tudo, por mais óbvio que possa parecer. Porque arte deve ser simples e prazerosa, e não um tormento inacessível. As obras de hoje costumam ter apelos conceituais, ou seja, nem sempre são o que parecem ser à primeira vista. Para explicar melhor, vou citar o Parangolé, do brasileiro Hélio Oiticica. Trata-se de uma capa de tecido, que deve ser utilizada para dançar. É uma das obras mais importantes da nossa história da arte. Mas você a verá exposta e sabe o que vai parecer? Um retalho de pano, "que até meu sobrinho de dois anos faria igual". Porque a obra não é a capa em si, mas o uso dela, aqueles movimentos ritualísticos que, ao ritmo da música, provocam uma experiência maior, que mistura cor, som e emoção, que nem o Carnaval. Mas como você vai descobrir isso? Tem que perguntar aos educadores, porque não dá para colocar um grupo de pessoas dançando o tempo todo na Bienal, né? Imagina a disposição! Eu quis citar o Oiticica porque haverá algumas obras fundamentais dele por lá, porque elas foram criadas há décadas e porque ele nos ajuda a deixar a tentadora ilusão da arte antiga de lado e adentrar esse rico universo de possibilidades do presente. Além do mais, ele chamava o espectador de um jeito muito mais carinhoso: participador. Portanto, deixo aqui o convite: vamos visitar a 29ª Bienal de São Paulo sem preconceitos, porque muita gente trabalhou sério durante pelo menos dois anos para proporcionar essa experiência física e intelectual. É uma oportunidade única que, se você permitir, acabará com uma série de ilusões ingênuas e lhe apresentará uma nova e maravilhosa realidade artística: a realidade de agora.


Quer saber mais sobre os Parangolés? O vídeo abaixo mostra uma experimentação da obra na Praça da República, Belém/PA.


29ª BIENAL DE SÃO PAULO
Parque do Ibirapuera - Portã​o 3
Pavilhão Ciccillo Matarazzo (Pavilhão da Bienal)

De 2ª a 4ª feira das 9 às 19h
5ª e 6ª feira das 9 às 22h
Sábado e domingo das 9 às 19h
(entrada admitida até uma hora antes do fechamento)

De 25 de setembro a 12 de dezembro
Entrada gratuita
Mais informações: http://www.29bienal.org.br/