domingo, 11 de julho de 2010
A LINHA AMARELA
Composição com vermelho, preto, azul e amarelo (1928), de Piet Mondrian
Todo dia a mesma coisa, o celular despertando, a água fria, a água quente, o cheiro insípido de Nescafé, o pão borrachudo comprado na noite anterior, quando retornava do trabalho, sempre igual, sempre o mesmo esforço, sempre a mesma coisa, de modo que a própria palavra rotina perdia o sentido, perdia a função, tornava-se uma daquelas coisas tão óbvias que não precisam ser nomeadas. Chamar o dia a dia de rotineiro era o maior dos pleonasmos. E vinha o vento frio e úmido que anunciava o nascer do sol, o vento no rosto, os milhares de corpos ao redor seguindo juntos rumo a lugares diferentes, a voz do condutor nos alto-falantes indicando a próxima estação, pedindo que os passageiros não segurassem as portas, que iam atrasar a vida de todos os outros, que era um saco estar ali carregando aquele bando de ignorantes. O empurra-empurra, a evidente falta de banho, o mau hálito do jejum alheio, o toque ocasional em suas partes íntimas e a dúvida da intencionalidade. A saída, tão desejada e ao mesmo tempo tão distante, tão inalcançável. O olhar do relógio, impassível. A passividade religiosa que se adquire com o tempo discutindo com a vontade de empurrar todo mundo, gritar, mandar à merda. A passividade novamente, a dor nas pernas e nos braços, a bolsa apertada de encontro à barriga, a cabeça baixa, a bagagem do cavalo parado à frente obstruindo o corredor, o ligeiro afastar de pernas para garantir a posse do território, a freada brusca, a mistura de tudo aquilo organizado anteriormente. Eis que as portas se abrem e o dia recomeça pela terceira ou quarta vez, não me lembro, o fluxo de gente afasta os pensamentos acumulados anteriormente. A linha amarela, alerta de segurança na plataforma, a solução de todos os problemas de um jeito rápido e – talvez – indolor. A escada rolante, a dúvida da esquerda ou da direita, a luz natural, ar fresco, finalmente, a fuligem penetrante que tinge de preto as mucosas do nariz, o perfume dos automóveis, o desejo reprimido de ter um e se isolar na própria bolha, a bolha tão amassada e violada que já não se reconhece mais. O trotar nas calçadas feridas, o olhar do relógio, impassível, o cuidado para não pisar nos cocôs de cachorros e de mendigos, a pichação nova sobre a antiga, o mato alto, as flores judiadas, feias, tristes. O estômago ronca e transforma o café da manhã em uma lembrança longínqua, já faz tanto tempo, será que comi hoje? O alívio de chegar ao trabalho, o mesmo trabalho de sempre, a saleta encaixada em meio a outras quaisquer, o mesmo trabalho que será motivo de escárnio na hora do almoço, a insatisfação premeditada, o assunto fácil do reclamar por reclamar. O crachá, a foto feia, o elevador, a dúvida de cumprimentar o desconhecido. Oi? Tchau? Vá se foder, tá olhando o quê?, meus peitos? Quem dera alguém se interessasse por eles. O mesmo banco, a mesma praça, o mesmo computador, a mesma piada. A vontade de arrancar toda aquela roupa contaminada pelo sofrimento alheio, de tomar banho e esfregar, esfregar e esfregar até não sobrar nada além dos ossos brancos. Xixi, xixi, xixi... era isso que incomodava, que alterava o humor, que cruzava as pernas inadvertidamente. O banheiro vazio, sem janelas, a ventoinha evacuando o cheiro da noite anterior. O abandono. É incrível como quem mora mais longe é sempre a primeira a chegar, maldita cidade, precisava ser tão grande? Vamos repassar a lista de frases prontas: bom-dia, tem consulta marcada? Pois não, o doutor já vai atender. Aguarde um instante, sim? Não poderá comparecer? Claro, não se preocupe, podemos agendar para amanhã? Quanto tempo levaria para treinar um macaco? Bobagem, macacos são caros, precisam de vacina, licença, precisa castrar etc. Será que macacos mordem? Isso teria lá suas vantagens. O botão, a máquina de café barulhenta, a espera na frente da tela, o teclado com aquele monte de numerinhos, letrinhas e sinaizinhos, muitos nunca usados, dá para ver teclas sujas e outras não, teclas gastas e outras não. O telefone chama, foi dada a largada, o dia recomeça outra vez. Consultório do doutor Chapatim, isso mesmo, que nem no Chaves, não, deve ser número errado, de nada, que é isso, até logo. Idiota. Bom-dia, doutor. Agenda cheia, chega um nome, o primeiro da lista, senta, aguarda, levanta, entra, chega outro, entra, sai, entra, sai, entra mais um, demora, olha o relógio, olha para mim, olha o relógio, bufa, reclama baixinho, aperta qualquer coisa no celular, se mexe incomodado na poltrona, folheia uma revista com agressividade, sem prestar atenção, revista de fotos. Chega o nome seguinte e o anterior ainda está lá, o doutor deve estar comendo a paciente em cima do divã, rá rá rá, não duvido, aquela perua com cara de safada. Esconde o sorriso, esconde o sorriso! Pronto, acabou, entra o nome seguinte, fica esse, sai aquele, o relógio dispara sem sair do lugar, maravilha. A recepcionista da sala ao lado vem anunciar o almoço, claro, já vou indo, pode chamar o elevador. A mesma coisa todo dia, o mesmo papo furado, a novela do dia anterior, o capítulo de hoje que saiu na revista, o patrão explorador, a injustiça, os parentes distantes, o mexerico de um primo e sua amante, o relógio, a volta, o café, a barra de chocolate escondida na primeira gaveta, atrás dos bloquinhos de papel sobressalentes. O pecado da gula. O garrafão de água arrota num canto, a indigestão. Nomes e mais nomes. A porta abre e fecha continuamente, o mesmo discurso de sempre, tudo nas fichas, as mesmas reclamações, as mesmas prescrições, as mesmas despedidas. A sociedade doente. O último nome do dia desmarca, o doutor sai assoviando, a macaca fica até as seis para atender o telefone, caso toque. Tique toque, tique toque, tique. Toc toc toc, o salto no assoalho, o prédio vazio, o eco da noite, o abandono. O caminho de volta ao metrô, o reencontro com os desconhecidos, a evidente falta de banho, o aperto, o constrangimento, a vontade de soltar o corpo, de se pendurar nas barras de ferro grudentas de suor. O condutor do turno da noite, a estática sombria nas caixas de som, as mesmas frases previamente ensaiadas, um errinho que passa despercebido. As propagandas na plataforma, alguma coisa sobre queda de cabelo, outro cartaz sobre remédios, sempre alguma propaganda de remédio. A sociedade hipocondríaca, a cabeça pesada, muito computador, as pernas cansadas, mãos abusadas no hemisfério sul. Foda-se. A estação chega e a multidão dispersa, o contraste com a rua deserta. O letreiro luminoso, falta um pedaço do neon, a padaria, o olhar incomodado do atendente ao pedido de uma só unidade. A tragédia grita na tv. As moedas que se foram após duas semanas de ajudinhas, a nota que restou, a indignação silenciosa do homem no caixa. O maior problema do mundo. Antes fosse de cinquenta, maldito. O barulho acolhedor das chaves chacoalhando na bolsa, o anúncio de que algo se acaba para outro algo recomeçar, o girar da maçaneta, a resposta rápida do interruptor, a luz amarela pendurada num fio no meio da sala, o salto largado num canto, o piso frio, o alívio nos pés, o baixar relaxante da atenção. O ilusionismo da tv. O movimento inebriante, as pálpebras trepidando, a dispersão. A respiração quente e profunda, os murmúrios distantes, o afago do sofá. O frio nas pernas, o calor gostoso no pescoço. Todo dia a mesma coisa, o celular despertando, a água fria, a água quente, o cheiro insípido de Nescafé, o pão borrachudo comprado na noite anterior, quando retornava do trabalho, sempre igual, sempre o mesmo esforço, sempre a mesma coisa, de modo que a própria palavra rotina perde o sentido, perde a função, torna-se uma daquelas coisas tão óbvias que não precisam ser nomeadas. Chamar o dia a dia de rotineiro é o maior dos pleonasmos. E vem o vento frio e úmido que anuncia o nascer do sol, o vento no rosto, os milhares de corpos ao redor seguindo juntos rumo a lugares diferentes, a voz do condutor nos alto-falantes indicando a próxima estação, pedindo que os passageiros não segurem as portas, que vão atrasar a vida de todos os outros, que é um saco estar ali carregando aquele bando de ignorantes. O empurra-empurra, a evidente falta de banho, o mau hálito do jejum alheio, o toque ocasional em suas partes íntimas e a dúvida da intencionalidade. A saída, tão desejada e ao mesmo tempo tão distante, tão inalcançável. O olhar do relógio, impassível. A passividade religiosa que se adquire com o tempo discutindo com a vontade de empurrar todo mundo, gritar, mandar à merda. A passividade novamente, a dor nas pernas e nos braços, a bolsa apertada de encontro à barriga, a cabeça baixa, a bagagem do cavalo parado à frente obstruindo o corredor, o ligeiro afastar de pernas para garantir a posse do território, a freada brusca, a mistura de tudo aquilo organizado anteriormente. Eis que as portas se abrem e o dia recomeça pela terceira ou quarta vez, não me lembro, o fluxo de gente afasta os pensamentos acumulados anteriormente. A linha amarela, a novidade da vez, a violação das leis da previsibilidade. Aquilo por que tanto se esperou, a facilidade que se inaugura depois de atrasos e mais atrasos, como se o governo não se importasse com as angústias da população. A sociedade doente. Tudo bem, tudo se perdoa, tudo se esquece rapidamente quando se adentra a nova estação, as esteiras que andam pelas pessoas, o cheiro de obra recente, a poeira virgem, os funcionários orgulhosos, tudo bonito, tudo novinho, tudo de vidro e silencioso. A enganadora sensação de que agora vale a pena, de que o dinheiro gasto diariamente foi usado para alguma coisa. A linha amarela transformada numa parede de proteção, paredes de vidro, portas de vidro, a artificialidade da vida. Proteger quem e do quê? Os passageiros deles mesmos? Os passageiros de suas vontades suicidas? O trem sem condutor, os vagões interligados, o menor ruído, o balançado intimista, o banco macio. A voz mecânica e educada, a gravação sem erros passa despercebida. O sorriso humilde. A partida em direção a um mundo novo, um mundo que será assunto no almoço e que será motivo de sorrisos internos até o fim da semana, talvez ainda no começo da semana seguinte, até ser vagarosamente incorporado ao dia a dia pleonástico da rotina. Até que a linha amarela avance sem ser percebida e atinja de surpresa um elemento numérico dessa vida passageira, engolindo-o no buraco negro que sinaliza. A linha amarela, nem tênue e nem imaginária, a faixa larga e clarividente, o alerta na plataforma, a separação entre aquilo que a vida é e o que poderia ter sido. O que a vida poderia deixar de ser. A linha que amarela com o tempo e adquire o mesmo tom lúgubre de todas as outras, o tom frio do concreto, o tom doentio da sociedade. Não é difícil cruzá-la. Difícil é saber de que lado se está.