sábado, 19 de junho de 2010
AS ASAS DAS BORBOLETAS
Imagine-se caminhando por um campo florido sob o claro sol de inverno, a brisa fria tocando seu rosto de leve, o céu azulzinho, a grama ainda molhada pelo sereno da noite recém-vencida. E uma xícara de café quente lhe aguardando a poucos passos num chalé com lareira acesa e cheiro de pão no ar. Agora, imagine-se preso a uma cama de hospital com o corpo totalmente paralisado, os olhos fixos no teto, condenado a sonhar eternamente com a cena anterior sabendo que jamais poderá vivenciá-la. Imagine também a angústia de não poder falar, escrever ou fazer qualquer outra coisa para dividir esse sentimento com alguém.
Não importa o quanto você imagine, jamais poderá compreender a realidade de quem carrega uma sina tão cruel. Ainda bem que aos poucos vêm surgindo promessas de melhorias, seja para revertê-la, seja para amenizar o sofrimento.
Talvez você também esteja imaginando por que trago um assunto delicado como esse para o caderno de cultura. Simples: um projeto recente tem ajudado pessoas com paralisia a recuperarem a vontade de viver por meio de – adivinhem – arte.
Acho que não existe nada pior do que sermos privados de nossa expressão pessoal ou, melhor dizendo, dos meios que possuímos para exercê-la. Porque o ato de expressar-se é natural do ser humano, não conseguimos simplesmente nos livrar dele. Colocar sentimentos, vontades e pensamentos para fora é nossa maneira de pertencer ao mundo.
Olhe ao redor, todos se revelam de alguma maneira, seja pintando girassóis, seja jogando bola, cozinhando, organizando encontros de amigos e assim por diante. Agora, o que faríamos se de repente nos víssemos obrigados a manter essa necessidade criativa trancafiada, essa criança hiperativa que quer pular, cantar e correr o tempo inteiro? É uma tarefa árdua e também impossível de se cumprir sozinho.
Eis que surge o EyeWriter, um projeto que visa desenvolver a capacidade expressiva a quem perdeu os movimentos do corpo. Simplificando, trata-se de óculos equipados com microcâmera que, ligados a um software gráfico, reconhecem o movimento do globo ocular e possibilitam a execução de desenhos digitais. São três equipes de profissionais que, em parceria com o grafiteiro Tony Quan (diagnosticado em 2003 com uma doença degenerativa) vêm implementando as novas descobertas em diversos países. Eles utilizam materiais locais e fontes de pesquisa compartilhadas para obterem resultados positivos com custo baixo, o que possivelmente caracteriza o grande diferencial do EyeWriter e o torna muito mais relevante. Afinal, quanto mais barato for, mais pessoas terão acesso. No site do projeto há inclusive um passo-a-passo para quem precisa montar um.
Fiquei muito contente ao descobrir tamanha engenhosidade e me lembrei imediatamente de Jean-Dominique Bauby, ex-redator chefe da revista francesa Elle, atingido por aquilo que a medicina chama de "locked-in syndrome" (literalmente, trancado dentro de si mesmo). Durante os meses em que ficou hospitalizado, ele podia mover apenas um olho, que se tornou seu meio de conexão com o mundo. Com esse olho, Bauby realizou a proeza de escrever um livro, intitulado O escafandro e a borboleta, no qual relatou as angústias enterradas sob sua pele. Isso só foi possível graças a um precário sistema de "digitação" criado por sua enfermeira, que ia ditando letras até obter uma piscadela do paciente.
Bauby memorizava os capítulos previamente e, letra por letra, palavra por palavra, o livro foi surgindo. Isso o manteve focado, produzindo, refletindo e enfrentando diariamente a situação crítica que vivia. Talvez possamos até mesmo dizer que foi aquele sistema de escrita que o manteve são, dividindo com o papel o peso psicológico da doença. Em determinado momento, ele revela: "O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta".
Jean-Dominique Bauby venceu a doença porque pôde continuar expressando seus sentimentos e se sentindo parte do mundo. Sua história ainda hoje é exemplo do poder vital da criação artística. Imagino que projetos inovadores como o EyeWriter permitirão que muitas outras histórias semelhantes se concretizem. Pois, contrariando a sabedoria popular, talvez não seja a esperança a última que morre, mas nossos sentimentos mais profundos. Quando tudo parece ter chegado ao fim, eles permanecem vivos. E a arte ainda pulsa.