quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
O INTERVALO MÁXIMO ENTRE OS TRENS É DE APENAS DOIS MINUTOS
O trem se aproxima da estação Jardim São Paulo. Para quem vem do centro em direção aos bairros mais afastados da zona norte, é a primeira subterrânea após uma série de estações suspensas. Faço este caminho cinco dias por semana, às vezes mais, voltando do escritório. Conheço-o de cor e é uma pena que não consiga salteá-lo, pois ele se torna desinteressante rapidamente. O trem tem dessas coisas, não me deixa sair dos trilhos. É mais tarde do que o costume, tudo está relativamente vazio. Exceto por um casal gay sentado logo à minha frente, ninguém divide o banco com outro passageiro. Estou no fim do último vagão, do lado esquerdo. Na minha diagonal direita, uma senhora lê com a cabeça abaixada. Ela usa um pequeno óculos apoiado na ponta do nariz, com armação dourada e corrente rodeando o pescoço. Um homem gordo, com a camisa aberta até o quarto botão, dorme sonoramente nas proximidades, todo esparramado, ocupando metade do assento adjacente ao seu. Ele parece derreter. Daqui onde estou, consigo ver um fio de saliva descer por seu queixo e também o vapor que sai de sua boca embaçando o vidro. Embaça, desembaça, embaça, desembaça, no ritmo da composição. Está quente, meio abafado. Consigo sentir as gotículas de suor se aglomerando em minhas têmporas. Dois jovens, lá longe, trocam olhares desde que embarquei. Além da idade e da visível timidez, a única coisa que parecem ter em comum são as mochilas, a dela de tecido roxo, a dele preta, de borracha. Muita gente usa mochila na cidade, eu mesmo tenho uma. Isso não significa que somos todos estudantes, um desavisado pode concluir errado; trata-se apenas de uma infeliz idiossincrasia do lugar. Se fôssemos realmente tão alfabetizados assim, o futuro de São Paulo seria bem mais promissor. Não sei que tanta coisa carregam por aí. Comigo há sempre um livro, às vezes uma revista, um bloco de notas, uma agenda, celular, carteira, lenço de papel para emergências, bilhetes de ônibus, óculos de sol e guarda-chuva, ou seja, nada particularmente interessante. Sobre os outros passageiros, não tenho nada a dizer. São gente comum, tão banais quanto o conteúdo da minha mochila. A revista que folheava se encontra agora largada ao lado, considerada lida. O calor incomoda, preciso respirar profundamente para não cochilar. Soltei os braços sobre o colo e estive observando a cidade passar pela janela, atividade privilegiada para quem normalmente pega metrôs lotados e só consegue ver as orelhas de uns, quando em pé, e as bundas e virilhas de outros, quando sentado. Assim, a paisagem me parece linda de qualquer maneira, não importa para onde a vista se abre. Não diria que sou apaixonado por esse lugar, acho que é mais como um vício do qual não consigo me livrar, por mais mal que ele me faça. O trem mergulhou no túnel e já consigo perceber as primeiras luzes da estação. A velocidade diminui. Quando estamos quase parados, noto na plataforma um casal que briga. Estão bem na direção do meu assento, teoricamente ocultos por uma dessas largas colunas de concreto armado. Só que posso vê-los claramente, é uma coisa que você precisa saber sobre São Paulo, tem sempre alguém lhe observando; nossa ideia de privacidade é bem diferente do que a de todo o resto do país. Quando estamos na varanda do apartamento, por exemplo, podemos ver uma família comendo pizza no prédio da frente, um velhinho cutucando o nariz enquanto assiste televisão e um casal se amassando silenciosamente para não acordar o bebê. Não há problema em presenciar tudo isso, não faz diferença, contanto que as partes envolvidas não se conheçam. O homem da plataforma está recostado na coluna, com a perna esquerda dobrada para trás e o pé direito tensionado para manter o equilíbrio do corpo. Meio impaciente, ouve os berros autocensurados da mulher, que tenta controlar seus impulsos do mesmo modo como controla o tom de voz. Não quer fazer escândalo, expor seus medos privados em lugares públicos. Eu lhe agradeço, de pensamento. Já presenciei casos em que o bom senso foi deixado de lado e, sinceramente, ninguém merece tal coisa, nem quem a protagoniza, nem quem figura. Ora, não são garotos, tampouco são velhos. Estão simplesmente naquela idade em que um deseja casar e o outro não, em que um pensa na carreira e o outro no amor, em que um gosta do amarelo e o outro do verde; a idade da discussão, uma das famosas crises do "x" anos que as revistas femininas gostam de enumerar. Mais para frente, se continuarem juntos, quando todas as alternativas particulares tiverem se esvaído, ambos perceberão que se contentaram com o vermelho e serão felizes porque proporcionaram satisfação ao par. Já tive dúvidas, quis saber se isso explicava o real sentido da vida. Agora, apenas assumo que não sei, não saberei e também não importa. Não existe um sentido único. Se alguns sonhos se realizam enquanto outros se transformam pelo caminho, a existência humana continua a ser um apanhado de decepções, somadas a alguns bons momentos isolados. São estes que realmente fazem a diferença. E daí se a conta fica negativa no final? Bom mesmo é aproveitar suas parcelas. Aqui, ninguém vive de totais. Bem-vindo à cidade das ilusões, dos contos de fadas, que faz acreditar que tudo depende de você, que você pode ser rei, que as oportunidades correm soltas pelas ruas e basta um pouco de esforço para conquistá-las. Então, de repente, o encanto se desfaz, caem as cortinas e vemos que o manipulador de bonecos não passa de um sujeito irônico. A cidade brinca com seus habitantes, somos como formigas num terrário. Não se trata de magia, mas de truques. São Paulo é linda como um cassino de Vegas, é verdade, suas lâmpadas brilham forte sob a noite nublada, seus semáforos parecem máquinas de pinball. Só que poucos ganham no final. Uns, mais abonados, que já nasceram em vantagem e só precisam se preocupar com mantê-la, e outros poucos sortudos, que tinham uma única moeda para tentar a sorte e conseguiram obtê-la. Infelizmente, a grande maioria não tem nem cinco centavos para apostar. O casal na plataforma é mais um entre outros milhões. Vejo-os agora e provavelmente jamais tornaremos a nos encontrar. Se acontecer, não nos reconheceremos, faz parte do código de conduta da cidade. Você é você, eu sou eu, os outros são os outros. Estes são estes e brigam. A mulher aponta com uma mistura de raiva e decepção, o homem deve ter feito algo errado, deve tê-la chateado por algum motivo tolo. Talvez não, pode ser que ela simplesmente queira fazer alguma coisa que ele não quer. A gente muitas vezes se desentende por banalidades, por não querer abrir mão de uns valores que, mais tarde, se revelarão infantis e ordinários. "Acho melhor não", como dizia Bartleby, olhando para o muro de tijolos. Ele abaixa a cabeça. É isso, né? Mais cobrança. O verde, o amarelo, o vermelho. A mulher se cala, desvia os olhos. O homem descola o pé da coluna e começa a gesticular. Não sei se está justificando alguma atitude ou se tenta fazer as pazes, não consigo ver a expressão de seu rosto com a nitidez necessária. Sei apenas que sua boca se move lentamente e parece triste. A mulher reage se agarrando à bolsa com as duas mãos, como se esta fosse consolá-la. Ela balança a cabeça. Não. Não o quê? O homem estende os braços em sua direção e os abre, põe o peito à disposição dela. A mulher recua um pouco, vira para o outro lado. Não quer, acredita que é mais correto agir assim. Bobagem. Ela deveria abraçar bem forte aquele que se propõe a amá-la. Não vale a pena trocar um amor pelo próprio ego. É sempre a estúpida mesquinhez que toma posse de nossa língua e amarga nosso beijo. A mesquinhez que tende a se tornar a única companheira na velhice. A dicotomia entre o amor e o egoísmo travestido de amor-próprio. O homem abaixa um pouco os braços, mas os mantém estendidos como sinal de última chance. A mulher o encara, olha de dentro dos olhos para dentro do espírito. Pergunta alguma coisa. Ele vacila e então balança a cabeça em resposta. Sim. Isso! Boa escolha. Alguém tinha que dizer sim. Percebo então o agito em meu assento e o considero um tanto quanto inapropriado, fico sem graça, acrescento certa vermelhidão àquela já proporcionada pelo calor. Olho ao redor e atesto que meus companheiros de viagem também estão todos observando a discussão na plataforma, participando dela tal como faziam os anjos do Wim Wenders. No final, o veredicto não fará diferença para eles. Bom, talvez faça. Os jovens de mochila têm os olhos arregalados, a senhora saiu do livro e provavelmente nem se lembra mais da história ainda aberta sobre suas coxas. Quem precisa de ficção quando a realidade se faz ver assim, nua e crua? Os outros passageiros também se reposicionaram para ver a briga. Sem perceberem, alguns se inclinaram na direção das janelas, enquanto outros se retorceram sobre os bancos. Só mesmo o homem gordo continuou dormindo, cansado que está; vejo que o fio de saliva já chegou ao seu pescoço. Como um clique de interruptor que afasta a escuridão, o alerta de fechamento das portas acende as luzes do cinema e recoloca todos de volta em seus lugares de origem, seus mundinhos particulares. Abaixam os olhos, disfarçam, procuram os celulares, confirmam as horas. São quinze para daqui a pouco, exatamente como supunham. A velha senhora fecha o livro e fica olhando na direção do vazio, procurando à toa uma recordação esquecida dentro de si. Os jovens de mochila já não trocam mais olhares; algum descerá na próxima estação e o outro seguirá consigo. Os gays se apertam com um abraço forte, embora cada um mantenha a cabeça virada numa direção diferente. O homem gordo engasga, ensaia um sobressalto, desiste, se aconchega no vidro e continua a dormir. O trem retoma o passo. Acelera vagarosamente e começa a deixar tudo para trás. A velocidade aumenta até borrar o cenário na janela. As grades passam cada vez mais rápido, as lâmpadas vão ficando mais difíceis de distinguir. As placas de sinalização se tornam abstratas. Pouco antes de voltar ao túnel, tenho um relance: outro casal está recostado numa coluna de concreto, na ponta da plataforma diretamente oposta à do primeiro casal. Não consigo discernir muita coisa, além de duas formas agarradas, mescladas na única e bonita posição do beijo. Essa composição que tantos artistas tentaram retratar, sem sucesso. Braços entrelaçados nas costas, olhos fechados. Tudo fica escuro. Volto-me para dentro do vagão, procuro meus companheiros de viagem. Aparentemente, ninguém reparou no casal de amantes se beijando ali fora. Se chegaram mesmo a vê-los, ninguém pareceu se importar.